Qual é o lugar do Brasil no mundo?

Por Valério Arcary

Publicado em Esquerda Online

 

“Tempo e maré não esperam por ninguém.”
Provérbio popular português.
Tempo e espaço são duas categorias chaves na análise político-social, e não devem ser desconsideradas por marxistas. Que horas são no “relógio da história”? A história conta e muito. Mas a geografia, também. Aonde estamos na disputa que se desenvolve no sistema internacional de Estados? Qual é o lugar do Brasil no mercado mundial nesta terceira década do século XXI?

Estas perguntas têm importância estratégica. Vivemos na época do imperialismo: uma ordem mundial em que alguns poucos Estados estão no centro e a maioria da humanidade na periferia. O mundo foi repartido em áreas de influência ao final da Segunda Guerra Mundial. Uma nova etapa se abriu entre 1989/91 com o fim da URSS, a restauração capitalista e a consolidação da supremacia dos EUA.

Mas, trinta anos depois, a lenta decadência norte-americana e a ascensão da China aliada à Rússia desenham o perigo potencial de um conflito de proporções catastróficas, evidenciado pela guerra na Ucrânia.

Uma estratégia socialista para o século XXI não pode se fundamentar somente em análises sobre a relação social de forças no interior da sociedade brasileira. Deve considerar os desafios dramáticos colocados pela disputa inter-imperialista entre as potências hegemônicas, a Tríade dos EUA e União Europeia, organizadas na OTAN associados ao Japão, e as potências emergentes, china e Rússia.

A hipótese deste artigo é que o Brasil é um híbrido histórico: semicolônia privilegiada e submetrópole regional. Compreender o papel que cada nação ocupa no mundo é um problema central, mas não é simples. Nação, Estado e País não são conceitos sinônimos, se formos rigorosos. A ideia de nação remete ao processo histórico de formação da sociedade, e está condicionada por fatores objetivos, mas derivou da hegemonia política do nacionalismo. Quando um povo se reconhece a si mesmo como uma comunidade de destino compartilhado, segundo Benedict Anderson[1]. O Estado é um aparelho de coerção e representação do poder político. O país é uma síntese do Estado-nação.

O Brasil, um Estado independente na forma, emerge na segunda década do século XIX. Como nas ex-colônias da América Latina, e mesmo em algumas sociedades europeias, o Estado foi o instrumento da construção da nação. A sociedade no Brasil colônia era, somente, o embrião de uma nação. Quase metade da população eram escravos.

Uma parcela importante da esquerda brasileira identifica o Brasil na periferia do mercado mundial capitalista. Não estão errados. Outra parcela sublinha o papel subimperialista na relação com os países vizinhos. Sempre houve na nossa tradição quem interpretasse o híbrido, em grande medida por comparações apressadas com o estatuto da Argentina, que mergulhou em decadência meio século antes do Brasil, a partir de uma chave econômica.

A melhor leitura da hipótese do híbrido, todavia, seria inversa. Dito de outra maneira: no Brasil, a força política da dominação imperialista teria sido sempre maior do que a vulnerabilidade econômica. Essa assimetria ainda não diminuiu.

Não nos deve surpreender, portanto, que a crise continental da dívida externa e a hiperinflação, nos anos oitenta, tenham sido muito mais acentuadas na Argentina do que no Brasil. O Brasil não passou, por exemplo, por uma moratória, na escala da Argentina em 2002.

O Brasil era, somente, uma semicolônia até o final da segunda Guerra Mundial. O processo de hibridização ficou mais claro a partir dos anos setenta, quando empresas de origem brasileira começaram a ganhar a dimensão de multinacionais. Algumas eram, então, estatais, como a Petrobrás, Vale do Rio Doce, Banco do Brasil, outras eram privadas, como a Gerdau, Odebrecht, Andrade-Gutierres, Itaú e Bradesco. Não podemos diminuir, mais recentemente, o peso de empresas agropecuárias e fundos de investimentos.

Esta caracterização de híbrido admite que ocorreram oscilações quantitativas que levaram a reposicionamentos. Qual foi a dinâmica? Em algumas fases aumentou a sem colonização, e em outras diminuíram as vulnerabilidades externas, e acentuou-se o papel de submetrópole.

O desafio da análise é identificar estas tendências e contratendências e, finalmente, confirmar se as variações foram somente quantitativas, ou se aconteceu alguma mudança qualitativa. Defenderemos que as oscilações foram, até o momento, quantitativas. O gráfico abaixo ilustra as oscilações, em escala secular, do peso da participação Brasil na economia mundial:

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 Nos anos noventa do século XX, as tendências recolonizadoras avançaram e o país esteve seriamente ameaçado pelo projeto da ALCA. Na primeira década do século XXI inverteu-se a tendência anterior: aumentou o peso do Brasil em sua área de influência, e agigantou-se a acumulação de reservas, até o patamar atual, oscilando entre US$ 350 bi e US$400 bi, algo próximo a 20% do PIB, ou dois anos de importações. Finalmente, o Brasil não foi nem recolonizado, nem se transformou em uma potência. Mas o Brasil, assim como a América Latina, esteve ameaçado, seriamente, por um projeto imperialista de recolonização em função da aproximação do governo Bolsonaro com a administração Trump nos EUA. Felizmente, esse perigo foi, por enquanto, afastado. Mas não eliminado, porque a extrema-direita permanece muito influente no Brasil, e o desfecho das eleições norte-americanas do ano que vem, incerto.

A dimensão histórica e política da dependência

O Brasil deixou de ser colônia portuguesa em 1822 para ser semicolônia inglesa até a crise de 1929. A independência foi um processo muito incompleto. Procurou em Londres o apoio para a emancipação de Lisboa. A classe dominante demonstrou-se incapaz de realizar uma revolução burguesa. O longo século XIX foi um século perdido. Não é controverso que a chave de compreensão deste terrível atraso foi a escravidão tardia.

A inserção brasileira no sistema internacional de Estados esteve em disputa nos anos trinta. Passou a ser uma semicolônia norte-americana durante a II Guerra Mundial. A dimensão política da dependência, como já vimos, está enraizada na história. Durante a ditadura do Estado Novo, Getúlio Vargas tinha fomentado uma política externa de neutralidade, admitindo até algum flerte com as potências do Eixo.[2] As negociações se estenderam entre 1939 e 1942.

Os acordos estabeleceram um empréstimo de 100 milhões de dólares para a implantação do projeto siderúrgico brasileiro, além da aquisição de material bélico no valor de 200 milhões de dólares. Esses acordos foram decisivos para a criação da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), em Volta Redonda, e da Companhia Vale do Rio Doce. Natal recebeu uma base naval, e a maior base militar aérea norte-americana, fora do território dos EUA. A cidade hospedou um contingente de até 10.000 soldados norte-americanos. A Força Expedicionária Brasileira enviou, a partir de 1944, vinte e cinco mil soldados para a Itália, de um total inicial previsto, originalmente, de cem mil [3]. O Brasil, em função do seu reposicionamento, foi um dos primeiros países a aderir às instituições que surgiram das negociações de Bretton Woods[4].

Durante a etapa histórico-política posterior ao final da guerra, entre 1945/1991, o Brasil manteve a relação estratégica com os EUA. Os acordos de Washington foram preparatórios do Tratado do Rio de Janeiro de 1945[5], e da Carta de formação da OEA (Organização dos Estados Americanos) de 1948 [6]. Ao longo dessa etapa as relações internacionais do Brasil com os EUA passaram por oscilações. Iniciativas como o acordo nuclear com a Alemanha, por exemplo, provocaram fricções. Mas, no fundamental, se preservaram intactas.

A história política do Brasil tem sido a expressão da dominação do imperialismo norte-americano sobre a nação. A burguesia brasileira decidiu se associar de tal maneira que uniu o seu destino à defesa dos interesses dos EUA. A ditadura militar entre 1964/85, um dramático intervalo de duas décadas, se impôs como resposta à onda de choque provocada pelo impacto da revolução cubana.

O primeiro fator deste estatuto dependente privilegiado foi, portanto, uma aliança estreita estabelecida com os EUA durante a guerra, ao contrário da Argentina. A história conta, a história tem muita força. Estas relações político-diplomáticas com os EUA são uma chave de explicação incontornável da história recente do país. O Brasil passou a ocupar, também, em colaboração com os EUA, um papel de semimetrópole na América do Sul, portanto, uma subplataforma de exportação de capitais.

O conceito de semicolônia pretende ilustrar a dependência econômica de uma economia orientada, ou até especializada para a exportação de produtos primários para o mercado mundial, enquanto importava capitais e produtos manufaturados com maior valor agregado. O Brasil vendia, essencialmente, café, cacau, algodão, açúcar e minérios. A primeira grande siderúrgica, a CSN, só foi construída a partir dos anos quarenta, oitenta anos depois do início da segunda revolução industrial.

Privilegiada deve ser entendido como especial, porque favorecida. A demonstração inequívoca deste estatuto foi ser o primeiro destino de investimentos externos dos EUA depois da segunda guerra mundial, à exceção dos movimentos de capital no interior da tríade EUA, Europa Ocidental e Japão. Perdeu essa posição de maior importador de capitais na periferia do mercado mundial para a China a partir dos anos noventa.

O Brasil tem uma população de, aproximadamente, 203 milhões de habitantes, e é o maior país lusófono do mundo. Tem um dos dez maiores PIB’s do mundo, se for usado o critério de PPC, (Paridade de Poder de Compra).

Esta inserção como semicolônia privilegiada se explica por muitos fatores: a elevada rentabilidade dos investimentos em um país que realizou, tardia, mas muito rapidamente, a urbanização e industrialização; a dimensão de seu PIB; o tamanho de seu mercado interno de consumo de bens duráveis; a extensão de seus recursos naturais, como a capacidade de ser o maior produtor mundial de grãos e de diversos minérios; e, mais recentemente, petróleo e gás, a partir das reservas do pré-sal.

O Brasil tem muitas peculiaridades. Ao contrário dos vizinhos do Cone Sul foi uma sociedade, majoritária e tardiamente, agrária até os anos trinta do século XX, porém, tinha duas cidades macrocéfalas, entre as maiores e mais dinâmicas do mundo, São Paulo e Rio de Janeiro, desproporcionais quando considerado o interior arcaico e semidesabitado. A agropecuária tem elevados níveis de produtividade, entre os mais competitivos do mundo.

Mas o que mais surpreende é a enorme concentração de seu proletariado – mais de 60 milhões de pessoas – e acima de 86% em centros urbanos, em vinte cidades com um milhão ou mais de pessoas.

O Brasil terminou 2015 com um total de 48,06 milhões de empregos com carteira assinada, abaixo de 2014 (com 49,57 milhões) e de 2013 (com 48,94 milhões).[7] Hoje são 38 milhões. O Brasil tem mais de dois milhões de servidores públicos federais.[8] O número de servidores municipais, em todo o país, aumentou 37,4% em uma década. Em 2005, as prefeituras empregavam 4,7 milhões de pessoas, número que saltou para 6,5 milhões.[9] Os dados disponíveis no IBGE, para 2014, informavam a existência de 3,1 milhões de funcionários públicos estaduais.[10] Considerando que alguns dados não são atualizados, podemos arredondar para algo em torno de 13 milhões de funcionários públicos nas três esferas. Uma classe operária industrial de 12 milhões corresponde a 20% do proletariado, o que é uma taxa, relativamente, elevada.[11]

Mas é, também, verdade que a burguesia brasileira é a mais poderosa na periferia do sistema capitalista. O nível de concentração da classe trabalhadora agiganta a potencial força social de choque de sua luta, desde que recupere confiança subjetiva em si mesma. Sobretudo, qualquer projeto socialista dependerá da capacidade internacionalista da esquerda brasileira de cumprir um papel na construção de uma unidade latino-americana.

Não temos muito tempo para construí-la. A geografia conta.

 

[1] ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Companhia das Letras.
[2] “Desde o início de 1941, os Estados Unidos estavam decididos a cortar o fornecimento de matérias-primas brasileiras ao Eixo. Para tanto assinaram com o Brasil um contrato de aquisição de toda a sua produção de materiais estratégicos – bauxita, berilo, cromita, ferro-níquel, diamantes industriais, minério de manganês, mica, cristais de quartzo, borracha, titânio e zircônio. Nessas negociações, ênfase especial foi dada à borracha, produto que se tornara escasso após o avanço japonês no Sudeste Asiático.”
[3] Nenhum outro país da América do sul enviou tropas. Peru, Chile, Bolívia, Paraguai permaneceram neutras até 1944. Argentina priorizou a neutralidade, também, e só rompeu relações diplomáticas com as potências do Eixo em 1944, e a declaração de guerra tardia veio, somente, em abril de 1945.
[4] A Conferência de Bretton Woods realizou-se em julho de 1944 nos EUA, antes do final da guerra para desenhar a regulação do futuro do capitalismo. Três organizações nasceram e uma foi redesenhada na Conferência de Bretton Woods: o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (hoje Banco Mundial), o FMI (Fundo Monetário Internacional), e a OMC (Organização Mundial do Comércio), anteriormente, conhecida como Acordo Geral de Tarifas e Comercio. A quarta foi o BIS de Basiléia (Banco de Compensações Internacionais). Foi em Bretton Woods que se estabeleceu o dólar como moeda de reserva internacional, com uma convertibilidade fixa ao ouro.
[7]O Brasil perdeu 1,51 milhão de empregos com carteira assinada em 2015, segundo dados do Ministério do Trabalho. É o pior resultado em 31 anos, desde 1985, quando o levantamento começou a ser feito. É, ainda, a primeira vez em 24 anos que o país registra corte de vagas com carteira assinada. Em 1992, haviam sido fechadas 738 mil postos de trabalho. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/09/1813988-brasil-perdeu-15-milhao-de-vagas-com-carteira-assinada-em-2015-pior-marca-em-31-anos.shtml. Consulta em 13/12/2016.
[8] No Poder Executivo, 46,5% têm diploma de graduação, 2,6% fizeram alguma especialização, 4,9% têm mestrado e 8,4% concluíram o doutorado, sendo a parcela dos trabalhadores que tem a maior escolaridade. http://www.planejamento.gov.br/assuntos/gestao-publica/arquivos-e-publicacoes/BEP. Consulta em 13/12/2016.
[11] O emprego na indústria está em queda há quatro anos. Recuou em 2012 (-1,4%), 2013 (-1,1%), 2014 (-3,2%) e 2015 (-6,2%). O declínio na participação da indústria no PIB (Produto Interno Bruto) confirma uma dinâmica de relativa desindustrialização. A parcela recuou de 46,3% em 1989 para 26,5% do PIB em 2000. No primeiro semestre de 2015, chegou a 21,9% do PIB. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/02/1740663-emprego-industrial-cai-62-em-2015-aponta-ibge.shtml