Harrisson Stetler
Tradução de Sofia Schurig para a Jacobin Brasil
Na terça-feira passada, Nahel, um jovem de dezessete anos de origem franco-argelina, foi baleado e morto por um policial durante uma abordagem de trânsito nos subúrbios de Paris, em Nanterre. A morte do jovem — e as imagens da cena que para muitos se assemelham a uma execução — desencadearam um barril de pólvora em todo o país.
Nos últimos dias, grandes áreas urbanas e pequenas cidades regionais têm sido palco de uma onda de protestos, tumultos e saques. Muitos comentaristas estão comparando os eventos à revolta de 2005 que ocorreu após a morte de dois homens de cor perseguidos pela polícia ao norte de Paris. Na quinta-feira, milhares de pessoas participaram de uma marcha em Nanterre ao lado da família de Nahel e de ativistas contra a violência policial. Até sábado, mais de duas mil pessoas foram presas e centenas de policiais ficaram feridos nos confrontos.
Iniciada com a morte de Nahel, isso se transformou em uma revolta contra a polícia e seu papel na exclusão enfrentada pelas minorias na França. Ela se alimenta da experiência acumulada de diversas formas de assédio e violência diária por parte da polícia, desde abusos verbais baratos (dos quais praticamente todos com quem conversei na marcha de quinta-feira pareciam ter uma história) até o uso industrializado de multas por infrações menores contra comunidades de cor da classe trabalhadora.
As leis rigorosas da França sobre estatísticas tornam muito difícil coletar informações concretas sobre os efeitos do racismo. No entanto, um relatório de 2017 do Defensor dos Direitos da França, um órgão de controle público, sugere que jovens percebidos como negros ou árabes têm vinte vezes mais chances de serem parados para verificação de identidade do que pessoas percebidas como brancas.
Esses são os fatos. No entanto, é difícil ignorar a impressão de que a França está terrivelmente despreparada para enfrentar a morte de um jovem como Nahel – ou o significado inevitavelmente político da revolta que resultou disso.
Rápido em condenar as ações dos policiais capturadas em vídeo na esperança de acalmar as tensões, Emmanuel Macron e seu governo também cederam rapidamente aos apelos da direita por uma repressão rápida. Mais de quarenta e cinco mil policiais foram mobilizados em toda a França na noite de 30 de junho a 1º de julho, e o Ministério do Interior está começando a implantar forças treinadas para lidar com intervenções antiterroristas. Algumas dessas unidades foram vistas empunhando armas de fogo reais, como espingardas.
Até agora, o governo resistiu a esses apelos, mas Marine Le Pen está pedindo um estado de emergência em todo o país. Isso efetivamente proibiria protestos e aglomerações e autorizaria medidas como toques de recolher, ordens de ficar em casa e detenções especiais de indivíduos. Em certos subúrbios, toques de recolher já foram implementados, enquanto partes da rede de transporte na região de Paris foram fechadas mais cedo à noite do que o habitual.
Não há nada de surpreendente na intolerância aos tumultos, é claro. Mas o que revela é a rapidez com que uma revolta social foi enterrada sob os adornos e a retórica de uma outra batalha civilizacional de direita. Macron falou sobre os efeitos nefastos dos jogos de vídeo violentos.
Há também uma segunda força em jogo: os poderosos e inquietos sindicatos policiais da França, que transformaram essa crise em um teste de lealdade para Macron e seu governo. Após as imagens da morte de Nahel contradizerem as alegações iniciais de legítima defesa pelo policial que disparou o tiro fatal, os sindicatos policiais ficaram furiosos com as declarações críticas vindas de Macron e seus ministros.
“Nosso colega foi enforcado no pelourinho para comprar a paz e acalmar os revoltosos que estão atacando a república”, disse Davido Reverdy, do sindicato Alliance Police Nationale, ao Le Monde. Ele também criticou o fato de o policial ter sido detido e o anúncio dos promotores de que ele estava sob investigação por homicídio.
Mas essa dissidência escalou radicalmente em 30 de junho. Na véspera da quarta noite de ação, a Alliance Police Nationale e o Sindicato Nacional de Sindicatos Autônomos (UNSA) divulgaram um comunicado de imprensa inflamado ameaçando as “hordas selvagens” e as “pestes” que saem às ruas – e um aviso não dissimulado aos funcionários do governo.
“Todos os meios precisam ser mobilizados para restaurar o estado de direito o mais rápido possível”, declaram os dois sindicatos:
A Alliance Police Nationale e a UNSA Police assumem suas responsabilidades e querem alertar o governo de que, depois disso, estaremos mobilizados e que, sem medidas concretas de proteção legal para o policial, uma resposta penal adequada e recursos consequentes, os policiais serão os juízes do nível de consideração que deve ser oferecido em troca.”
Alguns elementos disso são muito enigmáticos, outros menos. “Hoje, a polícia está engajada em combate porque estamos em guerra”, conclui o comunicado. “Amanhã, estaremos em resistência e o governo precisa estar ciente disso.”
Os sindicatos policiais estão exigindo que o governo enterre quaisquer acusações criminais contra o policial que atirou em Nahel? Eles estão reivindicando o direito de usar formas de força letal além do gás lacrimogêneo, balas de borracha e outras formas oficialmente não letais de dissuasão normalmente utilizadas?
As duas organizações retrocederam em suas reivindicações, sugerindo que isso foi exagerado, mas críticos da esquerda interpretaram nessa mensagem bombástica um ataque ao sistema judiciário e ao governo eleito da França.
Porém, por enquanto, Macron e o Ministro do Interior, Gérald Darmanin, buscaram minimizar tudo isso, dependendo dessas forças para passar pelos próximos dias e semanas. “Não estou aqui para discutir”, disse Darmanin em resposta a uma pergunta sobre a carta aberta. “Essas não são minhas palavras.”
Mas essas não são as divagações isoladas de uma facção marginal dentro das fileiras policiais. As eleições sindicais realizadas no final de 2022 tiveram o bloco formado entre a Alliance Police Nationale e a UNSA Police emergindo como representantes líderes de uma profissão que ostenta uma taxa de sindicalização maciça, de 90%.
E isso também não é o primeiro exemplo de inquietação policial. Em maio de 2021, os sindicatos policiais da França organizaram um grande comício em frente à Assembleia Nacional em Paris, exigindo mais recursos para as forças policiais e o fim do que consideravam a leniência do sistema judiciário. “O problema da polícia está no sistema judiciário”, disse Fabien Vanhemelryck, secretário da Alliance Police Nationale, diante dos milhares de policiais e apoiadores no comício.
Durante a temporada eleitoral de 2022, os sindicatos apoiaram um esforço para consagrar uma presunção de “legítima defesa” para os policiais que usam a força. Quando Macron ousou falar do problema do racismo e da violência na polícia francesa no final de 2020, eles pediram um boicote às verificações de identidade e buscas.
Parte do que impulsiona a revolta de hoje é o papel desproporcional que as forças policiais adquiriram na vida francesa. Essa dependência se enraizou bem antes da presidência atual, mas Macron passou a depender dela mais do que talvez qualquer um de seus antecessores. E a ironia horrível agora é que ele está recorrendo a forças que clamam abertamente por distorcer a separação dos poderes e agir acima das autoridades eleitas. Tudo em nome da “ordem republicana”.