Miguel Urban – Éric Toussaint- Paul Murphy
Tradução: Chantal Liégeois.
Nestas semanas vê-se o fim do mandato de uma legislatura europeia ineficaz marcada pela pior pandemia deste século, assim como pela invasão da Ucrânia por Putin e pelo início de uma guerra em solo europeu que evoca as piores memórias das guerras mundiais do século passado. Um tempo em que o sistema internacional de governança liberal está entrando em colapso como um castelo de cartas, enquanto assistimos ao genocídio televisionado do povo palestiniano. E a nova legislatura que está a começar não parece ser muito melhor; ao contrário, ela talvez acelere os processos mais danosos: o crescimento da extrema-direita, a remilitarização, o regresso da austeridade, o racismo, a xenofobia, o neocolonialismo e uma desordem global marcada por conflitos interimperialistas.
O início da última legislatura não parecia prenunciar esta situação. Na verdade, começou com uma declaração “histórica” de emergência climática pelo Parlamento Europeu. Esta exigia que a Comissão Europeia garantisse que todas as suas propostas estivessem alinhadas com o objetivo de limitar o aquecimento a 1,5°C, reduzindo as emissões em 55% até 2030 para atingir a chamada neutralidade de carbono em 2050. Nascia assim a justificação política e democrática do Pacto Ecológico Europeu. No entanto, é fundamental lembrar que esta declaração não teria sido possível sem as mobilizações climáticas lideradas pela juventude nos meses que antecederam as eleições europeias de 2019, marcadas precisamente pela necessidade de enfrentar a crise ecológica em curso.
Acima de tudo, desde a crise de 2008, a ausência de um projeto político europeu para além do lucro máximo dos mercados, a constitucionalização do neoliberalismo e a consagração de um modelo de autoridade burocrática imune à vontade popular, corroeram o apoio popular à UE, afetando a sua legitimidade e até mesmo sua própria integridade. Neste sentido, o Pacto Verde Europeu parecia justificar-se por dar uma nova legitimidade política e social ao projeto neoliberal europeu, tingindo-o de verde.
A relativa acalmia pós-austeridade durante a crise pandémica não foi acompanhada por qualquer mudança de rumo nas políticas neoliberais da UE. Assim, para enfrentar à emergência sanitária e aos efeitos da pandemia, a UE não foi capaz de construir uma resposta sanitária comum, para além de se tornar uma central de compras de vacinas; não aproveitou a situação para reforçar os sistemas de saúde dos Estados-Membros ou para criar uma empresa farmacêutica pública europeia para fazer frente a prováveis epidemias ou pandemias futuras. Enquanto, do ponto de vista económico, a resposta dos governos, da Comissão Europeia e do BCE foi aumentar a dívida, em vez de financiar grande parte do esforço financeiro com as receitas fiscais provenientes dos lucros inesperados das grandes empresas farmacêuticas, dos GAFAM e dos bancos, que foram os verdadeiros vencedores da crise. Mais uma vez, vimos como a UE se tornou um projeto de milionários à custa de milhões de pessoas pobres.
Pelo contrário, a pandemia foi o início do questionamento das políticas que teriam de acompanhar a declaração de emergência climática aprovada pelo Parlamento. Ao mesmo tempo que serviu de catalisador para uma (nova) gigantesca transferência de dinheiro público para mãos privadas, com os Fundos de Recuperação a servirem de suporte aos interesses do grande capital. E tudo isto enquanto se vende a ilusão euro-reformista de que é possível praticar uma política que não se baseie no ajustamento, sem pôr definitivamente em causa os tratados europeus e as regras básicas pelas quais a economia europeia tem funcionado nas últimas três décadas. Uma ilusão de ótica de “outra saída para a crise” que, na prática, no entanto, apenas aprofundou a especialização produtiva de cada país da UE e solidificou as relações hierárquicas entre os capitalismos centrais em torno da Alemanha, França e Benelux e os periféricos.
Mas se a gestão da pandemia foi a desculpa, a invasão da Ucrânia por Putin tornou-se o pretexto ideal para uma verdadeira doutrina de choque. Não só a UE está a remilitarizar-se para poder falar a “linguagem dura do poder” numa desordem global em que as disputas por recursos escassos estão a tornar-se cada vez mais agudas, como também a agenda comercial europeia agressiva está a ser acelerada sob o pretexto da guerra. Quando estamos em guerra, vale tudo. Um bom exemplo disto é a rapidez e a facilidade com que a maquilhagem verde da UE desapareceu quando a Comissão Europeia decretou que o gás e o nuclear deviam ser considerados energia verde sob o pretexto de quebrar a dependência energética da Rússia.
Assim, estratégias aprovadas a meio da legislatura, como a “do campo para a mesa” (farm to table) um dos pilares do Pacto Verde Europeu , que prometia triplicar a área dedicada à agricultura biológica, reduzir para metade os pesticidas e diminuir em 20% os fertilizantes químicos na UE até 2030, tornaram-se mais uma vítima da guerra na Ucrânia. Vale tudo quando há guerra. Da mesma forma, a Comissão Europeia anunciou a autorização da utilização das chamadas “áreas de interesse ecológico” e de terras em pousio para aumentar a produção agrícola europeia. Mais uma vez com o pretexto de que a segurança alimentar deve ter prioridade sobre o desenvolvimento da agricultura biológica. Mais uma vez a guerra como pretexto.
Na ausência de ameaças militares tradicionais que justifiquem o aumento das despesas com a defesa, a securitização das fronteiras externas da UE tornou-se, ao longo dos anos, uma mina de ouro para a indústria europeia de defesa. São as mesmas empresas de defesa e segurança que lucram com a venda de armas ao Médio Oriente e a África, alimentando os conflitos que levam muitas pessoas a fugir para a Europa em busca de refúgio. As mesmas empresas que fornecem o equipamento para os guardas fronteiriços, a tecnologia de vigilância para controlar as fronteiras e a infraestrutura tecnológica para seguir os movimentos de população. Todo um “negócio de xenofobia”, nas palavras da investigadora francesa Claire Rodier. Um negócio que, dada a sua opacidade e margens difusas, conta cada vez mais com tópicos orçamentais da UE disfarçados de ajuda ao desenvolvimento ou de “promoção da boa vizinhança”. De fato, poderíamos dizer que o mais próximo que a UE teve até agora de um exército europeu foi a Frontex, a agência encarregada de administrar o sistema europeu de vigilância das fronteiras externas como se fosse uma frente militar.
Uma dinâmica que, como define Tomasz Konicz, é consubstancial ao imperialismo de crise do século XXI, que já não é apenas um fenómeno de exploração de recursos, mas que também se esforça por fechar hermeticamente os centros da humanidade supérflua que o sistema produz na sua agonia. Assim, a proteção das relativas ilhas de bem-estar que restam é um momento central das estratégias imperialistas, reforçando as medidas de segurança e controlo que alimentam um autoritarismo crescente. Um bom exemplo disto é o endurecimento das leis de migração da UE nas últimas décadas, que atingiu o seu clímax na aprovação do “Pacto Europeu sobre Migração e Asilo” em abril de 2024. Um autoritarismo da escassez que se conecta perfeitamente com a subjetividade da falta de recursos que décadas de choque neoliberal construíram entre grandes camadas da população. Este sentimento de escassez está no cerne da xenofobia do chauvinismo assistencialista que se liga perfeitamente à ascensão do autoritarismo neoliberal do “cada um por si” na guerra dos últimos contra os penúltimos.
Ao imaginário da Europa Fortaleza das invasões bárbaras e da sua deriva autoritária, junta-se agora o perigo do novo imperialismo russo. O álibi perfeito para construir o novo projeto neo-militarista europeu que reforça ainda mais o neoliberalismo autoritário da Europa. Nada é mais coeso e legitimador do que um bom inimigo externo. “A Europa está hoje mais unida do que nunca” é o novo mantra nos corredores de Bruxelas. Um mantra que se repete para afastar os fantasmas das crises recentes e para projetar para o exterior que a Europa tem de novo um projeto político comum.
A remilitarização da Europa é uma aspiração que as elites europeias esconderam durante muito tempo como Bussóla Estratégica (Strategic Compass) ou com eufemismos como uma maior autonomia estratégica da UE. E até agora parecia ter demasiados obstáculos para ser concretizada. A própria Presidenta da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, perguntou retoricamente, no seu discurso sobre o estado da União em 2021, por que razão não se registaram progressos até agora no que diz respeito a uma defesa comum: “O que nos impediu de fazer progressos até agora? Não é a falta de recursos, mas a falta de vontade política". É exatamente essa vontade política que parece estar em falta desde a invasão da Ucrânia, que se tornou o pretexto perfeito para a aceleração da agenda das elites neoliberais europeias, que já não vêem a remilitarização da UE não só como a sua tábua de salvação, mas abertamente como o novo projeto estratégico de integração europeia para complementar o constitucionalismo de mercado que tem prevalecido até agora. Uma Europa dos mercados e da “segurança”.
Assim, no contexto da policrise global - que enfraquece ainda mais o peso geoeconómico e geopolítico da UE - está a dar novos saltos em frente na sua integração financeira e, por sua vez, militar, em nome da competitividade e em resposta à invasão injusta da Ucrânia. Von der Leyen afirmou no Parlamento Europeu, algumas semanas após a invasão da Ucrânia, que a UE estava mais unida do que nunca e que tinham sido feitos mais progressos em matéria de segurança e defesa comuns “em seis dias do que nas últimas duas décadas”, referindo-se à libertação de 500 milhões de euros de fundos da UE para equipamento militar destinado à Ucrânia. Não se pode negar que as elites europeias estão a utilizar a guerra na Ucrânia como forma de acelerar a agenda das elites neoliberais europeias que procuram uma aliança financeira e comercial mais estreita entre si e, por sua vez, uma remilitarização da UE como instrumento útil para o seu projeto de uma “Europa potência”. Isto complementa o constitucionalismo de mercado que tem prevalecido até agora com uma integração militar e securitária que visa transformar a economia europeia para a guerra.
Estamos diante uma verdadeira mudança de paradigma, em que a UE, como afirmou o Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, “deve aprender rapidamente a falar a linguagem do poder”, e “não confiar apenas no ‘soft power’, como temos feito até agora” . Neste sentido, em março de 2022, os Estados-Membros aprovaram a Bússola Estratégica (Estrategic compass), um plano de ação para reforçar a política de segurança e defesa da UE até 2030. Embora esta Bússola Estratégica tenha sido elaborada durante dois anos, o seu conteúdo foi de fato rapidamente adaptado ao novo contexto aberto pela invasão russa da Ucrânia. "Este ambiente de segurança mais hostil obriga-nos a dar um salto decisivo e exige que aumentemos a nossa capacidade e vontade de agir, reforcemos a nossa resiliência e asseguremos a solidariedade e a assistência mútua”. Esta nova posição, definida no Estrategic Compass, constrói uma visão da defesa europeia que já não se baseia na manutenção da paz, mas na segurança nacional-europeia e na proteção de “rotas comerciais fundamentais”. Ou seja, a proteção dos interesses europeus, assegurando simultaneamente a “autonomia estratégica” da UE.
O interesse das elites europeias em falar a linguagem dura do poder está intimamente ligado à nova agressividade “verde” neocolonial e extractivista da UE, que visa assegurar o fornecimento de matérias-primas escassas, essenciais para a economia europeia e para a sua transição supostamente verde, num contexto de lutas crescentes entre velhos e novos impérios. Como afirma Mario Draghi: “num mundo em que os nossos rivais controlam grande parte dos recursos de que necessitamos, temos de ter um plano para assegurar a nossa cadeia de abastecimento - desde os minerais essenciais às baterias e a infraestrutura de recarga. A remilitarização europeia é apenas o passo necessário para ser capaz de falar a linguagem dura do poder para garantir as matérias-primas e os recursos necessários às empresas europeias.
O Estratégic compass repete várias vezes que “a agressão da Rússia na Ucrânia constitui uma mudança tectónica na história europeia” à qual a UE tem de responder. E qual é a principal recomendação desta Bússola Estratégica? Aumento das despesas militares e da coordenação. Precisamente num contexto em que os orçamentos militares dos Estados-Membros da UE são mais de quatro vezes superiores aos da Rússia e em que as despesas militares europeias triplicaram desde 2007. Este aumento das despesas com a defesa foi concretizado no Conselho Europeu de Versalhes, no qual os Estados-Membros se comprometeram a gastar 2% do seu PIB na defesa. Trata-se do maior investimento em defesa na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Por isso mesmo, nessa reuniao de cúpula, o Presidente do Conselho, Charles Michel, declarou sem rodeios que a invasão russa da Ucrânia e a reação orçamental da UE tinham “consagrado o nascimento da defesa europeia”.
A este respeito, em março de 2024, a Comissão Europeia apresentou a Primeira Estratégia Industrial de Defesa, que visa um conjunto ambicioso de novas ações para apoiar a competitividade e a prontidão da indústria da defesa em toda a União. O objetivo primordial é melhorar as capacidades de defesa do bloco, promovendo a integração das indústrias dos Estados-Membros e reduzindo a dependência da aquisição de armas fora do continente. Em suma, para preparar a indústria europeia para a guerra, como afirmou Von der Leyen perante a sessão plenária do Parlamento Europeu, embora “a ameaça de guerra possa não ser iminente, mas não é impossível”, é hora que “a Europa dé um passo em frente”.
Embora o Estratégic compass assinale os passos para uma maior autonomia estratégica europeia, o documento deixa claro que a Aliança Atlântica “continua a ser a base da defesa colectiva dos seus membros”. Desde o fim do Pacto de Varsóvia e da queda do Muro de Berlim, a OTAN tem procurado reinventar-se e adaptar-se a uma nova realidade geopolítica em que a transcendência do elo transatlântico parecia ter sido ultrapassada. O próprio presidente francês Emmanuel Macron afirmou em 2019 que a falta de liderança dos EUA estava a fazer com que a Aliança Atlântica se tornasse “morta cerebralmente” e que a Europa precisava de começar a agir como uma potência estratégica global. Agora, com os soldados russos a invadir a Ucrânia e com Moscou a ameaçar tacitamente usar armas nucleares, a OTAN está a viver um ressurgimento, um regresso ao propósito e um novo sentido existencial.
De fato, o próprio Emmanuel Macron deixou a porta aberta ao envio de tropas terrestres da OTAN para combater na Ucrânia: “Faremos tudo o que for possível para impedir que a Rússia ganhe esta guerra. Estamos convencidos de que a derrota da Rússia é necessária para a segurança e a estabilidade na Europa". Para além de fornecer a Kiev “mísseis e bombas de longo alcance”, algo que não tinha acontecido até agora devido ao receio de uma escalada do conflito. Mas, desde há alguns dias, tanto Joe Biden como os seus parceiros europeus permitiram que o seu equipamento militar fosse utilizado contra alvos na Rússia, numa tentativa de atenuar a ofensiva russa em Kharkov. A cada mês que passa, todas as linhas vermelhas e precauções dos EUA e da UE estão a diluir-se, o que nos aproxima inexoravelmente de um conflito armado com soldados da OTAN em solo ucraniano, que poderá conduzir a uma Terceira Guerra Mundial com cenários totalmente desconhecidos e perigosos.
A invasão da Ucrânia por Putin não só permitiu a coesão da opinião pública europeia com base num forte sentimento de insegurança face a ameaças externas - a própria ministra da Defesa espanhola, Margarita Robles, afirmou, em resposta ao apelo da UE ao rearmamento, que a sociedade “não está consciente” da “ameaça total e absoluta” da guerra, legitimando o maior aumento das despesas militares desde a Segunda Guerra Mundial. Mas, ao mesmo tempo, permitiu que a OTAN e o imperialismo norte-americano diluíssem qualquer aparência de independência política da UE, ao mesmo tempo que recuperavam uma legitimidade e uma unidade perdidas há muito tempo, especialmente após o fracasso da ocupação do Afeganistão.
Se a invasão da Ucrânia por Putin rapidamente tornou-se um pretexto perfeito para explorar todas estas inseguranças e dores derivadas da fragmentação social neoliberal, aumentando exponencialmente os orçamentos de defesa e favorecendo uma integração europeia baseada na remilitarização, o apoio ao Estado de Israel na sua punição colectiva do povo palestiniano funciona hoje como um acelerador da deriva militarista e belicista da UE.
Um massacre em que a UE não só subscreve a política de crimes de guerra do Estado sionista contra a população civil de Gaza, invocando um inexistente “direito de defesa” por parte de uma potência ocupante, como reprime e tenta ilegalizar qualquer voz interna que discorde da sua política de apoio incondicional à ocupação israelita da Palestina. Uma deriva McCarthyista, onde o verdadeiro objetivo não é apenas anular a solidariedade com a causa palestiniana, mas disciplinar a população europeia em torno dos interesses geoestratégicos das suas elites, que não são outros senão a remilitarização da Europa em torno da guerra na Ucrânia e o apoio incondicional a Israel. Mas talvez o único aspeto positivo desta remoção de máscaras e de palavras bonitas seja o fato de podermos, finalmente, remeter para o caixote do lixo da história todos os chamados “valores europeus” e “mitos fundadores da paz” com que a máquina de propaganda da UE está constantemente a martelar.
Neste sentido, a construção de inimigos internos como bodes expiatórios para justificar e sustentar modelos cada vez mais repressivos e cortes nas liberdades gerais, especialmente dirigidos àqueles que são considerados minorias perigosas, desempenha um papel fundamental. E aqui uma minoria perigosa é qualquer pessoa que não se enquadre no quadro identitário da brancura cristã europeia. Mas sabendo que a pertença à comunidade já não depende tanto de uma questão de nascimento como de um compromisso ideológico com os valores que as elites estipulam como autênticos. Deste modo, não é francês quem simplesmente nasce e cresce em França, mas quem, além disso, se identifica com uma identidade supostamente francesa previamente definida a partir de cima. E aqueles que rejeitam estes valores franceses deixam simplesmente de ser franceses, independentemente do local onde nasceram, do que está escrito no seu passaporte ou na camisola da sua seleção nacional. Porque, atualmente, a pertença a uma comunidade nacional está ligada a uma suposta identidade e é pensada em termos cada vez mais etnoculturais e ideológicos.
Neste contexto, a extrema-direita marca a agenda e o chamado centro cumpre-a, executa-a e normaliza-a. E não apenas por mera convicção ideológica, mas por puro interesse estratégico: em sociedades capitalistas que atravessam múltiplas e crescentes crises e instabilidades, o desenvolvimento crescente da repressão e da securitização torna-se um seguro de vida. A exploração e o aproveitamento dos medos e das inseguranças para construir uma ideologia de segurança permitem dotar o projeto neoliberal autoritário de coerência e identidade. Sociedades reconstruídas e tensões contidas através da exclusão e expulsão dos sectores mais vulneráveis ou dissidentes.
Uma extrema-direita que consegue alcançar cada vez mais quotas de poder na UE, ao ponto de se tornar um sujeito fundamental na determinação das maiorias parlamentares na próxima legislatura. De fato, a burocracia eurocrata de Bruxelas está consciente de que necessitará do apoio de uma parte desta família política para assegurar a governação da UE e, por isso, iniciou uma campanha de diferenciação entre a “boa extrema-direita” e a “má extrema-direita”; isto é, entre a extrema-direita que abraça sem ambiguidades a política económica neoliberal, a remilitarização e a subordinação geoestratégica às elites europeias e a extrema-direita que ainda as questiona, embora cada vez mais timidamente.
A eurocracia europeia prepara-se a acrescentar um lugar na governação europeia para a extrema-direita, enterrando definitivamente todos os tabus e precauções que as democracias ocidentais tiveram contra estas forças políticas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Tudo isto num contexto em que os tambores de guerra batem nas chancelarias, aproximando-nos perigosamente do cenário de uma nova confrontação militar global, tendo como pano de fundo a emergência climática e o desmantelamento da governação multilateral e do direito internacional que tem regido a globalização neoliberal nas últimas décadas.
As elites europeias aproveitam a situaçao para lançar numa nova fase do projeto da UE, na qual pretendem reforçar um modelo de federalismo oligárquico e tecnocrático. Foi isso que o antigo diretor da Goldman Sachs, Mario Draghi, propôs abertamente no seu recente relatório encomendado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen: acelerar a criação de mecanismos de decisão conjunta das instituições europeias para favorecer a união dos mercados de capitais da UE e poder atuar em melhores condições na corrida a uma competitividade cada vez mais intensa com as outras grandes potências, em declínio ou em ascensão, após o fim da globalização feliz.
Esse perigoso cocktail promete novos conflitos, uma recomposição dos actores, um ampliação do campo de batalha e, sobretudo, uma aceleração dos conflitos inter-imperialistas. Para além das apreciações sobre as tácticas militares, o que está fora de dúvida é que os vencedores até agora da invasão russa da Ucrânia são: o próprio imperialismo russo, que conseguiu ocupar e anexar parte dos territórios que procurava; a OTAN, que passou de um estado de “morte cerebral” a estar no melhor momento político da sua história; o velho desejo das elites europeias de usar o militarismo como mecanismo de integração; e as empresas que fabricam a morte, que nunca antes tiveram tanto lucro. E os principais derrotados, como sempre, são os povos, neste caso o ucraniano, que, no entanto, continua a resistir à invasão e, tal como os activistas russos que lutam contra a guerra de Putin, merece o nosso apoio.
Embora o Parlamento Europeu tenha começado a legislatura de 2019 declarando emergência climática, terminou por soar os tambores de guerra nas chancelarias europeias, promovendo uma remilitarização incompatível com qualquer processo de transição eco-social. Tudo indica que a próxima legislatura será marcada pelo regresso das receitas de austeridade, mas desta vez sob a égide de um orçamento de defesa expansivo que assegurará a remilitarização da Europa e a reconversão da nossa indústria de armamento. É, portanto, mais necessário do que nunca trabalhar para construir um amplo movimento antimilitarista transnacional que desafie o projeto das elites de uma remilitarização austeritária da Europa co-governada pelo extremo centro e pela onda reacionária.
Para tal, é essencial pôr em causa o conceito de segurança baseado nas despesas com armamento, defesa e infraestruturas militares. Como alternativa, deve ser proposto um modelo antimilitarista de segurança, garantindo o acesso a um sistema de saúde pública funcional, à educação, ao emprego, à habitação, à energia, melhorando o acesso a serviços sociais que assegurem uma vida digna e respondendo às alterações climáticas numa perspetiva ecossocialista. Como afirma o manifesto ReCommons Europe,“as forças da esquerda política e social que desejam encarnar uma força de mudança na Europa com o objetivo de lançar as bases para uma sociedade igualitária e solidária, devem adotar imperativamente políticas anti-militaristas. Isto significa lutar não só contra as guerras das forças imperialistas europeias, mas também contra a venda de armas e o apoio a regimes repressivos e beligerantes".
A condenação da invasão russa e a solidariedade com o povo ucraniano devem incorporar intrinsecamente a rejeição do imperialismo russo e a rejeição da remilitarização da UE e do renascimento da Aliança Atlântica OTAN. O nosso apoio ao povo ucraniano e a luta contra o imperialismo russo não podem, em caso algum, parecer subordinados ao nosso próprio imperialismo. Temos de escapar à armadilha binária de ter de apoiar um imperialismo contra outro, aceitando a lógica da União Santa dos alvores da Primeira Guerra Mundial com novos créditos de guerra. Como anti-capitalistas, a nossa tarefa deve ser precisamente quebrar esta dicotomia e adotar uma posição clara, ativa e anti-militarista a favor dos povos ucraniano e russo, criando o nosso próprio campo independente dos imperialismos em disputa, que defenda o direito à deserção ativa e à objeção de consciência de todos os soldados e o seu acolhimento como refugiados políticos, o não pagamento da dívida ucraniana, o fim dos memorandos neoliberais à Ucrânia; pela paz sem anexações; pela retirada incondicional das tropas russas da Ucrânia; e pela garantia do direito dos povos, sem exceção, a decidirem livremente o seu futuro.
Está em jogo o modelo de sociedade para as próximas décadas. Neste mundo em chamas, o conflito subjacente é entre capital e vida, interesses privados e bens comuns, propriedade e direitos. Nunca conseguiremos empreender uma transição ecológica e social sem combater a doença capitalista do militarismo. Hoje, mais do que nunca, é essencial abrir um novo ciclo de mobilizações capaz de passar do nível estatal para o europeu.
Precisamos de quebrar a ilusão euro-reformista da UE para forçar aa passagem de um sistema democrático, anti-neoliberal, anti-militarista, feminista, ecológico-socialista e anti-colonial que abra a porta a um novo projeto de integração europeia. Só assim e ali haverá, como insistiu Rosa Luxemburgo: socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres.
Migue Urban: Deputado do Parlamento Europeu e membro dos Anticapitalistas
Éric Toussaint: Membro fundador da rede internacional CADTM
Paul Murphy: Membro do Parlamento irlandês pelo People Before Profit