POR KAVEL ALPASLAN
Artigo publicado em El Salto em 22 de março de 2025.
Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net
A detenção do principal rival político de Erdogan provocou protestos em massa em todo o país, que ameaçam transformar-se em mobilizações gerais de descontentamento contra o Governo.
A Turquia está assistindo às maiores manifestações anti-governamentais dos últimos anos. A detenção do Presidente da Câmara de Istambul, Ekrem Imamoglu, o principal rival político do Presidente Recep Tayyip Erdogan, foi o gatilho que incendiou as ruas de todo o país, com milhares de cidadãos - sobretudo estudantes - desafiando a proibição de manifestações de apoio ao líder da oposição. Imamoglu já enfrentava há mais de um ano acusações de injúria e corrupção que ameaçavam afastá-lo da política. Agora, os procuradores o investigam por duas novas acusações de corrupção e de liderar uma organização criminosa, ligando-o à organização armada Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que é considerada uma organização terrorista na Turquia e na UE.
A sua detenção ocorreu na quarta-feira, apenas quatro dias antes de o seu partido, o CHP social-democrata - a segunda maior força parlamentar - realizar as eleições primárias para escolher o seu candidato à presidência, sendo Imamoglu o favorito. Poucas horas antes da sua detenção, a Universidade de Istambul - a pedido do Ministério Público - cancelou a licenciatura de Imamoglu. Se um tribunal confirmar esta medida, o candidato poderá ficar fora da corrida à presidência: a lei eleitoral exige que o presidente tenha um diploma universitário.
Jovens, ponta de lança das mobilizações
Os protestos estão a alastrar dos campus universitários de todo o país para as principais praças e ruas das cidades. Mais de uma centena de pessoas foram detidas durante os protestos ou por criticarem a medida nas redes sociais. Embora as autoridades tenham restringido a Internet em todo o país e bloqueado o acesso às contas dos sindicatos e das organizações de esquerda nas redes sociais, a medida não impediu que grupos de jovens se juntassem aos protestos numa mobilização geral. A polícia respondeu a estas iniciativas com grande violência, tentando, sem sucesso, dispersar as multidões com gás lacrimogéneo, balas de borracha e canhões de água.
A última vez que a Turquia assistiu a uma mobilização deste tipo foi durante os protestos de Gezi, em 2013, quando Erdogan, na altura primeiro-ministro, quis gentrificar o último espaço verde no centro de Istambul, dando origem a manifestações em massa que levaram a um clamor contra o crescente autoritarismo do governo.
O CHP considera a detenção um “golpe de Estado”, Erdogan minimiza os acontecimentos
Imamoglu acusa o governo de “usar o poder judicial como arma” contra a oposição, numa tentativa de se manter no poder. Enquanto a polícia esperava à porta de sua casa, na madrugada de quarta-feira, o presidente da Câmara publicou um vídeo nas redes sociais apelando à população para não se render à “tirania” do governo. A detenção, descrita como um “golpe de Estado contra o próximo Presidente”, segundo o CHP, parece ser o ponto de partida de uma série de medidas - confisco de bens, dissolução da sua empresa - que apontam para a possível intervenção total da Câmara de Istambul, impondo um administrador, como aconteceu com dezenas de autarcas curdos no sudeste do país.
Perante o crescente descontentamento social, os governos de grandes províncias como Ancara e Izmir juntaram-se às medidas tomadas pelo governo de Istambul (todos nas mãos do partido islamita AKP, no poder), que proibiu durante dias manifestações, protestos e eventos públicos, numa tentativa de impedir mobilizações por causa da detenção de Imamoglu.
Erdogan, nas suas primeiras declarações após a detenção de Imamoglu, acusou o partido da oposição de “enganar o povo” ao exagerar a sua detenção. “Os esforços da oposição para apresentar as suas lutas internas ou problemas legais como o problema mais importante do país são o cúmulo da hipocrisia”, afirmou Erdogan num discurso transmitido pela televisão. O Presidente reiterou que cabe aos tribunais determinar se as acusações contra Imamoglu são válidas, embora tenha garantido que “eles sabem perfeitamente que tudo é verdade”.
A detenção de Imamoglu despertou uma onda de descontentamentos
Para Beyda Ceylan, estudante da Universidade de Bósforo, em Istambul, a detenção de Imamoglu foi a gota de água. A estudante afirma que os protestos vão para além do presidente da Câmara e que se trata de uma rejeição geral do empobrecimento, da destruição dos direitos sociais e da restrição das liberdades através das políticas neoliberais. “Nos últimos anos, os jovens têm sido arrancados um a um dos espaços sociais, privados de autonomia nos campus universitários, as oportunidades educativas têm sido reduzidas”, afirma ao El Salto. “Por outras palavras, a juventude foi privada de ser jovem. Estamos a assistir à libertação da raiva acumulada durante muito tempo contra tudo isto, por isso não tem limites; não temos medo", afirma.
Na costa do Mar Egeu, em Izmir, o ativista Serdar Türkmen diz que continuam nas ruas apesar da proibição de protestos. “Derrubámos o muro do medo”, diz. “Os protestos são dominados por jovens. Há também pessoas que não estão habituadas a manifestar-se, que nunca se envolveram em lutas sociais, mas esta causa levou-as a sair à rua. Não há apenas pessoas de esquerda em ação, é um espetro muito amplo, incluindo jovens que estão a estrear-se na política”, descreve.
Para Türkmen, a detenção de Imamoglu é “a eliminação política do rival por parte de Erdogan”. “Foi executada sob o pretexto da lei. Estão a tentar apresentá-lo com mentiras e calúnias e é por isso que ninguém está convencido, mesmo entre os membros do próprio AKP”, acrescenta. O jovem recorda os milhares de pessoas - políticos, ativistas, advogados, jornalistas - opositores turcos e curdos que foram presos nos últimos anos com base em casos falsos ou infundados. Türkmen adverte que os protestos “são um limiar para quebrar o clima de medo” de protestar ou de falar, que existe há muito tempo no país. É por isso que as mobilizações vão para além do CHP. “Não podemos deixá-las apenas nas mãos deste partido”, afirma.
O líder do CHP, Özgür Özel, incentivou os cidadãos a “estarem na rua”, enquanto continua a fazer campanha para as primárias presidenciais do seu partido. Esta dicotomia suscitou queixas entre os manifestantes, que afirmam querer sair à rua para protestar, “não para assistir a um comício político”, gritaram os jovens em Istambul.
Entre as urnas e as ruas
Durante todos estes protestos, o líder do CHP, Özgür Özel, afirmou, por um lado, que “estariam na rua” e, por outro, apontou como solução as eleições que o seu partido iria realizar no domingo. Esta situação levantou questões entre as massas que saíram à rua. “O CHP, depois de ter feito uma declaração, terminou o protesto, mas as pessoas querem continuar nas ruas. Isto também prova o seguinte: o problema não se limita a Imamoglu”, salienta Türkmen.
Há muitos anos que a Turquia é governada com mão de ferro por Erdogan. A oposição, pelo contrário, está condenada à equação eleitoral. Quando tudo isto se junta ao ataque da oposição ao potencial candidato presidencial, é inevitável que o resultado se traduza nas ruas. Os presos políticos enchem as cadeias, há manifestações e marchas, os direitos e as liberdades sofrem golpes sucessivos. É, pois, necessário olhar mais de perto para as multidões que enchem as praças na Turquia.
Os protestos podem ser encaminhados para as urnas pelo CHP. Talvez ultrapassem o partido e evoluam para um processo semelhante ao de Gezi, em 2013. Seja como for, os próximos dias serão extremamente críticos para a Turquia e a crise política irá agravar-se. Mas a realidade é que o muro do medo que estava a ser construído há anos foi ultrapassado..