Uma Nova Etapa Política no Chile

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Uma entrevista com Pablo Abufom Silva*

Recentemente foi apresentado o rascunho de uma nova Constituição que poderia substituir a implementada durante a ditadura do general Augusto Pinochet. Se aprovada, a nova Constituição reconhecerá, pela primeira vez, os povos originários do Chile, incluirá os direitos reprodutivos em seus artigos, tornará gratuita a educação de ensino superior, estabelecerá a igualdade de gênero no governo e exigirá a implementação de políticas de mitigação e adaptação à crise climática. O rascunho não inclui a nacionalização parcial da indústria de mineração do país.

A versão final da Constituição será submetida a votação por parte do povo chileno no dia 4 de setembro. Algumas pesquisas recentes mostram que cerca de 40% da população diz que votará pelo . Pablo Abufom, da Jacobin, foi ao programa Democracy Now, onde discutiu o potencial radical da nova Constituição no Chile. O artigo que segue é uma transcrição reproduzida com a permissão do Democracy Now.

AG - Pablo, o que está se passando no Chile? Por que é tão histórico e por que é tão significativo o processo constitucional?

PA – Primeiro, é importante dizer que esse processo põe fim a constituição neoliberal que foi imposta pelos militares durante a ditadura. Esse é o primeiro fato histórico importante. Em segundo lugar, se trata de uma Constituição escrita de maneira democrática, quer dizer, escrita em um contexto democrático, e não nos marcos de uma ditadura, mas também escrita com uma participação popular e representativa da verdadeira diversidade do povo e dos povos do Chile.

É uma Constituição redigida por um corpo democraticamente eleito, com paridade de gênero, com representantes dos povos indígenas, com representantes dos movimentos sociais e populares. Ademais, tem uma minoria de representantes dos ricos, que haviam sido maioria nos órgãos representativos no Chile até agora.

Por isso, essa Constituição marca uma diferença muito importante com a última constituição que tínhamos, desde 1980, mas também com as constituições anteriores, que haviam sido escritas por grupos de advogados constitucionalistas ou políticos eleitos de maneira arbitrária pelo governo.

Se trata de uma Constituição e um processo constituinte que esteve aberto à participação da sociedade civil, que levantou iniciativas e apresentou propostas de artigos que foram recebidos também pela Convenção [Constitucional]. Isso é realmente significativo, na medida em que reconhece as aspirações da revolta popular que surgiu em outubro de 2019.

Não reconheceu todas as aspirações, é claro. A Constituição não vai resolver todos os problemas. Porém, se tornou possível representar essas aspirações, essa necessidade de resolver de maneira urgente alguns problemas estruturais do regime político e econômico do Chile.

NS – Como foram escolhidos os membros da Convenção Constitucional e quem se encarregou de elaborar o rascunho da Constituição? 

PA – O processo eleitoral foi distinto dos das eleições parlamentares e eleições políticas anteriores. Em primeiro lugar, foi um processo que incluía a paridade de gênero, ou seja, uma representação de ao menos 50% de mulheres nas listas iria ser eleita, mas também a própria eleição.

Em segundo lugar, incluía a representação assegurada dos distintos povos indígenas que habitam o território chileno. Permitiu que chegassem a Convenção Constitucional vários setores que sempre haviam estado excluídos do sistema político do chile; mas além de povos indígenas, também incluía uma representação majoritária de mulheres, de setores da comunidade LGBTQ, dos movimentos sociais – particularmente do movimento feminista – e dos movimentos socioambientais que lutam contra a devastação capitalista e extrativista do meio ambiente e das comunidades.

Isso significou a conformação de um órgão representativo, democrático, muito distinto do que temos no Congresso, no qual, por conta do general, só as elites políticas conseguiriam chegar. Isso repercutiu em uma das decisões tomadas na Convenção [Constitucional] e na nova Constituição, que é a eliminação do Senado e a criação de uma câmara de representação das regiões e das províncias. Isso significa que o veto aristocrático do Senado no Chile desapareceria. E isso é uma mudança política muito significativa que não seria possível sem a participação desses setores.

O reconhecimento do trabalho doméstico, do trabalho de cuidado, como um trabalho que tem impacto econômico a nível social, é também algo que só é possível porque o movimento feminista estava ali. Enfim, há uma série de direitos osciais que estão garantidos por essa representação democrática. 

NS – Que apoio tem o rascunho da nova Constituição entre o povo chileno? As pesquisas sugerem que nesse momento só 40% votariam a favor. 

PA – Primeiramente, é importante dizer que as pesquisas que sinalizam essa informação são as mesmas que diziam que o povo chileno ia rechaçar a criação de uma nova Constituição; os mesmos que diziam que iria ganhar o candidato da ultra direita, José Antonio Kast, ainda que o que tenha ganhado seja o candidato progressista Boric. Portanto, há pesquisas encomendadas por certos setores e grupos econômicos que são os grandes perdedores desse processo e tem um interesse em mostrar que não há apoio quando efetivamente existe.

Os dados reais que encontramos, contra as pesquisas de opinião, são que 80% da população votou a favor de mudar a Constituição; que uma maioria, mais de 50% das candidaturas eleitas para a Convenção [Constitucional] foi de setores de esquerda, independentes, populares, de povos originários, feministas; e que a segunda volta eleitoral da presidência mostrou que milhões de pessoas salientaram o voto em um candidato progressista que, de alguma maneira – apesar de suas complicações e as diferenças que podemos ter com ele – encarna esse processo constituinte.

Portanto, é de se esperar que a nova Constituição, na qual as pessoas podem ver seus direitos sociais sendo garantidos em um futuro próximo, terá um apoio majoritário. Além disso, devemos dizer que os setores que rechaçam a nova Constituição estão a mais de um ano fazendo campanha, enquanto os setores que estavam a favor da mudança constitucional estavam – e estamos – trabalhando para fazer essa mudança. 

AG – Você pode falar da cerimônia do 16 de maio e onde ela se celebrou? A presidenta da Convenção Constitucional iniciou a cerimônia falando em linguas indígenas, o que é um indício das mudanças introduzidas por essa Constituição. Quais são as diferenças entre essa Carta Magna e a aprovada durante a ditadura de Pinochet, regime que contou com o apoio dos Estados Unidos? 

PA – Em primeiro lugar, o processo constituinte foi impulsionado por uma revolta popular em outubro de 2019, e isso marcou muitas coisas: por um lado, garantiu a integração dos movimentos sociais ao processo e assegurou a participação e a relevância dos povos indígenas. O Chile é um país que tem uma história colonial de violência contra os povos indígenas e nesse processo constitucional foi possível conquistar uma representação desses setores. Dessa forma, um dos temas centrais da discussão constitucional foi o reconhecimento dos povos indígenas, seus direitos a participar politicamente da sociedade chilena e o reconhecimento a seus direitos culturais, linguísticos, a restituição das terras que foram roubadas pelo Estado ou pelas corporações privadas. Essa foi uma das marcas mais fortes do processo.

Por outro lado, tem sido um processo muito crítico da centralização da política chilena em sua capital, Santiago. Os mesmos membros da Convenção Constitucional em seu conjunto foram fazer sessões em outras cidades do Chile como uma maneira de reforçar esse compromisso com as regiões. Isso é muito interessante, porque permitiu que uma instituição política de caráter nacional possa reunir em outras cidades; estamos acostumados a ver somente em Santiago e nas cidades do centro.

A cerimônia de entrega do rascunho da nova Constituição teve lugar nas Ruínas de Huanchaca, que é uma antiga fundição de prata. Isso foi muito simbólico, porque representa a presença nas regiões e o vínculo com os povos indígenas do Norte (que também não haviam sido reconhecidos). O feito de celebrar esse ato sob as ruínas de uma indústria associada a extração, finalmente, foi em si mesmo uma crítica ao modelo baseado na extração de matérias primas e, portanto, da forte destruição do meio ambiente e das comunidades.

Além disso, o feito da presidenta da Convenção ter iniciado essa cerimônia falando em línguas indígenas do Chile, do território chileno, é muito significativo também, porque significa um reconhecimento, ao menos em âmbito linguístico e cultural, de que existem povos que estavam aqui antes da formação da República do Chile, antes da instalação de um Estado colonial.

Todos esses foram grandes avanços. No entanto, não resolvem todos os problemas. No momento enfrentamos uma nova declaração de estado de exceção e de militarização do território mapuche no sul: seguem havendo muitas dívidas do Estado do Chile com os povos indígenas. Porém, ao menos, é uma abertura para seu reconhecimento e sua participação política. 

NS – Você pode nos explicar porque se excluiu esse rascunho da Constituição? Especificamente, gostaríamos de aprofundar sobre o artigo que entregava ao Estado do Chile o controle exclusivo dos direitos de exploração dos recursos minerais. Qual é a importância do cobre e do lítico para a economia chilena? 

PA – A economia chilena estava baseada fortemente na extração e exportação de matérias primas, particularmente da indústria florestal, da indústria agrícola e da indústria de mineração; o cobre é nosso principal produto de exportação. Historicamente foi um produto que estava nas mãos das empresas privadas, especialmente das corporações multinacionais. Porém, desde a nacionalização do cobre no governo de Unidade Popular de Salvador Allende, sempre houve uma participação do Estado na economia, e foi isso que permitiu a entrada de dinheiro que foi fundamental para financiar programas sociais no Chile.

Em um contexto de crise econômica crescente, a disputa por quem controla e administra esses recursos e esses excedentes vai ser fundamental e cada vez mais extrema. Vemos uma resistência muito forte por parte dos setores neoliberais, dos setores conservadores e dos setores de direita a nacionalização dos recursos, porque ainda há uma disputa pelo negócio, por quem pode controlar essas ganâncias. E, por isso, apesar da proposta para nacionalizar os bens minerais e outros recursos naturais ter tido um respaldo popular importante, houve uma oposição muito forte por parte desses setores e não foi possível incluir.

De toda forma, o que se deve ter sempre em mente é que a Constituição não vem para resolver todos os problemas. O que ela faz é levantar uma série de elementos centrais da disputa política para as próximas décadas. A mudança constitucional no Chile não encerra o processo político. Muito pelo contrário, ela abre, abre um novo momento.

Acaba-se, provavelmente, a transição da saída da ditadura e começa um novo momento na história do Chile, onde esses elementos – a garantia dos direitos sociais, uma democracia paritária e realmente participativa, o reconhecimento dos povos indígenas e a disputa sobre a atividade econômica do Estado para os recursos naturais, para ter uma efetiva soberania sobre esses recursos – vão ocupar um lugar central na disputa política dos próximos anos.

Então, o controle estatal sobre os recursos minerais é uma tarefa pendente que não vai ser resolvida nesta Convenção [Constitucional], porém, vai ficar aberta. 

AG – Qual é o plano para fazer campanha entre as bases e fazer com que essa Constituição seja aprovada em 4 de setembro? Como vai acontecer a aprovação do conteúdo do texto? Você tem alguma reticencia a respeito do conteúdo dessa nova Constituição? 

PA – Em primeiro lugar, a campanha vai ser um processo duplo. Temos um Governo que por sorte é favorável à mudança da Constituição e portanto vai respeitar o dever público de comunicar essa nova Constituição. Porém, além disso, é esperado que ele haja de maneira favorável, portanto, vá fazer campanhas financiadas publicamente para isso.

Há uma mobilização popular desde outubro de 2019 até agora mais ou menos permanente. Quer dizer, milhares de pessoas em comunidades, em bairros, nas cidades e nos setores rurais têm trabalhado, conversado e discutido sobre a nova Constituição, e hoje em dia estão com muito entusiasmo por defender o processo e aprová-la. No entanto, vamos ter, mesmo com as campanhas públicas do Estado, campanhas massivas e populares que vão difundir o conteúdo da nova Constituição.

Eu creio que vai ser um processo muito interessante, onde vai se pôr à prova todo o tecido social que foi construído nos últimos anos e que vai catalisar novos processos políticos no Chile. Vão surgir, provavelmente, forças políticas que se converteram em defensoras da nova constituição mais progressista, que garante direitos sociais, e que vão entrar na disputa política. Eu creio que essa nova Constituição é surpreendentemente mais progressiva em comparação com a Constituição que temos hoje.

Acredito que ficam pendentes coisas muito importantes. Uma tem a ver com um maior controle sobre as Forças Armadas e as forças da ordem, que historicamente no Chile tem encarnado uma força de violência e repressão contra os povos, e, portanto, o controle civil é muito importante. E, em segundo lugar, falta uma garantia muito mais forte de que os recursos públicos vão para os sistemas públicos de provisão de serviços como a saúde, a educação, a previdência, os direitos reprodutivos; e que o setor privado, que até agora foi o único beneficiário do milagre neoliberal no Chile, tenha um limite. Essa ganância, esse lucro indiscriminado que tem os setores privados deve ter um limite, porque senão, não é sustentável uma sociedade que seja benéfica para a maioria.

Porém, de todo o modo, na medida em que garante direitos sociais, a nova Constituição abre um novo cenário para a sociedade chilena em seu conjunto. E na medida em que garante processos participativos, democráticos, abre uma nova etapa política no Chile também. 

*Pablo Abufom Silva é filósofo e editor. Faz parte do conselho editorial da Jacobin América Latina. Publicada originalmente no portal Democracy Now e reproduzido pela Jacobin América Latina. Esse artigo é uma tradução para o português da edição em espanhol publicada no site. Disponível em https://jacobinlat.com/2022/06/08/una-nueva-etapa-politica-en-chile/.