Valério Arcary: A revolução derrotada

Originalmente publicado em Revista Fórum

 

Duas luvas da mão esquerda não perfazem um par de luvas.

Duas meias verdades

não perfazem uma verdade.

Eduard Douwes Dekker, alias, Multatuli (1820/87) Idéias.

 

Se o vaso não está limpo, tudo o que nele

derramares se azeda.

Horácio (65-68 a.C.) Epístolas 1.2.

 

A tese sobre o destino da revolução portuguesa que permanece dominante, cinquenta anos depois do 25 de abril, porque a história é escrita pelos vencedores, é que o PCP tentou tomar o poder no auge do PREC (acrônimo de Processo Revolucionário em Curso) no “verão quente” de 1975. Ela se apoia na ideia de que uma “embriaguez” revolucionária ou “vertigem” insurrecional teria tomado conta da direção do PCP que preparava um “golpe de Praga”, por referência ao processo na Tchecoslováquia em 1948. Defende que a revolução foi vitoriosa. Derrubou o regime fascista e impediu uma revolução socialista.

Teria sido vitoriosa porque a campanha de mobilização democrática de massas liderada pelo Partido Socialista que dividiu o MFA, abriu o caminho para a queda do V Governo provisório e, na iminência da ameaça de deflagração de uma guerra civil, quando do levante dos paraquedistas na madrugada de 25 de novembro, foi neutralizado pela operação militar liderada pelo general Ramalho Eanes. Esta narrativa não é boa ciência histórica. Trata-se de uma operação ideológica reacionária.

O argumento deste texto é que o 25 de abril abriu um processo revolucionário que foi interrompido no 25 de novembro de 1975. A revolução social que nasceu do ventre da revolução política foi derrotada. Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em processo, uma disputa, uma aposta em que reina a incerteza. Na história não se pode explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso é anacrônico. É uma ilusão de ótica do relógio da história.

As liberdades democráticas nasceram do ventre da revolução, quando tudo parecia possível. Mas o regime democrático semipresidencialista hoje existente em Portugal não surgiu do processo de lutas aberto no 25 de abril de 1974. Ele veio à luz depois de um autogolpe da cúpula das Forças Armadas organizado pelo Grupo dos Nove em 25 de novembro de 1975. A reação triunfou depois das eleições presidenciais de 1976. Foi necessário recorrer aos métodos da contrarrevolução em novembro de 1975 para restabelecer a ordem hierárquica nos quartéis e dissolver o MFA que fez o 25 de abril. É verdade que a reação com táticas democráticas dispensou uma quartelada com métodos genocidas, como tinha acontecido em Santiago do Chile em 1973. Não foi acidental, contudo, que o primeiro presidente eleito fosse Ramalho Eanes, o general do 25 de novembro. A revolução foi derrotada.

A presença de um partido comunista em governos europeus foi um tabu que permaneceu intacto, durante os anos de guerra fria, até mesmo na Itália, em que a orientação “eurocomunista” foi mais longe no distanciamento crítico em relação a Moscou. A única exceção foi a longínqua Islândia em 1971[1]. Foi uma surpresa mundial quando Cunhal foi apresentado como ministro sem pasta no primeiro governo provisório liderado por Palma Carlos e Spínola. No espaço de doze meses o PCP cresceu, vertiginosamente, sua militância que evoluiu de alguns milhares para algo além de cem mil militantes ativos, e uma influência pelo menos dez vezes maior. Proporcionalmente, era um dos maiores partidos comunistas do mundo.

A autoridade moral e política de sua direção nos setores mais ativos das massas populares porque o PCP tinha sido, durante quase cinquenta anos, a principal organização na oposição à ditadura e à guerra colonial. Os anos de prisão aos quais os membros do Comitê Central do PCP tinham sido condenados superavam, assombrosamente, dois séculos. A militância do PCP assumiu um papel decisivo na construção das mobilizações populares depois do 25 de abril, conquistou as posições de liderança nos sindicatos e associações populares.

Mas Cunhal, a liderança inconteste do PCP, não tinha qualquer estratégia de revolução socialista em Portugal. Nem o PCP agia em voo solo em relação a Moscou. Aliás, esta foi a acusação fantasiosa elaborada pela diplomacia alemã, dirigida pela social democracia, e pela embaixada norte-americana, liderada por Frank Carlucci, depois embaixador na Nicarágua, durante o primeiro governo sandinista. A estratégia do PCP era uma fórmula algébrica, portanto, com uma incógnita, de revolução democrática e nacional.

O PCP defendia a legitimidade dos governos provisórios, sustentado numa aliança político-social pela fórmula Povo-MFA, que consolidasse o setor público da economia que era superior a 65% do PIB depois das nacionalizações, inclusive da banca, abrisse o caminho para um processo de reformas que ampliassem os direitos dos trabalhadores, em especial, as Unidades Coletivas de Produção que expropriaram os latifúndios no Alentejo, e a garantia da independência das colônias, em especial, um processo que garantisse a passagem do poder para o MPLA em Angola.

O PCP era consciente que o ritmo de evolução da situação espanhola era muito lento, e não havia iminência de uma derrubada revolucionária do franquismo, e que a conjuntura de radicalização em França pós-68 tinha sido revertida pela eleição de Valery Giscard-D’Estaing contra Mitterand do Partido Socialista, e que o impasse italiano era imenso. Mas, sobretudo, que uma revolução socialista em um país europeu, signatário da Otan, não seria possível sem uma guerra civil.

Ao contrário da fabulação paranoica contrarrevolucionária de que o PCP seria o partido da “guerra civil”, o PCP foi uma força consciente de contenção no calor da crise revolucionária. Cunhal não era Lenin. Mas não seria injusto comparar Mário Soares, com Kerensky. Vasco Gonçalves, muito mais que Otelo Saraiva de Carvalho, nos remete ao heroísmo de Chavez.

Cunhal não teve responsabilidade alguma pela formação do V governo provisório sem o Partido Socialista, ao contrário. O PCP alertou Vasco Gonçalves que a relação de forças dentro do MFA tinha se alterado, desfavoravelmente, pela formação do grupo dos Nove. O PCP trabalhou para favorecer um acordo entre Vasco Gonçalves, Melo Antunes e o Partido Socialista. Esta localização tática sofreu pequenas oscilações em função das pressões de forças “goncalvistas”, como a assinatura de Otávio Pato, um dos quadros históricos do PCP, por três dias, da adesão à FUR (Frente de Unidade Revolucionária).

A estupefação da burguesia norte-americana e europeia foi aterradora, quando o PCP não somente permaneceu nos governos provisórios seguintes, como aumentou, significativamente, sua influência até a queda de Vasco Gonçalves na Assembleia do MFA de Tancos em 5 setembro de 1975. O imperialismo tremia de medo pela completa perda de controle da classe dominante portuguesa, e total incerteza do desenlace da situação revolucionária, na sequência das decisões de impulso anticapitalista nos dias seguintes ao 11 de março. Em junho começou a conspiração com o Partido Socialista.

Soares se apoiava no resultado das eleições para a Constituinte de abril de 1975, em que o Partido Socialista tinha conquistado 37,87%. dos votos, e na mobilização contrarrevolucionária que, no norte do país, invadia e incendiava sedes de sindicatos, associações populares, e de partidos de esquerda, sobretudo, do PCP. Mas sabia que não era o bastante. A batalha era pelo poder, mas no calor de uma situação revolucionária, em que embriões de poder popular existiam por todo o país. Teria que dividir a classe trabalhadora, e arrastar a maioria das camadas médias. Em condições normais de dominação política da burguesia em um regime democrático-eleitoral a legitimidade do processo eleitoral, ou seja, a votação, ainda quando as regras favorecem, clara e indiscutivelmente, os partidos que defendem os interesses dos capitalistas, é inquestionável. Mas no calor de uma revolução, a despeito do resultado das urnas, se impõe uma outra régua para medir o que é, e o que não é legítimo.

O campo da revolução influenciava 20% da população, como ficou esboçado na votação para a Constituinte de 25 de abril de 1975, no mês seguinte ao 11 de março. Mas eram um quinto, politicamente, mais ativo, apaixonado e mobilizado, e sua força social de impacto arrastava muitos mais. Mesmo em uma situação revolucionária há uma maioria do povo inativo que apenas segue os acontecimentos.

A repercussão assustadora da burguesia europeia com o papel do PCP continuou crescendo porque, durante o V Governo provisório no verão quente de 1975, Cunhal foi acusado pelo Partido Socialista, dirigido por Mário Soares, de estar tramando uma insurreição militar apoiada na mobilização operária e popular para tomar o poder. Soares desafiou a hegemonia da mobilização de ruas que, até então o PCP detinha, levando muitas dezenas de milhares às ruas na Alameda de Lisboa e, por todo o país, sobretudo, na região centro-norte, contra o governo de Vasco Gonçalves, em defesa da democracia.

Mas para “envenenar” a consciência de milhões era necessário o espantalho da ameaça de iminência de uma insurreição, e o anúncio de perigo de guerra civil. Era falso. Nenhuma das forças políticas mais importantes à esquerda, a começar pelo PCP, mas considerando também as correntes radicalizadas no MFA, estava disposta a ir até o limite de uma ruptura, que só pudesse ser resolvida por uma medição de forças pelas armas. Tratava-se de um espantalho, a manipulação de um medo imaginário.

Mas uma operação política de manipulação de massas, que exige que haja engajamento e saída às ruas, não pode prescindir de um “grão” de verdade. Esse “grão” de verdade repousava, por um lado, na audácia da ação direta de muitas dezenas de milhares de ativistas que agitavam as massas para mudar a vida agora e já e, por outro lado, na firmeza tática da contrarrevolução que estava disposta a ir até a guerra civil, como Kissinger deixou claro.

Nesse processo, Soares procurava apoio político de retaguarda na hierarquia da Igreja, na embaixada americana, e nos governos europeus, estimulando a divisão do MFA que se expressou através da formação do “grupo dos nove”, liderado Por Melo Antunes e Vasco Lourenço.

Mas enfrentava quatro obstáculos: (a) a legitimidade do MFA que tinha derrotado as ambições cesaristas de Spínola e duas tentativas de golpe de Estado, expressa na fração militar que oferecia ainda apoio ao governo Vasco Gonçalves; (b) a realidade institucional que reservava à Constituinte legitimidade para elaborar a nova Constituição, mas não para governar; (c) a ausência física da maior parcela da classe dominante que tinha entrado em pânico depois da derrota do golpe do 11 de março, e fugido para Espanha e para o Brasil; (d) a experiência de intensa democracia direta de um processo de radicalização social e dualidade de poder, ainda que atomizada, que se expressava em centenas de comissões de trabalhadores nas maiores empresas do país que tinham sido nacionalizadas, assembleias populares, unidades coletivas de produção na região de reforma agrária, em especial no Alentejo e, mais grave, nos quartéis.

Meses depois, quando o movimento militar dirigido por Ramalho Eanes, na madrugada de 25 de novembro de 1975, de fato, tomou pela força o poder – fazendo aquilo que denunciava que o PCP estaria preparando - Melo Antunes defendeu a participação do PCP na “estabilização democrática” sublinhando, dramaticamente, que a democracia portuguesa seria impensável sem o PCP na legalidade, para deixar claro que o golpe não seria uma “pinochetada”, e que foi feito para evitar aquilo que, no calor daqueles dias, se interpretava como o perigo de uma guerra civil, e não para provocá-la.

Admitiu, portanto, que o VI governo provisório e o Conselho da revolução estavam fazendo uma intervenção armada nos quartéis (um clássico autogolpe), mas alegou que era em legítima defesa, para manter a legalidade do regime que procurava sustentação na Assembleia Constituinte, não para subvertê-la. Ainda que as liberdades democráticas civis tenham sido preservadas, as liberdades políticas nos quartéis foram suprimidas. Foi a antessala da erradicação do MFA, e o restabelecimento da hierarquia de cadeia de comando militar. O “autogolpe’ de 25 de novembro foi liderado, operacionalmente, pelo general Ramalho Eanes, mas legitimado, politicamente, por Melo Antunes que, diferente do general que veio a ser eleito presidente nas eleições presidenciais de 1976, podia falar em nome de uma ala do MFA. A intervenção ao serviço do VI Governo provisório, a pretexto de reprimir o levante dos paraquedistas, inverteu a relação militar de forças, abrindo caminho para o fim do Copcon, o Comando Operacional do Continente dirigido por Otelo Saraiva de Carvalho, e da Quinta Divisão liderada pelo Coronel Varela Gomes. A derrota militar foi irreversível.

Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política se inclinou para a extrema-esquerda, o discurso da direita girou para o centro, e o do centro para a esquerda. O travestismo político - o descompasso entre as palavras e os atos – faz o discurso dos partidos irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o inimaginável. Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Calos Montenegro, até o PPM (Partido Popular Monárquico), todos reivindicavam alguma forma de socialismo, o que explica a linguagem socializante da Constituição que até hoje produz espanto.

A contrarrevolução tinha ensaiado uma quartelada bonapartista duas vezes com a direção de Spínola em 28 de setembro de 1974 e no 11 de março de 1975, e fracassou. Recorreu, depois, a outros dirigentes e a outros métodos. Uma combinação de espada e concessões. Usou a espada, cuidadosa e seletivamente, no 25 de novembro. Usou os métodos da reação democrática com as eleições presidenciais de 1976, a negociação dos empréstimos de emergência que os Estados da OTAN liberaram, e recorreu até à formação de um governo em vôo solo do Partido Socialista liderado por Mário Soares.

Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes nas Forças Armadas o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo, ininterrupta de estabilização do regime democrático liberal. A derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue, mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. A integração posterior na Comunidade Econômica Europeia com o acesso aos fundos estruturais, gigantescas transferências de capitais para modernizar a infraestrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do capitalismo e do regime democrático nos anos 80 e 90. Agora ameaçado pelo crescimento da extrema-direita do chega de André Ventura.

O cheirinho de alecrim ficou difícil de encontrar. Mas ficaram os livros de Saramago, as lindas canções de Zeca Afonso, Sergio Godinho, Fausto e tantos outros.