Valério Arcary: Lênin cem anos depois

Por Valério Arcary

Colunista do Radar Internacional

Publicado originalmente em portal Esquerda Online

 

No aniversário de cem anos da morte de Lenin, qual foi a sua principal herança teórica? Lenin elaborou a ideia do partido como a defesa de um programa, mas, também, como um instrumento político para a ação. Qual é o lugar do partido marxista entre as outras organizações do movimento social e político dos trabalhadores? O papel do partido era de alavanca. Na física, a alavanca é o objeto que multiplica a força mecânica. Na elaboração leninista, o partido é a ferramenta que através, da agitação política, da propaganda socialista e, sobretudo, da intervenção direta nas lutas, pode acelerar a experiência prática de milhões.

A representação política das classes subalternas, em geral e do proletariado em particular, é obstaculizada por fatores tanto objetivos, quanto subjetivos: as ideias dominantes, em qualquer época, não podem deixar de ser as ideias das classes dominantes, a não ser em situações revolucionárias. O que significa que as lideranças populares sofrem pressões conservadoras de suas próprias bases sociais.

Existe um aspecto ainda mais desconcertante e paradoxal da relação das classes, politicamente, dominadas com seus partidos: a gravidade da crise ou a força de apelo de sua causa, leva, frequentemente, os partidos das classes populares a recrutarem adeptos entre os membros de outras classes, socialmente hostis, e não é incomum que os partidos operários tenham uma maioria de membros não operários nas suas direções. Essas contradições, como é previsível, têm consequência políticas.

A questão do lugar das lideranças se coloca, em especial, em duas circunstâncias especiais, mas de natureza muito diferente. As revoluções são sempre o tempo da política, o tempo do presente inadiável ou da urgência impostergável. O que nos diz Plekhanov [1], um dos principais adversários de Lenin, sobre o papel das lideranças socialistas? Exatamente o contrário: é o pensador, o intelectual, o iniciador, que aparece como o “herói” moderno:

“Carlyle, na sua conhecida obra sobre os heróis, dá-lhes o nome de iniciadores (Beginners). É uma designação bastante acertada. Um grande homem é precisamente um iniciador porque vê mais longe que os outros e deseja mais fortemente que os outros. Resolve os problemas científicos colocados pelo curso anterior do desenvolvimento intelectual da sociedade; assinala as novas necessidades sociais, criadas pelo anterior desenvolvimento das relações sociais; toma a iniciativa de satisfazer essas necessidades. É um herói. Não no sentido de que pode deter ou modificar o curso natural das coisas, mas no sentido de que sua actividade constitui uma expressão consciente e livre deste curso necessário e consciente. Reside nisto toda sua importância e sua força. Mas esta importância é colossal, e esta força revela-se tremenda. (grifo nosso)

A aproximação ao tema peca, portanto, por uma inclinação ao sobredimensionamento das tarefas intelectuais, e à correspondente subvalorização da liderança política. Parece mais razoável a conclusão contrária: nada garante que a história, entendida como a força da necessidade que busca uma expressão política consciente, encontre as grandes lideranças político-revolucionárias, independente de seus talentos, na oportunidade histórica, na hora certa e no lugar certo, em geral rara, senão única, dificilmente repetível.

Se um acidente fortuito tivesse vitimado Leonardo da Vinci ou Michelangelo, a arte renascentista teria estado privada de seus gênios, mas a tendência evolutiva geral do período não teria sido outra, porque não foram eles que criaram essa tendência, foram somente a sua expressão mais completa e brilhante. A tendência estava inscrita em um processo de mudanças, semeado por milhares de pequenas transformações quantitativas, e só aparentemente menores, que preparavam a expectativa de uma mudança qualitativa.

O mesmo se poderia dizer, em um outro terreno, sobre o papel de Marx, Darwin ou Freud: cada um deles, nas suas respectivas disciplinas, produziu novos paradigmas científicos que abriram novos horizontes para a ciência de nossa época. Por isso, enfrentaram as terríveis resistências das forças de inércia histórica que sofrem os pioneiros que mudam a visão que a humanidade possui sobre si mesma. Se um acidente os tivesse sacrificado precocemente, as formas singulares que imprimiram às suas descobertas teriam sido outras, mas seria pouco razoável concluir que o moderno movimento operário socialista não teria existido, ou que a biologia não teria chegado à teoria da seleção natural, ou que a psicologia não teria revelado os mistérios das pulsões inconscientes. Outros os teriam substituído, talvez mais tarde, talvez com menos brilho literário, mas as suas descobertas teriam sido realizadas, porque estavam inscritas em um processo coletivo e social de desenvolvimento do conhecimento.

Mas este critério tem limites. No calor de grandes transformações revolucionárias é distinta. A sua substituição parece ser um problema, incomparavelmente, mais complexo: na luta política o tempo conta, as oportunidades são frágeis, excepcionais, e podem se perder. O problema da substituição da liderança política é mais complexo do que a substituição dos fundadores, os “beginners“, porque os primeiros dependem, incondicionalmente, de uma coincidência com os grandes fluxos favoráveis dos acontecimentos, para realizarem a sua obra.

Enquanto os grandes pensadores, cientistas e artistas, podem marchar, e quase sempre o fizeram, em alguma medida, como precursores, na contracorrente das posições hegemônicas de seu tempo. A verdadeira dimensão de sua obra é póstuma. Em alguma medida, sempre são conscientes de que sua obra é uma ponte estendida em relação ao futuro. Não dependem das marés montantes da luta de classes para aproveitar a oportunidade histórica, porque não trabalham para o presente.

Porque o problema maior é o dos sujeitos políticos coletivos: parece insustentável considerar que a sua presença resultará, mecanicamente, como causa e consequência, da necessidade, das classes populares em luta, de expressarem politicamente os seus interesses. Esta conclusão só é compatível com uma perspectiva, fortemente espontaneísta, de que as revoluções resolvem as suas necessidades subjetivas “en marche”, pela força liberada da mobilização do sujeito social, que diminui, ou reduz ao mínimo, a importância da qualidade do sujeito político.

Porque ela ignora a dimensão, relativamente, incerta e autônoma da política. Os partidos e as outras formas de representação políticas não atuam imunes às pressões das diferentes camadas e estratos que diferenciam, objetiva e subjetivamente, a classe ou as classes que pretendem expressar, assim como sofrem, tanto as pressões das classes socialmente hostis, quanto as das outras correntes e tendências organizadas. Por isso, suas trajetórias estão repletas de hesitações, giros, realinhamentos, divisões e unificações, isto é, os mais variados deslocamentos, à direita e à esquerda, expostos a todo tipo de crises, e vulneráveis ao erro. A ideia muito popular de que “ninguém é insubstituível” tem um grão de verdade, embora mereça ser problematizada. Mas dela não decorre que a presença de uma organização revolucionária seja irrelevante. Não é.

Parece irrefutável, que no século XX, “os tempos da política se aceleraram”, exigindo das classes buscar na forma partido um instrumento útil, ainda que imperfeito, para a defesa de seus interesses: em uma palavra, as margens de improvisação política se reduziram.

A “partidocracia” contemporânea – o monopólio da política nas mãos dos partidos – embora em crise, porque as classes buscam outras formas de representação política dos seus interesses, permanece de pé. O conflito entre a eficácia da forma partido, e o perigo de que os aparelhos partidários escapem ao controle dos representados e desenvolvam uma imensa independência de interesses próprios é uma das tensões principais do atual período histórico.

O século XX assistiu a entrada em cena de milhões na vida política, ou seja, da busca de soluções coletivas para os impasses históricos. O movimento operário nos últimos 150 anos foi o protagonista social mais importante, desta que é a mais decisiva transformação da história humana: a aventura de busca de um controle consciente sobre os destinos da sociedade. Para os socialistas, esse sentido consciente consiste na luta pela igualdade e liberdade como valores indivisíveis. Essa é também a opinião de Wallerstein [2]:

“O que realmente significa o slogan liberdade, igualdade, fraternidade? O slogan da Revolução Francesa é familiar a todos. Parece referir-se a três fenómenos diferentes, cada um localizado nas três áreas entre as quais estamos habituados a dividir as nossas análises sociais: liberdade no campo político, igualdade no campo económico e fraternidade no campo sociocultural. E também nos habituamos a debater a sua importância relativa, particularmente entre liberdade e igualdade. A antinomia de liberdade e igualdade me parece absurda. Tenho dificuldade em ver como se pode ser “livre” se há desigualdade, dado que quem tem mais tem sempre opções que não são possíveis para quem tem menos e que, consequentemente, estes últimos são menos livres. E, da mesma forma, tenho dificuldade em ver como pode existir igualdade sem liberdade, uma vez que, na ausência de liberdade, alguns têm mais poder político do que outros, daí decorre que há desigualdade. Não é um jogo de palavras que estou sugerindo aqui, mas a rejeição da distinção libertá-igualdade. Liberdade-igualdade é o mesmo conceito.” (grifo nosso)

Este é o abecedário da política contemporânea. É interessante observar, no entanto, que as classes dominantes têm, pelo menos em circunstâncias de estabilidade política, uma apreensão dos seus interesses menos atrasada que as classes exploradas e oprimidas. Esse desencontro menor decorre, em primeiro lugar, do controle do Estado. Mas, resulta, por outro lado, de um nível de intensidade de participação na política, a esfera da vida pública, muito superior ao das classes populares. Nessas, todavia, também ocorrem desigualdades: as classes trabalhadoras urbanas são, por exemplo, mais políticas, nesse sentido, do que as massas camponesas. Por sua vez, o século 20 é mais político que o 19.

A primazia crescente da política, um processo que se desenvolve cheio de contradições, corresponde a um movimento histórico profundo, essencialmente, progressivo. Essa evolução é o que podemos definir como um crescente papel da auto-organização na sociedade, que, por sua vez, é uma expressão do alargamento e não do definhamento da esfera do público. Qual seria a sua explicação histórica mais profunda? Uma nova primazia das forças motrizes de impulso: as lutas de classe teriam elevado a sua intensidade, como nunca antes. Mas para vencer precisamos de um impulso leninista.
 

1 (PLEKHANOV, George, O Papel do Indivíduo na História, Lisboa, Antídoto, 1977, p.82)
2 WALLERSTEIN, Immanuel, 1968, Révolution dans le Sistème Mondial, in Le Temps Modernes, 514/515, mai-juin 1989, p.173/4.