Wagenknecht, um nacionalismo típico

Por Jorge Costa, do Bloco de Esquerda - Portugual

 

Os ventos da guerra instalam o redemoinho na política. Há cem anos, a marca comunista foi adotada pelos opositores à primeira guerra mundial para se distinguirem das direções dos partidos socialistas que capitularam em apoio aos nacionalismos respetivos. O fascismo nasceu depois, entre antigos combatentes da Itália vencida, e vestiu de camisa negra muitos antigos sindicalistas, anarquistas e socialistas. Esse percurso foi também o do primeiro secretário-geral do PCP, Carlos Rates, que acabou na União Nacional. E durante a segunda guerra, com os crimes do fascismo mais que provados, ainda se registaram trânsitos deste tipo.

Hoje, a conflagração internacional sopra de novo. Há muito que Washington pressiona as potências regionais desalinhadas. A União Europeia quer voltar a crescer através da corrida armamentista e a própria Alemanha dispõe-se a alojar mísseis atómicos norte-americanos para ameaçar Moscou. Na Rússia, o século pós-soviético decorre sob ditadura nacionalista e ultraconservadora, que amaldiçoa a memória dos bolcheviques e reverencia o czar e Stálin, isto enquanto subsidia a extrema-direita global. A invasão da Ucrânia abriu as portas do inferno. O mal banaliza-se para além de todos os interesses e negócios: no ocidente, quase nenhum governo retira o apoio militar ao extermínio da Palestina.

É da guerra que nasce a mutação Wagenknecht. Mais do que a última saudosista do muro de Berlim, é um produto deste nosso tempo: novamente, no turbilhão da guerra, há esquerdas que se renegam pelo nacionalismo.

(Neste artigo, todas as citações sem link pertencem à longa entrevista concedida por Wagenknecht em abril passado à New Left Review.)

 

Abandono do socialismo como crítica da propriedade

Pouco resta da crítica do capitalismo quando deixa de colocar a questão da propriedade social. Só pode haver esquerda se ela disputar o terreno conquistado pelo neoliberalismo e a primeira linha dessa disputa é a propriedade dos bens comuns. No caso do partido Wagenknecht, o enunciado sobre a propriedade é central, mas como protecionismo da burguesia industrial alemã: “uma política energética sensata começaria por considerar as necessidades das empresas médias alemãs [o Mittelstand], de modo a encorajar os proprietários e as suas famílias a mantê-las, em vez de as venderem a investidores financeiros”.

Uma das grandes bandeiras do BSW é o fim das sanções à Rússia com vista ao restabelecimento do fluxo de gás barato, a tal “política energética sensata”, já lá iremos. Mas antes disso, esta visão da propriedade capitalista assenta na abdicação de erguer uma política autonoma da classe trabalhadora: “o que conta na Alemanha é o Mittelstand, o forte bloco de empresas que se posicionam contra as grandes corporações. Essa oposição é tão importante como a polarização entre capital e trabalho. Apelar às pessoas numa base puramente de classe, não gera resposta. Mas se lhes apelarmos como parte do setor da sociedade que cria riqueza, incluindo as empresas geridas pelos seus próprios donos, isso ressoa nas pessoas”.

Sem vínculo aos interesses próprios do Trabalho, Sahra Wagenknecht assume o lugar do seu partido como “legítimo herdeiro tanto do ‘capitalismo domesticado’ do pós-guerra como do progressismo social-democrata”. De modo mais simples, Sabine Zimmermann, líder do partido na Saxónia, explica que o BSW está “à esquerda da CDU e à direita do SPD”.

O discurso de Wagenknecht pode juntar votos num contexto de deslocamento geral à direita. Mas esses votos são uma confirmação do deslocamento à dieita, porque o programa que os junta é uma pedagogia de conciliação de classes e uma capitulação sobre a propriedade social da economia. Wagenknecht limita-se a propor elementos de justiça fiscal e uma regulação estatal nacionalista que preserve a propriedade da burguesia industrial alemã.

 

Mundo multipolar e com muros

Antes de se tornar o eufemismo jornalístico aplicado a bandos neonazis, o termo “nacionalista” foi, demasiadas vezes, lançado como insulto à esquerda defensora da soberania democrática contra a globalização capitalista ou crítica do federalismo autoritário europeu. Esse anátema induz que a recusa do ditame liberal só pode resultar de atavismo egoísta - e não de qualquer ideia de solidariedade e de cooperação. Ora, esquerda que seja esquerda, em qualquer país da Europa, defende a soberania popular contra as imposições transnacionais do capital financeiro inscritas nos tratados da UE. E isso de nacionalista nada tem.

Mas engana-se quem quiser encontrar vestígios desse soberanismo popular e de esquerda na deriva nacionalista de Sahra Wagenknecht. O seu nacionalismo é típico e sem relação com a tradição de esquerda que atribui à classe trabalhadora o protagonismo da libertação da nação como todo, uma tradição vinda da Bastilha (o terceiro Estado encarnando o povo francês contra a aristocracia) e continuada pela visão de Gramsci do projeto nacional-popular do proletariado, pelas lutas anticoloniais e mesmo pela atual França antifascista, em que germina uma crioulização da República, proposta há anos por Mélenchon.

Ao invés, Wagenknecht propõe um nacionalismo reacionário de velho recorte, arreigado à conciliação de classes e que assume as linhas de choque que a direita conseguiu impor na agenda - energia, imigração e “costumes” - para tocar versões do repertório conservador e supremacista alemão da extrema-direita.

Onde este supremacismo nacionalista alemão se expressa mais claramente é na questão climática: “não apoiamos a destruição da nossa indústria automóvel tornando obrigatórios os carros elétricos apenas para cumprir uns limiares arbitrários de emissões. Ninguém que hoje esteja vivo verá as temperaturas médias voltarem a descer, independentemente de quanto se reduzam as emissões”.

A transparência merece louvor, mas é abjeta a opção consciente pela condenação das próximas gerações em nome do negócio fóssil. Sem negacionismo (Wagenknecht reconhece a existência da crise climática), o BSW assume o supremacismo: em vez da rápida redução das emissões num dos países mais ricos e industrializados do mundo, dá prioridade à mitigação dos efeitos da catástrofe sobre o eleitor alemão: “primeiro equipar creches e lares de idosos com ar condicionado pago pelo Estado e transformar margens de rios e zonas ribeirinhas protegidas das cheias”. O caos pode espalhar-se pelo mundo e o nacionalismo verá na nossa casa (ou na nossa região, ou na Alemanha, ou na Europa) a miragem de uma fortaleza.

 

Recusa do internacionalismo

O slogan “por um mundo multipolar” traduz a visão de uma esquerda que se vê como parte do xadrez geopolítico. Nesse xadrez, enfrentam-se o campo imperialista e os “pólos” seus adversários e resta à esquerda optar entre ser um peão branco (alinhado com o liberalismo ocidental) ou um peão negro e, neste caso, assumir a retórica de Putin quanto à guerra da Ucrânia, fechar os olhos aos torcionários do Irã e da Síria ou tratar a fraude eleitoral venezuelana como um mal necessário. Os saudosistas do “mundo multipolar” não notaram ainda que, cumprido um ano de genocídio, China e Rússia mantêm intocados os seus negócios com Israel e são irrelevantes na pressão sobre Netanyahu. Mas nem tamanha brecha na narrativa distrai os “campistas”.

A posição de Wagenknecht sobre a guerra na Ucrânia tornou-a uma estrela em ascensão nestes setores da esquerda. À tradição anti-NATO leste-alemã, junta-se a já referida a agenda energética da indústria alemã, obcecada com a reabertura ao fornecimento de gás barato russo.

É claro que este cinismo da posição de Wagenknecht não anula uma parte da sua crítica ao governo SPD-Verdes. Durante largos meses, manteve uma posição relativamente moderada no apoio a Kiev contra o invasor. Recorde-se que a Alemanha foi diretamente atacada pelo lado ucraniano no início da guerra (com a destruição do Nord Stream, o pipeline do Mar Báltico para gás russo). Mas no último ano, o SPD aderiu à linha abertamente militarista dos Verdes, passou a entregar armas ofensivas a Zelensky (que lhe permitem atingir alvos fora do seu território) e assumiu uma estratégia de relançamento econômico assente na indústria do armamento. O zénite desta adesão à política da guerra foi a admissão da futura instalação em território da Alemanha de mísseis nucleares norte-americanos capazes de alcançar Moscou. Esta adesão total de Berlim à agenda da guerra potenciou a retórica Wagenknecht - o gás barato para as fábricas alemãs vale mais que o direito da Ucrânia à autodeterminação - e permitiu-lhe disputar com a extrema-direita um discurso anti-guerra de perfil nacionalista.

Mas este posicionamento não traduz um antimilitarismo coerente. Pelo contrário, a política de imigração do BSW implica a militarização da fronteira sul da Europa contra os trabalhadores estrangeiros que tentam chegar ao continente, a manutenção dos campos de concentração pagos pelos cofres europeus, tal como a continuação das mortandades no Mediterrâneo e no deserto do Sahara, entre outras.

A escusa ao racismo explícito (nos dias bons) não configura um confronto com a extrema-direita. Tal como os fascistas, o BSW culpa os imigrantes pela crise na provisão pública (“não se pode sobrecarregar recursos coletivos”) e pela pressão para a baixa dos salários. Como se as “700 mil casas em falta” ou a degradação da educação e dos serviços de saúde não fossem fruto do desinvestimento e de políticas liberais, mas dos refugiados sírios que fogem da guerra. Ou como se a Alemanha não tivesse o desemprego em mínimos históricos, o que indica que a pressão migratória é apenas o álibi dos patrões, esses sim, responsáveis pela prolongada pressão sobre os salários.

Para construir o seu perverso argumento, o BSW assume a retórica da austeridade e dos limites orçamentais e não propõe maiores transferências para habitação social e contratação de professores e técnicos para os serviços de acolhimento de imigrantes. Em vez disso, bate-se pela eliminação dos apoios sociais aos cerca de 100 mil imigrantes que viram recusado o seu pedido de asilo mas que estão protegidos pela lei alemã (na maioria por provirem de países que não oferecem segurança no regresso). Ou seja, Wagenknecht quer usar a marginalização e a miséria como pressão para um regresso voluntário ao caos de países como a Síria ou o Afeganistão, mas tudo o que conseguirá é promover a fuga para uma existência clandestina na Alemanha, explorada e ainda mais vulnerável às redes, às máfias e ao ressentimento social que alimenta a xenofobia. Este novo supremacismo alemão, que quer proteger os trabalhadores nativos contra os seus concorrentes estrangeiros, é uma tática eleitoral que faz vítimas reais.

Nos dias maus, as nuances face à extrema-direita dissipam-se em referências ao “aumento da criminalidade estrangeira”, na defesa de deportações sumárias e nas referências a “sociedades paralelas de influência islâmica”, em que as “crianças crescem odiando a cultura ocidental”.

Bem pode Wagenknecht manter, como nas letras pequeninas dos contratos, salvaguardas para responder às acusações de xenofobia e egoísmo nacionalista: apoios aos países de origem para reterem os seus jovens, com melhor acesso a investimento de capital, regime de comércio equitativo, reembolso pelos custos de formação de trabalhadores migrantes com altas qualificações. Todo esse programa benigno soçobra na sua retórica pública a favor de mais estritas restrições na política de imigração.

A concorrência com a extrema-direita adotando a sua narrativa para disputar o eleitorado islamofóbico e anti-imigração produz o mesmo resultado: virar os mais pobres contra os mais frágeis. E no fim, como os estudos eleitorais demonstram, a extrema-direita cresce em votos e as suas ideias expandem-se pelo restante espectro político.

 

Cedência às “guerras culturais” da extrema-direita

Quando Donald Trump venceu as eleições de 2017, não faltou quem teorizasse que a sua vitória traduzia uma alegada prioridade da esquerda aos temas de “costumes”, as famosas causas fraturantes, que a afastariam das “pessoas normais”. Muitos desses críticos acabavam assim por se juntar, às arrecuas, ao esforço de propaganda de Trump. Já então, era a extrema-direita mundial que colocava, ela sim, “no centro do debate político” as suas “guerras culturais” contra o “wokismo”. Face a essa ofensiva, existia e existe quem, até hoje, pretenda que a esquerda baixe bandeiras de combate às discriminações e de reconhecimento da diferença.

Desde 2017, muita água correu para o moinho da extrema-direita e os movimentos feministas e LGBT têm sido dos mais amplos e potentes a enfrentar a agenda conservadora e o silenciamento, ainda que não falte quem sempre encontre “exagero” e “excesso” na expressão destes movimentos sociais, ainda chamados “novos”...

A adaptação conservadora é portanto uma tentação constante sobre a esquerda neste período, mas Sahra Wagenknecht joga numa divisão superior desse campeonato. A sua política é uma integral conversão conservadora, termo que assume com todas as letras. Num sobrevoo do centro político, é simplesmente obliterada a agenda feminista e dos direitos LGBT: “queremos ir ao encontro das pessoas onde elas estão – e não fazer-lhes proselitismo sobre coisas que elas rejeitam”. Ponto.

No que toca à igualdade de género, a Alemanha “em geral, ultrapassou o patriarcado” e o feminismo é portanto uma peça de museu. Claro que a extrema-direita está perto de ser o partido mais votado, mas nem a misoginia neonazi parece ser um risco para as mulheres. De novo, o mal disfarçado racismo: é “pela porta das traseiras” que a opressão das mulheres, alegadamente ultrapassada, poderá “regressar”, depois de alegadamente superada.

Na questão da discriminação LGBTQI+, Wagenknecht quer impor o silêncio: as pessoas na Alemanha de leste “não conseguem lidar com esses debates sobre diversidade. (...) Há um tipo exagerado de política de identidades em que tens de pedir desculpa se falares num tema e não tiveres passado de imigração ou se fores straight [heterossexual]”.

O capitalismo continua a punir a diferença, ao mesmo tempo que transforma a sexualidade num mercado cheio de nichos, mas em vez de reconhecer o potencial emancipatório das perspetivas feministas e LGBTQI+ perante a exploração dos corpos sob o mercado livre, este nacionalismo assume o pior dos conservadorismos: invisibilização e silenciamento.

 

Desertar da esquerda

Uma das piores consequências do expansionismo de Putin e da invasão da Ucrânia foi uma radicalização de alinhamentos errados, sejam da esquerda que se tornou o tal peão negro no xadrez das potência secundárias, sejam de quem passou a naturalizar a NATO como um reduto defensivo - que aliás nunca foi.

A posição do Bloco sobre a invasão da Ucrânia prova que é possível - e mesmo indispensável - conciliar a crítica do imperialismo com o apoio à resistência defensiva do invadido. Ao invés, o partido de Wagenknecht surge como exemplo acabado da esquerda que se assume peão negro. Mas dizê-lo assim não seria exato: a conciliação de classes, o supremacismo alemão e anti-imigrante, a capitulação conservadora - toda essa mutação já levou Wagenknecht para longe do campo da esquerda.