Via Jacobin AL
Tradução: Equipe Radar Internacional
Hoje completam-se dez anos desde que o povo grego votou de forma categórica em um referendo para rechaçar o programa de austeridade imposto pela UE. O ex-ministro de finanças grego, Yanis Varoufakis, nos conta como sucedeu a traição que veio depois.
Há dez anos o povo grego votou de forma contundente em um referendo para rechaçar o programa de austeridade que a União Europeia queria impor. Todavia, o primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, logo aceitou um acordo ainda pior.
Yanis Varoufakis foi Ministro de Finanças do governo Syriza até renunciar em protesto pelo acordo que Tsipras estava disposto a assinar depois do referendo. Falou com a Jacobin sobre o auge e a queda da esquerda anti-austeridade na Grécia, as devastadoras consequências do seu fracasso para a sociedade grega e o mal-estar generalizado da União Europeia depois da má gestão da Grande Recessão.
Daniel Finn: No inicio de 2015, quando o Syriza conseguiu formar governo, qual era a lógica estratégica que sustentava os esforços para reverter os programas de austeridade que a troika havia imposto a Grecia durante os últimos anos?
Yanis Varoufakis: No dia que formamos o governo, havíamos completado cinco anos definhando no fundo do poço da austeridade, com uma população mergulhada em uma crise humanitária.
Havia suicídios, mortes por desespero, pessoas que não recebiam tratamento médico porque não podiam pagar os medicamentos e as aposentadorias e salários haviam diminuído em 40%.
Devido a arquitetura defeituosa da eurozona, depois da quebra dos bancos alemães e franceses, a Grécia foi o país cujo Estado acabou em falência. Tudo começou em Wall Street, depois se transportou para Dubai e finalmente alcançou os bancos franceses e alemães.
Deixaram de refinanciar a dívida pública bastante elevada do Estado grego, que era elevada porque a dívida privada era baixa. Era exatamente o contrário da Irlanda, por exemplo.
A dívida total não era muito elevada na Grécia. Mas o setor público estava inflado em relação à dívida. Nesse momento, o Estado grego entrou oficialmente em falência.
Ao invés de aceitar essa realidade, os poderes estabelecidos - que estavam absolutamente decididos a garantir que os cidadãos europeus resgatassem os bancos franceses, alemães e italianos e, em certa medida, também os gregos - decidiram transferir as perdas do sistema bancário para as costas dos mais frágeis.
Na prática, isso equivalia a não poder pagar a hipoteca porque sua renda já tinha ido embora e se sentia obrigado a solicitar um cartão de crédito para fingir que continuava pagando a hipoteca. Se um amigo seu te dissesse isso, você lhe diria imediatamente: “Pare de fazer isso, é um suicidio”.
Nos elegeram para parar com essa dinâmica suicida. Aceitei o desafio de fazer parte desse governo, ocupando um posto na cadeira elétrica do Ministério de Finanças do Estado mais falido da Europa por uma razão muito simples. Havia apresentado aos meus colegas - ao primeiro-ministro Alexis Tsipras e sua equipe - um plano duplo.
A primeira parte do plano se referia ao que fazer para evitar a chantagem que sem dúvida viria da troika e do setor financeiro: “Ou assinam na linha tracejada para outro cartão de crédito ou fechamos os seus bancos”. A primeira parte do plano era o plano de dissuassao: como dissuador esse tipo de terrorismo financeiro, como eu o chamo.
A segunda parte era o que aconteceria se não conseguíssemos dissuadi-los e eles fechassem os nossos bancos, como realmente fizeram. Como emitir a nossa própria moeda para nos libertar dessa prisão de devedores?
Foi com isso que entramos no governo, pelo menos isso era o que eu pensava, até que, no momento do referendo, me dei conta de que o meu próprio chefe não estava interessado em levá-lo a cabo. Capitularam, eu renunciei e o resto é história, como costuma-se dizer.
DF: Como foi a experiência de negociar com a União Europeia durante a primeira metade de 2015, tendo em conta os distintos atores implicados: a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu [BCE] e os diferentes governos nacionais com as distintas hierarquias entre Estados menores e maiores ou entre Estados “centrais” e “periféricos”? Você comparou de forma muito célebre a experiência de tentar apresentar argumentos econômicos concretos a alguns destes interlocutores com se levantar e falar sueco e ser recebido com total incompreensão.
YV: Permita-me dizer que não cheguei em Bruxelas, Berlim e Frankfurt com grandes expectativas de um debate racional. Todavia, embora levasse muito poucas expectativas na minha mala, devo admitir que me surpreendeu a irracionalidade orquestrada e os incríveis níveis de incompetência e cinismo que encontrei.
Essa experiência teve três dimensões diferentes. Em primeiro lugar, nas reuniões privadas, me surpreenderam porque a princípio aceitavam incrivelmente a minha narrativa. A repeti várias vezes e ninguém a negou.
Quando conheci Christine Lagarde pela primeira vez - era diretora gerente do Fundo Monetário Internacional naquele momento, antes de passar a presidência do BCE - me surpreendeu porque se mostrou muito compreensiva com a minha análise sobre o que havia falido e porque os programas de austeridade não iriam funcionar.
Me disse: “Claro Yanis, não vão funcionar, tem toda razão”. Na verdade, me criticou a partir de uma posição mais à esquerda do que a minha, porque disse que eu estava sendo demasiado modesto e moderado em relação ao que exigia em novo do meu povo. Pensei: “Que fácil, se pudermos seguir assim, meu trabalho será feito antes que me de conta”.
Entretanto, ela acrescentou imediatamente: “Mas Yanis, você tem que entender que investimos muito capital político nesse programa e tanto a sua carreira como a minha dependem de que sigamos adiante”. Respondi a ela: “Mas Christine, você sabe que não me importo nem um pouco com a minha carreira política. Tenho um mandato do povo e isso é a única coisa que me importa. Se eu deixar de ser Ministro das Finanças, o que mais dá pra fazer? Não é problema meu”.
Imediatamente me converti em persona non grata porque não seguia o jogo. Essa foi a primeira dimensão, te prometi três. A nível pessoal, fiquei atônito porque pareciam entender perfeitamente o tipo de crime contra a lógica que estavam cometendo durante anos antes da minha chegada.
Logo apareceu uma segunda dimensão: a enorme competência dessa gente. Isso me assombrou ainda mais, porque eu esperava tecnocratas com certo nível de competência - do tipo que você encontra quando fala com o pessoal do Goldman Sachs. Pode até ser que representem um perigo claro e presente para a humanidade, mas, ainda sim, conhecem seu negócio. Sabem dos títulos, derivados e entendem a mecânica do sistema financeiro capitalista.
Não era o caso da troika. Não me refiro ao Mario Draghi, mas sim aos subordinados que enviavam para discutir sobre vários temas: privatizações, tipos de IVA etc. Se tivessem sido meus alunos, falando como professor, simplesmente os teria reprovado no primeiro semestre do primeiro ano de graduação.
Foi surpreendente. Foi outro golpe para mim. A terceira dimensão foi o cinismo puro das pessoas mencionadas anteriormente. Quando acudi à minha primeira reunião de ministros de finanças da zona do euro, fiz isso com a intenção de iniciar um debate em um tom entre colegas. Não fui com nenhuma intenção de criar confrontação, muito pelo contrário.
Em todo caso, fui demasiado modesto, como acusou a Lagarde. Disse algo que me parecia totalmente de acordo com a ideologia e os modais que eu imaginava que essas pessoas tinham:
“Senhoras e senhores, sei que a maioria de vocês não quer me ver aqui, porque represento a esquerda radical da Grécia e vocês prefeririam tratar com nossos predecessores. Mas isso é o que decidiu o eleitorado grego, então sejamos sinceros uns com os outros.
Existe um programa de austeridade e resgate que os governos anteriores assinaram. E como existe, eu gostando ou não, uma continuidade nas obrigações do Estado com os demais Estados membros, não é que existe um novo governo e se apagam todas as obrigações dos governos anteriores.
Reconheço essa continuidade do governo, apesar de termos um novo mandato e nosso novo mandato e renegociar e, em essência, anular essas obrigações. Então, o que acontece em uma democracia liberal quando se chocam dois princípios importantes?
Quais são os princípios importantes? Um e a continuidade do governo e do Estado. O outro é o mandato democratico de um novo governo. Quando dois princípios diferentes e contraditórios se chocam em uma democracia liberal, os democratas se sentam ao redor de uma mesa e buscam um compromisso.”
Quando disse isso, sentia dúvidas sobre mim mesmo e me perguntava por que estava sendo tão moderado. Ao fim e ao cabo, acabava de ser escolhido Ministro de Finanças de um governo de esquerda radical. Mas logo pensei: “É uma boa maneira de iniciar as negociações com um tom positivo e entre colegas”.
Mas, e aqui o defunto Wolfgang Schauble, que era o Ministro de Finanças alemão, pediu a palavra irritado. Estava claramente incomodado com o que eu tinha falado. Sem me dar as boas-vindas ao Eurogrupo, como é habitual, foi direto ao ponto. Disse: “Não se pode permitir que as eleições mudem a política econômica do Eurogrupo”.
Devo dizer-lhes que não esperava tal cinismo. Naturalmente, isso me levou a dizer - e não me arrependo de ter falado isso - que deveria ser uma boa notícia para o Partido Comunista da China, porque eles também pensam que as eleições não devem mudar a política econômica.
Não mencionei o fato de que na China mudam a política econômica. Não necessitam de eleições, mas quando mudam as coisas, muda a política econômica. Essa é a diferença em relação à Europa. Temos eleições e os governos mudam, mas a política econômica, especialmente a política econômica falida, não muda.
DF: Que impressão você teve dos governos dos países que se consideravam em uma situação similar à da Grécia naquele momento? Irlanda e Portugal também foram obrigados a aceitar os programas da troika e também tinha a Espanha, que não estava formalmente sob tutela da troika, mas recebia instruções explícitas do BCE e da Comissão sobre os cortes que deveria aplicar. Tem também a Itália, que tinha um problema de dívida muito importante.
Os governos desses países se mostraram mais compreensivos ou se uniram ao bloco unificado que você enfrentava do outro lado da mesa?
YV: Existiam três grupos de países. Em primeiro lugar, tinham os representantes dos países que se encontravam dentro do “espaço vital” - não o traduza para o alemão, não é uma boa ideia - da República Federal da Alemanha. Esse grupo incluía países como Eslováquia e Letonia, que haviam imposto medidas de austeridade muito antes da crise de 2008.
Haviam arruinado suas próprias populações com a austeridade e eram mais monárquicos que o rei, ou mais alemães que o Ministro de Finanças alemão. Eram os mais agressivos, os que falavam desde o início do “Grexit”, isto é, de expulsar a Grécia do euro se eu me atrevesse a seguir questionando o memorando de entendimento [MOU] que tinha herdado.
Eram os bulldogs do Wolfgang Schauble. Ele não precisava falar, porque eles falavam primeiro e eram tão agressivos e abusivos que, quando Schauble falava, parecia uma versão mais razoável deles. Permita-me um inciso: trata-se mais ou menos do mesmo grupo que hoje se mostra tão entusiasta em impedir o fim da guerra entre Ucrânia e Rússia. Fecho o parênteses, mas acredito que é uma conexão importante que deve ser pontuada.
Depois havia um segundo grupo de países que, como a Grécia, tinham caído sob a cortina de ferro dos programas de austeridade e resgate. Me refiro aos países que já mencionou: Portugal e Irlanda, naturalmente, mas também a Espanha, porque a Espanha já tinha passado pelo seu próprio resgate. Foi um resgate mediano, que só afetou seus bancos, mas ainda assim foi oficialmente um resgate.
Agora estavam aterrorizados de que o nosso governo pudesse conseguir melhores condições para o povo grego, porque tinham submetido seu próprio povo a um sofrimento desnecessário e cruel com seus programas de austeridade. Pensa no que estava acontecendo na Irlanda, em Portugal e na Espanha, por exemplo.
Se a nossa dura postura negociadora reportasse para eles algum benefício sequer para o povo grego, eles estavam absolutamente aterrorizados de que seu próprio povo se voltasse contra eles e dissesse: “Por que não lutaram por nós como o governo grego está lutando pelo povo grego?”
Talvez estivessem inclusive mais motivados que os bulldogs do Schauble para nos ver fracassar. Sentiam certa simpatia por nós porque estavam no mesmo barco que nós, mas os representantes políticos estavam absolutamente horrorizados diante da ideia de que pudéssemos ter êxito na negociação do nosso memorando de entendimento.
Também existia um terceiro grupo de países, como Itália e França - não se pode esquecer da França - que temiam necessitar também de um resgate. Eram os que sentiam mais simpatia por nós e estavam ainda mais horrorizados que os outros dois grupos diante da ideia de que Schauble e Angela Merkel descarregassem sobre eles toda a frustração que sentiam com nos empurrando-os a um resgate.
Em outras palavras, o que tento descrever é um Eurogrupo no qual era impossível navegar baseando-se no pensamento racional e nos argumentos econômicos, porque o único fator determinante do comportamento desses ministros de finanças era o medo. Todos estavam absolutamente horrorizados e aterrorizados diante da ideia de que a Grécia se convertesse em algo viável como resultado da eleição de um governo de esquerda.
Se quiser criar um órgão decisório que simplesmente não preste nenhuma atenção a viabilidade da eurozona e seus Estados membros e que só se preocupe de assegurar que estivessem dispostos a fazer qualquer coisa para que nada mudasse, esse é o tipo de órgão decisório que você criaria.
DF: Houve um momento na política irlandesa, pouco depois do desenlace da crise na Grécia, em que um dos ministros do Partido Trabalhista zombou dos partidos da oposição dizendo: “Quem fala agora do Syriza?”
YF: Permitam-me pontuar que essa é a razão pela qual não perdoo meus antigos companheiros por capitular. Não é só pelo que fizeram ao povo grego, mas também porque foram, depois de Margareth Thatcher, talvez os piores inimigos da esquerda em toda a Europa, e talvez em todo o mundo.
DF: Se remontamos ao momento da decisão no verão de 2015, depois de várias rodadas de negociações que não pareciam chegar em lugar nenhum, os principais atores europeus seguiam insistindo na continuidade das políticas econômicas dos memorandos anteriores. Ao invés de ceder a pressão nesse momento, Alexis Tsipras anunciou que iria convocar um referendo sobre os termos do acordo proposto.
Como foi tomada a decisão de convocar o referendo? Qual foi a dinâmica da campanha e como Tsipras acabou aceitando um programa de austeridade ainda mais draconiano pouco depois, apesar do resultado da votação?
YV: Espero que me perdoe se eu corrigir um mal-entendido básico que está implícito na pergunta de uma maneira totalmente compreensível. Não é assim como eu vi ou vivi as coisas. Eu não via o referendo como uma forma de continuar a luta.
Lamentavelmente, meu antigo companheiro Alexis Tsipras convocou o referendo não para ganhá-lo, mas sim para perdê-lo. Ele já tinha se rendido e eu já estava prestes a sair, embora mantinha meu cargo no Ministério de Finanças.
Para explicar o que aconteceu com o referendo e como chegamos ao terceiro programa de resgate, que arruinou a esquerda e o povo grego e converteu a Grécia em uma economia social inviável, tenho que começar pelo começo. Como disse antes, a Grécia estava em uma prisão de devedores, a menos que nossa dívida fosse substancialmente anulada ou reestruturada de tal modo que fosse equivalente a uma anulação.
Existem formas muito inovadoras de disfarçar uma anulação: troca de dívida ou outras coisas do estilo. Isso é o que propus como exercício para salvar as aparências da troika. Se vai fazer isso, a única forma de fazê-lo é se está disposto a partir. Deve estar preparado para imaginar que você sai da sala de negociações e diz: “Senhores, existe um ponto morto. Vou seguir meu próprio caminho”.
O que significa seguir seu próprio caminho? Significa imprimir sua própria moeda e deixar de pagar sua dívida em euros, porque se você não tem euro, não pode pagar sua enorme dívida em euros e sofre as consequências, mas recupera sua autonomia e sua soberania monetária e trata de começar de novo. A menos que você esteja disposto a fazer isso, não tem sentido entrar na sala de negociações.
Isso é o que eu havia falado aos meus colegas. Naturalmente, não se trata apenas de apertar o botão nuclear e dizer: “Vou embora, abandono a eurozona”. Tem que ter matizes, dispor de armas intermediárias que podem ser ativadas para sinalizar a intenção de abandonar caso seja necessário. Se não se faz isso, é melhor não se candidatar às eleições.
Você nunca entraria em uma negociação se fosse sindicalista e nem sequer pudesse imaginar a possibilidade de se retirar. Isso é o básico das negociações. A única razão pela qual aceitei o Ministério das Finanças foi porque tinha apresentado a Alexis Tsipras uma proposta muito concreta sobre o que deveríamos fazer.
Disse a ele:
“Olha, se formos eleitos, vão te chamar em Frankfurt, Bruxelas ou Berlim e te dirão: “Parabéns, assina na linha ponteada ou fechamos os seus bancos”. Tem que ter uma resposta para isso. Tem que ter um plano dissuasório para impedir que façam isso.”
Eu tinha tido uma ideia. Ainda acredito que, se me tivessem permitido usar essa ferramenta, não teriam fechado nossos bancos. Era uma questão técnica, mas na prática envolvia uma pequena quantidade de dívida que devíamos ao BCE. Se eu não reestruturasse essa dívida, anulando uma parte ou inclusive atrasando o pagamento, isso teria um efeito dominó.
Eu poderia ter feito isso simplesmente com uma ordem executiva do Ministério de Finanças: já tinha ela no meu escritório, só faltava assiná-la. O presidente do BCE, Mario Draghi, tinha apenas uma coisa em mente: como salvar a Italia de cair no mesmo agulheiro negro comprando divida publica italiana. Por razões complicadas, não teria podido comprar dívida pública italiana se me tivessem permitido assinar essa ordem.
Esse era o meu plano dissuasório. Basicamente, disse a Draghi que se ele fechasse os meus bancos, eu assinaria o documento e ele não poderia comprar dívida italiana. Acredito que isso teria bastado para impedir essa medida tão drástica, que era na realidade terrorismo financeiro, fechar nossos bancos para chantagear o povo grego e obriga-lo a aceitar o terceiro resgate.
A tragédia foi que, desde o começo, me dei conta de que meu primeiro-ministro era muito relutante em me deixar fazer isso. Adiava a ação dizendo: “Faremos isso na semana que vem”.
Em algum momento, descobri que dois meses e meio depois de me converter em Ministro de Finanças, enviaram uma mensagem do escritório de Tsipras para a equipe de Draghi no BCE: “Não se preocupem por Varoufakis: não deixaremos ele fazer isso”. Era um pouco como enviar Davi ao campo de batalha contra Golias depois de lhe ter roubado a catapulta.
Eu tinha uma catapulta, acreditava que era uma arma nuclear, talvez fosse uma catapulta, talvez fosse uma arma nuclear. Mas me roubaram. Soube desde o início que as coisas não pareciam bem. Fomos eleitos em janeiro. Em junho, as negociações não avançaram, por que iriam negociar com nós se nossa parte enviava mensagens dizendo que não estávamos dispostos a nos retirar e utilizar nossas armas?
A razão pela qual não renunciei foi porque acreditava que, enquanto houvesse 5% de possibilidade de que o primeiro-ministro recobrasse o sentido comum e seguisse lutando, eu deveria estar ali para ajudá-lo.
Além disso, nossa gente não tinha nem ideia do que se passava nos bastidores. Estavam eufóricos porque, finalmente, havia um governo que lutava por eles. Se eu tivesse renunciado de repente, teria sido um desastre para a moral da nossa gente.
No dia 20 de junho estava claro que o meu primeiro-ministro estava tentando se render. Mas não deixaram, porque queriam arrastá-lo pelo barro. Como você mencionou, o ministro do Partido Trabalhista disse aos membros do Sinn Fein no Parlamento irlandes: “Isso é o que acontece quando se vota em partidos como o Syriza”. Mariano Rajoy, o primeiro-ministro conservador da Espanha, disse ao povo espanhol: “Isso é o que vocês vão obter se votarem no Syriza espanhol”, referindo-se ao Podemos.
Neste momento, não o deixaram se render. Ele já tinha me relegado, embora eu continuava sendo o Ministro de Finanças. Estava ali, simplesmente encorajando-o: “Vamos, supera seu impulso de se render. Sigamos lutando”. Convocou o referendo porque viu como uma saída.
Ele estava convencido de que perderíamos, o que não é tão irracional se você pensar bem. Nas primeiras eleições de 2012, nosso partido passou de 4% para 17% dos votos. Em 2015, formamos um governo com 36% dos votos. 36% não é uma maioria esmagadora, a maioria seguia votando contra nós.
Embora contássemos com um apoio imenso durante esses cinco ou seis meses de luta com a troika, devemos lembrar que ela fechou os bancos para que só tivesse cinco dias de trabalho antes do referendo do domingo e para que as pessoas não pudessem acessar seus próprios depósitos. Tsipras pensava que com cada dia que os bancos permaneciam fechados, perderíamos apoio e tudo o que se necessita para perder um referendo e não obter 51%.
A partir da sua perspectiva, pensava que perderia.
Não teria sido uma grande perda para ele, porque se tivesse obtido 40 ou 45% a favor do “não” à troika, teria elevado nossa porcentagem de 36 a 40 ou 45%. Poderia proclamar isso como uma vitória pessoal e, ao mesmo tempo, teria tido um mandato para renunciar antes da troika, algo que antes não tinha.
Por isso, na noite de domingo 5 de julho, desabou quando apareceu nas nossas telas esse número tão notável, com 61% dizendo “não” à oferta da troika. Fui ao seu escritório e parecia um velório. Ele tinha olheiras. Entrei ali celebrando e ele estava no chão.
Ele me disse: “E hora de se entregar”. Ao que eu respondi: “Não, é justamente o contrário: as pessoas estão celebrando, temos o dever ético e político de seguir lutando”. Foi assim que aconteceu.
DF: Como você resumiria as consequências da crise de 2015 e seus resultados para a sociedade e a política gregas nos últimos dez anos?
YV: Para começar, permita-me estabelecer um paralelismo entre um motim em uma prisão e o que aconteceu em 2015. Quando os presos que vivem em condições horríveis em alguma prisão abandonada se amotinam e tomam controle da prisão, queimam colchões, chegam as câmeras e sai tudo nos noticiários. É um problema importante.
Mas quando chega a polícia ou o exército para esmagar a rebelião, dois dias depois ninguém fala mais sobre isso. Isso não significa que as condições na prisão melhoraram, talvez sejam até piores. Infelizmente, essa metáfora se encaixa muito bem ao que aconteceu na Grécia.
Os financistas do mundo inteiro adoram a Grécia. E o seu sonho úmido. Não acredito que possam obter maiores taxas de lucros ou de extração de renda em nenhum outro lugar do mundo do que na Grécia, por isso a adoram. Quando falam da “história de êxito grega” e aplaudem os ministros do governo grego que visitam Davos, a cidade de Londres e Wall Street, tem muitas boas razões para fazer isso.
Vou te dar um exemplo. Somos um país de 10 milhões de habitantes. Neste momento, existem 1 100 000 moradias embargadas pelos fundos abutres que compraram os empréstimos morosos das famílias e das pequenas empresas que até agora eram proprietárias desses imóveis. Estamos falando de 1 100 000 apartamentos, casas e pequenos comércios em uma população de dez milhões de habitantes.
Um exemplo concreto é o de uma pessoa que conheço porque trabalhei no seu caso. Meu partido, MeRA25, tem ajudado em casos concretos, não apenas neste. Ela se chama Maria. A Maria comprou em 2008 um apartamento pelo valor de 250 000 euros. Pagou 50.000 euros de entrada e pediu emprestado os 200 000 restantes. Vendeu um terreno e conseguiu devolver grande parte do empréstimo muito rapidamente.
Dos 200.000 euros que havia pedido emprestado com uma hipoteca de vinte e cinco anos, devolveu metade, então só devia 100 000 euros. Ela estava muito bem. Seu negócio funcionava bem.
Mas em 2011 tudo desabou devido a Grande Depressão que afetou a Grécia. Ela perdeu sua loja e seus recursos e agora tinha essa dívida pendente de 100 000 euros da sua hipoteca que não podia pagar. Esses 100.000 euros se converteram em 200 000 euros com os juros e as penalizações pela demora nos pagamentos.
Um fundo abutre com sede na Irlanda e conta bancária nas Ilhas Caiman comprou esse empréstimo de 200 000 euros do banco grego que o havia concedido em um primeiro momento. Pagou 10 000 euros por ele, então pagaram 10 000 euros para poder tirar 200 000 euros da pobre Maria.
Agora estão despejando ela: estão colocando esse apartamento à venda por 150 000 euros. Ela não recebe nada, apesar de já ter devolvido 150 000 euros dos 250 000 originais. Enquanto isso, eles pagaram 10 000 euros, mas vão cobrar 150 000: calcule a taxa de lucro.
Esse dinheiro vai sair do fluxo circular de rendimentos grego e vai legalmente para as Ilhas Caiman.
Por que os fundos abutres celebram a situação da Grécia enquanto os gregos sofrem? Se analisarmos cuidadosamente, não é realmente um paradoxo. Para oferecer uma visão macroeconômica mais completa, em termos de PIB, hoje temos mais ou menos os mesmos rendimentos nacionais que em 2009. Sofremos uma forte queda, mas agora nos recuperamos.
Mas durante esse período tivemos uma inflação enorme, como o mundo inteiro desde 2022. Hoje temos a mesma quantidade de euros do que em 2009, mas o poder aquisitivo é 40% inferior ao daquele ano. Além disso, devido às intervenções da troika, houve um grande aumento do IVA, de 19 a 24%, assim como enormes impostos sobre o trabalho, habitação, tudo. O Estado arrecada o dobro em impostos em comparação com 2009.
A renda real disponível hoje é 44% inferior à de 2009. Além disso, o acordo de resgate que eu não assinei comprometeu a Grécia até o ano de 2060 a ter um superávit primário gigantesco. Cada ano saem da economia aproximadamente 150 bilhões de euros que vão para a troika. Se somarmos a isso nosso déficit de conta corrente de 25 bilhões de euros, estamos basicamente pedindo emprestado 25 bilhões de euros para poder chegar ao fim de mês como sociedade.
O que eu descrevi para vocês unicamente e, independentemente da sua economia política, uma economia social inviável. Vinte e cinco por cento da população está melhor do que nunca, os que estão do lado da troika e no bolso dos oligarcas. Mas 80 por cento não está.
Não estão em pé de guerra, mas sim deprimidos. Ficam em casa e lambem as feridas. Estão privatizando seus pesadelos e as poucas esperanças que lhes restam. Quando ouvem pessoas fora da Grécia celebrar o “êxito grego”, volto a minha metáfora sobre um motim em uma prisão que foi asfixiado. As condições na prisão pioraram, mas ninguém fala sobre isso.
DF: Como você avaliaria o legado ou os legados duradouros para a UE sobre a forma que se administrou a crise da zona do euro e, em particular, da forma que a Grécia foi tratada em 2015?
YV: Nao tenho nenhuma dúvida de que os historiadores do futuro vão analisar a gestão absurda da inevitável crise do euro - inevitável devido a arquitetura do euro - e a forma como a Grécia foi utilizada como cobaia para a combinação de uma austeridade severa para a maioria e a impressão de dinheiro para os banqueiros e apontarão isso como a razão pela qual a Europa está prestes a entrar (ou já entrou) em um possível declínio de um ano.
Me lembro de ter tido essa conversa com Wolfgang Schauble. Quando falava com essas pessoas, não era simplesmente um defensor do povo grego. Era naturalmente, tinham me escolhido para isso, esse era o meu mandato. Mas eu falava em nome de toda a Europa.
Eu dizia a eles: “Olhem, criamos o euro de uma forma terrível. A arquitetura parecia como se tivesse sido desenhada para que fracassasse. Estava claro desde o começo. Pensa bem. Criamos um banco central para vinte países. O banco central não tinha tesouraria e haviam vinte tesourarias que não tinham banco central”.
Foi como tirar os amortecedores de um carro e dirigir em direção a uma vala. Foi isso o que nós fizemos. A crise foi uma oportunidade para reconfigurar e melhorar a arquitetura do euro. Mas a austeridade foi um meio para evitar isso, utilizando no lugar a capacidade de impressão de dinheiro do BCE para manter os mercados financeiros em funcionamento. Imprimiram entre 8 e 9 bilhões de euros para serem entregues aos mercados financeiros, enquanto aplicavam medidas de austeridade para a maioria.
O que acontece quando se esmaga o poder aquisitivo das pessoas e se dá muito dinheiro para as grandes empresas? As grandes empresas recolhem esse dinheiro, naturalmente, e dinheiro gratis, por que não iriam pegá-lo? Mas olham pela janela dos seus castelos em Paris ou Frankfurt e a única coisa que veem são massas indigentes.
Não vão investir, porque a maioria das pessoas não pode se permitir comprar produtos de alto valor agregado. Mas tem esse dinheiro que foi impresso e foi dado a eles, então o que vão fazer? Vão à bolsa e recompram suas próprias ações.
O preço das suas ações dispara e as suas bonificações estão vinculadas ao preço das ações, então dão risadas no caminho de volta ao banco. Vão e compram um novo apartamento, um novo iate, mais bitcoins, uma obra de arte. Os preços dos ativos sobem, enquanto a maioria das pessoas segue sem dinheiro e não há investimento.
Depois de quinze anos assim, e o fim da Europa. E a razão pela qual a Alemanha está se desindustrializando. Está se desindustrializando porque não houve investimento nos últimos quinze anos. Os diretores gerais e os membros do conselho de administração estavam nas maravilhas, mas não investem.
Enquanto os chineses investiram até não poder mais e o Elon Musk investia na Tesla, Space X, Starlink etc, a Europa teve um investimento produtivo líquido zero durante dezesseis ou dezessete anos. Isso é um absurdo. O resultado é que agora a Europa está morrendo. Se as pessoas se perguntarem - e deveriam fazer isso - por que o fascismo está vivendo um segundo ou terceiro auge, é porque isso é o que acontece quando se vive algo como 1929.
Nosso 1929 aconteceu em 2008 e então tivemos governos (como o que eu fazia parte) da esquerda radical que capitularam. Tivemos social-democratas impondo políticas que eram muito piores que as de Margaret Thatcher na Grã-Bretanha em nome da social-democracia em países como Alemanha, França, Grécia e Itália. Os únicos que se beneficiarão politicamente disso são os neofascistas, a machosfera, os racistas.
A história da Grécia não é só da Grécia. Por alguma razão, esse meu pequeno país esteve no começo de grandes desastres. Não sei o que tem esse lugar, mas se você pensar bem, a Guerra Fria começou aqui. Não começou em Berlim, mas sim nas ruas de Atenas em dezembro de 1944. Esse foi o primeiro incidente. A Doutrina Truman, que supôs o início da OTAN e da Guerra Fria, foi redigida pelo presidente Harry Truman para a Grécia.
Em 2009-2010, também iniciamos a crise do euro. Por isso acredito que a história da esquerda grega - e incluo o partido de que fiz parte - é indesculpável. Arrastamos com nós a esquerda europeia porque tivemos a oportunidade de marcar a diferença, ao ser o primeiro país, a primeira peça do dominó. E perdemos essa oportunidade.
DF: Em toda a Europa e nos Estados Unidos existe uma sensação generalizada de que os horizontes se estreitam, com um pessimismo muito maior na esquerda radical. No lugar de tentar substituir os partidos de centro-esquerda estabelecidos em países como Espanha e Portugal, a principal aspiração nos últimos anos tem sido empurrar a centro-esquerda para fazer um pouco mais em termos de gasto social do que faria normalmente.
Embora algumas das políticas promulgadas podem ser bem recebidas pelas pessoas e fazer alguma diferença nas suas vidas, está claro que estão muito longe das aspirações que se colocavam em meados da década passada. Em outros países, nem sequer se trata de chegar tão longe, mas sim de manter a linha frente ao auge da extrema-direita, que claramente tem o vento a seu favor. Onde você acredita que a esquerda poderia começar a mudar o equilíbrio de forças e abrir novos horizontes de possibilidade?
YV: Para efeitos de transparência, devo esclarecer que não sou um comentarista, mas sim um participante. Dirijo o MeRA25, nosso partido radical de esquerda na Grécia neste momento e faço parte do DiEM25.
É importante pontuar isso porque a razão pela qual faço parte desse movimento e porque rechaçamos o gradualismo. Rechaçamos a lógica do mal menor, de ter que escolher entre a centro-esquerda e a centro-direita. Nós rechaçamos ambas. Consideramos que a centro-esquerda foi muito mais responsável pelo auge da direita e muito mais responsável pela deterioração do tecido social na Europa.
Permitam-me lembrar que foi a centro-esquerda que inventou a austeridade tendo em vista a lógica do mal menor. Não foi Schauble nem os democratas cristaos na Alemanha, mas sim Peer Steinbruck, dos social-democratas, quem impulsionou a austeridade quando era ministro de finanças. Antes disso, foi Gerhard Schroder quem introduziu as reformas Hartz IV que paralisaram a classe trabalhadora na Alemanha.
Foi o PASOK aqui na Grécia que introduziu o primeiro resgate. Não se pode pressionar a centro-esquerda para que faça algo que os poderes estruturados - os financeiros, a troika, o BCE - não lhe permitem fazer. Ao final, nem sequer eles mesmo querem fazê-lo. Querem apenas aparentar que fazem.
Quando você enfrenta uma crise sistêmica como a que vivemos desde 2008 e o gradualismo do extremo-centro - que inclui tanto a centro-direita como a centro-esquerda - e a verdadeira fonte de energia e dinamismo dos fascistas, a única coisa que você pode fazer e se levantar contra ambos, já que são como Tweedledum e Tweedledee. Na UE atual, temos Ursula von der Leyen, uma presidenta da Comissão Europeia belicista, meio louca e partidária do genocidio, com o apoio do Partido Popular Europeu de direita e dos socialistas e democratas de centre-esquerda.
Não é momento de dizer, nos Estados Unidos, por exemplo, que Joe Biden é um pouco melhor que Donald Trump: “Talvez você deveria votar no cara que armou Netanyahu para levar a cabo o genocidio”. Não, não faremos isso. Temos que lutar contra ambos.
YANIS VAROUFAKIS
Foi Ministro de Finanças grego durante os primeiros meses do governo liderado pelo Syriza em 2015. Entre seus livros figuram The Global Minotaur e Adults in the Room.