A corrupção como álibi: como a extrema-direita instrumentaliza o mal-estar

POR MIGUEL URBÁN CRESPO
Texto publicado originalmente no El Salto.

A cruzada anti-corrupção da extrema-direita não tem nada a ver com ética ou limpeza das instituições. Faz parte de uma estratégia discursiva neoliberal para estigmatizar as ideias dos seus adversários políticos, dinamitar a esfera pública e reforçar um modelo autoritário.

O “governo criminoso de Pedro Sánchez” passou “sete anos a cavalgar sobre s mentira, a traição, a divisão e a corrupção”. Foi assim que Santiago Abascal se exprimiu na passada segunda-feira, a partir de Mormant-sur-Vernisson, a sul de Paris, durante o encontro dos Patriotas pela Europa. Enquanto criticava a alegada corrupção do Governo espanhol, desculpava a sua homóloga francesa e anfitriã do evento de ultra-direita, Marine Le Pen, recentemente condenada por desvio de fundos do Parlamento Europeu. Alimentou assim as teorias conspirativas da vitimização como forma de deslegitimar a sentença contra a líder francesa: “Temos de compreender que a perseguição contra nós não será uma exceção, mas sim a norma”.

Poucos dias após o encontro ultra nos arredores de Paris, uma bomba explodiu no seio da direção do PSOE. Um relatório da Unidade Central de Operações (UCO) da Guardia Civil, entregue ao Supremo Tribunal, revelava pormenores que implicavam diretamente o secretário de organização dos socialistas, Santos Cerdán, em vários crimes, como suborno e participação numa organização criminosa. Horas depois, Cerdán apresentou a sua demissão e Sánchez pediu desculpa, num gesto que faz lembrar o de Mariano Rajoy quando o caso Bárcenas encurralou o seu partido.

Que a corrupção é um problema endémico do extremo centro (PP-PSOE) do regime de 78 não é novidade. De facto, muito do discurso e da gramática do ciclo político do 15M foi construído com base nessa premissa. A grande diferença é que, quase quinze anos depois, aqueles que parecem estar em melhor posição para capitalizar politicamente a indignação contra um governo que cheira a podre são as forças de uma onda reacionária à escala global que, em Espanha, têm no Vox a sua declinação mais reconhecível.

A retórica anti-corrupção não é uma peculiaridade do Vox. A extrema-direita global fez deste tipo de discurso uma das suas principais armas de mobilização, recorrendo a registos diversos: desde a estigmatização da esquerda como intrinsecamente corrupta, à sua utilização na guerra cultural contra o público, à agitação antipolítica contra a partidocracia, ou à vitimização defensiva quando os corruptos são eles próprios, como evidencia o recente caso francês.

Uma das grandes vitórias políticas de Jair Bolsonaro foi precisamente a sua capacidade de reativar e canalizar o anti-petismo visceral das classes média e alta do Brasil. Um sentimento tão antigo quanto o próprio Partido dos Trabalhadores, que sofreu mutações ao longo dos anos. Nas suas origens, a rejeição do PT baseava-se em acusações de comunismo próprias da Guerra Fria. Com a ascensão do partido ao poder, o foco passou a ser os casos de corrupção.

Desde então, a crítica à corrupção tornou-se um eixo central para desgastar o PT e dar forma a um movimento antipolítico que encontrou em Bolsonaro o seu principal porta-voz. Ninguém nega que a corrupção salpicou os governos do PT, mas é preciso contextualizar o que foi um claro lawfare orquestrado pelas elites contra Lula e o seu partido. A luta contra a corrupção tornou-se o discurso unificador, não contra indivíduos específicos, mas contra uma ideia: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos”, gritou Bolsonaro, equiparando a corrupção a toda a esquerda.

A extrema-direita também utiliza este discurso como uma ferramenta para corroer a confiança popular no público, nas instituições e na política como um todo. Javier Milei, o presidente argentino, levou esta lógica ao extremo, afirmando que a corrupção é consubstancial à existência do Estado. Recentemente, congratulou-se com o facto de o Supremo Tribunal argentino ter confirmado a condenação de Cristina Fernández a seis anos de prisão por corrupção. “Se há um governo no mundo que luta contra a corrupção, somos nós”, declarou, ligando a sua ofensiva privatizadora à cruzada anti-corrupção: “Cada desregulamentação é um privilégio que retiramos, seja a um político, a uma empresa ou a um grupo poderoso” (...) “O kirchnerismo utilizou as pensões de invalidez para fazer corrupção”.

No Vox, o discurso anti-corrupção tem sido utilizado repetidamente para atacar não só os rivais políticos, mas também a própria ideia de esfera pública. Esta narrativa está interligada com a sua agenda recentralizadora, consistente com a sua conceção de Espanha como um Estado uninacional, negando qualquer nacionalismo que não seja o nacionalismo espanhol.

Assim, a luta contra a corrupção está ligada à denúncia do alegado clientelismo e “esbanjamento” do Estado das autonomias, defendendo a sua supressão ou mesmo a eliminação do Senado.

Seguindo os passos de Bolsonaro, André Ventura, líder e fundador do Chega em Portugal, fez da bandeira anti-corrupção uma das pedras angulares do seu discurso. O seu slogan de campanha em 2024 - “Limpar Portugal” - não deixa margem para dúvidas, acompanhado de cartazes que apontam os políticos socialistas como inimigos a erradicar. A cadeia de escândalos, desde o que envolveu José Sócrates até ao que levou à queda de António Costa, reforçou a associação da corrupção não só à esquerda, mas a toda a “classe política parasitária” que, segundo Ventura, “enriquece há meio século enquanto empobrece o povo, que já não tem dinheiro para pagar a eletricidade, o gás, os combustíveis ou a habitação”.

Nas últimas eleições europeias, Luis (Alvise) Pérez centrou grande parte da sua campanha no ataque à partidocracia e na identificação dos políticos como sistematicamente corruptos. A sua candidatura às eleições foi a continuação da sua autoproclamada “guerra aos políticos”, numa estratégia clássica da extrema-direita: fazer da política o bode expiatório do mal-estar social, evitando apontar o dedo ao poder económico ou ao próprio sistema.

Alvise justificou a sua entrada na política como uma tentativa de obter “imunidade diplomática e parlamentar europeia para publicar áudios e documentos [...] sujeitos ao sigilo oficial ou à lei de proteção de dados”, que alegadamente obteve através de fugas de informação dos seus apoiantes. A imunidade parlamentar, segundo ele, permitir-lhe-ia continuar a sua cruzada. Neste contexto, tentou construir uma imagem de Bukele à espanhola, com o populismo punitivo como bandeira.

Uma das suas poucas propostas concretas durante a campanha foi replicar a medida estrela do Presidente salvadorenho: a construção de uma mega-prisão nos arredores de Madrid, que - prometeu - seria “a maior da Europa”, destinada a prender políticos corruptos, criminosos comuns e até pessoas com tatuagens de gangs. Na conferência de imprensa que se seguiu às eleições europeias, chegou a ameaçar diretamente Pedro Sánchez: “É melhor esconderes-te no porta-bagagens porque vamos pôr-te na prisão”, numa referência à alegada fuga do ex-presidente catalão Carles Puigdemont.

Mas quando os campeões da luta contra a corrupção são condenados por corrupção deparamo-nos com uma mudança substancial de discurso e de gramática. Já não se trata de uma perseguição sistemática ou de uma corrupção intrínseca a certas ideias ou propostas políticas, mas de uma alegada ofensiva judicial com fins políticos: casos de lawfare. Esta narrativa de perseguição é utilizada em seu proveito para se vitimizarem, monopolizarem o debate público, posicionarem-se como outsiders de um sistema que gera um descontentamento crescente e apresentarem-se como defensores de uma democracia sequestrada pelo establishment que os persegue.
Um bom exemplo da exploração política dos processos judiciais é o de Donald Trump, que conseguiu transformar as peripécias jurídicas dos meses que antecederam a sua campanha numa poderosa ferramenta eleitoral, apresentando-se como vítima do “estado profundo” norte-americano. Desta forma, conseguiu transformar a suposta fraqueza de ser imputado - e até condenado - numa força simbólica para a sua candidatura. Na mesma linha, Le Pen reinterpretou a sua condenação por corrupção como uma manobra judicial contra a democracia, que não só a desqualifica politicamente, mas - de acordo com a sua narrativa - viola o direito de voto de milhões de franceses.

No nosso ambiente imediato, há vários exemplos. Desde a condenação do Vox pelo Tribunal de Contas por uma infração muito grave - ter aceite donativos em dinheiro e sem os identificar, em violação da lei sobre o financiamento dos partidos políticos - que resultou numa multa de 862.496 euros. Santiago Abascal apressou-se a descrever o caso como uma “verdadeira caça política” com o objetivo de "inviabilizar a Vox. Ainda não se atrevem a ilegalizá-lo, mas estão a dar passos". Mais uma vez, o sistema contra eles, seguindo o manual Trumpista.

Noutro vértice, destaca-se o caso do financiamento opaco de Luis “Alvise” Pérez, denunciado pelo empresário Luis Romillo depois de lhe ter dado 100.000 euros em dinheiro durante a campanha eleitoral europeia. O próprio Alvise admitiu a operação num vídeo em que, em vez de explicar a irregularidade, se apresentou como vítima de uma perseguição e desviou o foco para as Finanças, ao mais puro estilo Milei, chegando mesmo a encorajar os seus seguidores à insubordinação fiscal: "As Finanças são uma máfia e este sistema criminoso está quebrado. Aceitei estes honorários privados sem fatura para ter poupanças e não para me enriquecer com a minha atividade política e porque me recuso a que o Estado fique com metade do que é meu".

A cruzada anti-corrupção da extrema-direita não tem nada a ver com ética ou limpeza das instituições, mas faz parte de uma estratégia discursiva neoliberal para estigmatizar as ideias dos seus adversários políticos, dinamitar a esfera pública e reforçar um modelo autoritário. Uma guerra cultural entendida como uma guerra de classes, mas deslocada, em que a corrupção não é o inimigo, mas a desculpa para instrumentalizar o ressentimento de classe ao serviço dos interesses materiais de uma fração muito concreta das elites.