Acordo eleitoral suspende sanções dos EUA à Venezuela

Por Giro Latino

 

A semana foi agitada em Caracas, e não só pelo desempenho glorioso de La Vinotinto nas eliminatórias da Copa do Mundo: na terça (17), durante uma reunião na ilha de Barbados, o governo de Nicolás Maduro e representantes do bloco de oposição Plataforma Unitária Democrática assinaram um acordo eleitoral histórico que prevê, entre outras coisas, a realização do pleito nacional no segundo semestre do próximo ano, sob o auspício de observadores internacionais, bem como a proibição de barrar candidaturas políticas, reservando aos grupos adversários do chavismo o direito de definir seus processos de forma independente. Num tom nada beligerante, Maduro celebrou o aperto de mãos que simboliza o “fortalecimento de uma democracia inclusiva e da coexistência política” num país há anos castigado pela crise institucional. O entusiasmo do líder chavista não veio à toa: no dia seguinte, em uma espécie de ‘prêmio’ à resolução, o governo dos EUA anunciou por meio do Departamento do Tesouro em Washington uma suspensão temporária de algumas das criticadas sanções aos setores venezuelanos de petróleo, gás e ouro. Vale lembrar: dona das maiores reservas de petróleo do mundo, a Venezuela tem na commodity cerca de 95% de seu setor de exportação, dependência que fatalmente aumenta o impacto de bloqueios econômicos nesses ramos de energia, prejudicando principalmente a população (e não tanto o governo em Caracas, como pretendido pelas táticas agressivas da Casa Branca). A determinação, porém, vale por apenas seis meses e pode ser “alterada ou revogada a qualquer momento”, diz o Tesouro, “caso os representantes [do governo] de Maduro não cumpram com seus compromissos”.

Impostas majoritariamente durante os anos de Donald Trump (2017-2021), quando as pressões norte-americanas à Venezuela chegaram no seu ápice – a tal ponto que nem mesmo uma possível intervenção armada contra os chavistas era descartada pela gestão republicana – as medidas de sufocamento econômico vieram em retaliação à reeleição de Maduro em 2018, vitória jamais reconhecida por Washington. Assim como dezenas de outras nações, os Estados Unidos rejeitaram a vitória do chavismo sob acusações de fraude eleitoral e repressão a opositores. Além disso, diferentemente do que se vê hoje, a oposição à época boicotou a própria participação no processo, abrindo caminho para um novo mandato chavista sem qualquer disputa real – no total, considerando o tempo do atual mandatário e os anos do país sob o finado Hugo Chávez, o movimento político hoje no poder completará, ao final do atual ciclo, representativos 26 anos dentro do Palácio de Governo, cenário que ninguém mais do que os EUA querem ver se alterar a partir do próximo ano.

Adiante na semana, outro efeito dos novos acordos: na noite de quinta-feira, o governo libertou pelo menos cinco pessoas que ganharam o status de “presos políticos” nos últimos anos, incluindo um jornalista e um político opositor. O grupo integra uma lista que contaria com mais de 200 civis que teriam sido detidos arbitrariamente, ao menos segundo organizações de defesa dos direitos humanos, como a ONG Foro Penal. De olho em deixar isso para trás, Maduro reagiu à trégua das sanções falando em “virar a página”, também projetando que seu país “voltará novamente com força no mercado” de energia em função das últimas novidades. O processo de ‘degelo’ do chavismo em relação à diplomacia mundial, é importante lembrar, faz parte de um movimento que não começou agora: de forma bastante conveniente, o xadrez global voltou a acenar positivamente ao então isolado governo venezuelano justamente quando o mercado petroleiro se viu afetado pelo conflito entre Rússia e Ucrânia. O movimento também é reflexo de uma nova onda de governos de esquerda na América Latina, com lideranças mais simpáticas a Maduro ajudando o mandatário a costurar novas relações.

Mas nem tudo são rosas nas cercanias de Miraflores – e tampouco é certo que os acordos firmados durante a semana vão colocar um ponto final na desconfiança. Aliados do chavismo no Congresso, por exemplo, não deixaram de classificar os movimentos recentes de autoridades dos EUA de “ingerentes e mentirosos”, colocando alguns pontos de interrogação no novo clima de aproximação. Além disso, todo esse caldo cozinha às vésperas de outro marco importante: pela primeira vez em uma década, acontecem, no domingo, as aguardadas primárias da oposição (entenda os detalhes), montadas para definir um nome único que – quase certamente – enfrentará Maduro nas urnas no ano que vem. O próprio desenvolvimento do processo é cercado de tensão: desde o início do ano, vários partidos e organizações acusam órgãos do governo de dificultar propositalmente a estrutura da votação prévia, o que se soma a divergências em relação aos métodos de votação. O Conselho Nacional Eleitoral (CNE), no entanto, nega os rumores e diz ter “competência exclusiva” para cuidar do assunto, algo que não tranquiliza os opositores, pois hoje o CNE é comandado por Elvis Amoroso, ex-controlador-geral visto como totalmente alinhado ao chavismo – e responsável, precisamente, por ações que ajudaram a tornar inelegíveis vários nomes contrários a Maduro na última década.

Não menos importante é a disputa a respeito de quem representará o bloco de oposição num certo duelo contra os governistas em 2024. Após o completo fiasco político de Juan Guaidó, outrora autoproclamado presidente interino com direito a chancela internacional, mas hoje escanteado até mesmo entre opositores, quem desponta como favorita para liderar o movimento é María Corina Machado. À frente nas pesquisas de intenção de voto das primárias, a ex-deputada conservadora foi inabilitada para exercer cargos públicos por 15 anos, segundo uma decisão de junho da Controladoria-Geral da República, à época ainda encabeçada… pelo próprio Elvis Amoroso. O órgão alega “irregularidades administrativas” do tempo em que Machado era parlamentar – ela nega e segue em campanha apesar da proibição.

É com essa soma de contradições que a Venezuela volta ao foco dos noticiários, juntando anúncios bombásticos à desconfiança do eleitorado venezuelano. Mesmo que o cenário mude para melhor, é difícil assegurar quais serão as condições em que a oposição vai disputar a Presidência em 2024 – ou mesmo se terão chances mínimas contra um Nicolás Maduro que parece ter sido aceito novamente na roda dos líderes mundiais. Agora resta apenas uma encruzilhada: se María Corina Machado vencer as primárias e for impedida de concorrer, as sanções poderiam voltar num estalar de dedos; por outro lado, se a oposição tiver caminho livre nas eleições, o chavismo vai conseguir se perpetuar mais uma vez?