Apontamentos para o debate sobre a Anistia e a Autodeterminação da Catalunha

Por Jaime Pastor

Agora, a batalha imediata é por uma lei de anistia para o conjunto das pessoas que sofreram represálias por causa do 'procés' e do seu exercício de direitos fundamentais. Esta é uma batalha que se pode ganhar porque há uma maioria parlamentar possível para a aprovar.


Os resultados das eleições de 23 de julho foram recebidos com alívio pela esquerda, face ao que parecia ser uma vitória anunciada da direita, mas não deram lugar a uma nova fase de estabilidade política e social como pretendiam os partidos que querem repetir um governo de coligação progressista. A conjuntura internacional e europeia está cheia de incertezas enquanto atravessamos uma policrise e, para além disso, no caso espanhol, voltou agora a entrar na agenda política o debate sobre uma lei de amnistia e o reconhecimento do direito do povo catalão a decidir, graças às exigências da aritmética parlamentar. Em suma, o receio de uma repetição das eleições parece ser um poderoso instrumento de pressão que une um conjunto de forças políticas para chegar a algum tipo de acordo para a investidura de Pedro Sánchez.

Nestas condições, o candidato Feijóo, consciente de que terá de se deparar com a sua própria investidura falhada, não demorou muito a fazer oposição, anunciando iniciativas de condenação de uma lei de amnistia, cujo conteúdo ainda não é conhecido, em câmaras municipais e comunidades autónomas, bem como, seguindo as ordens do apocalítico Aznar, convocando para 24 de setembro, em Madrid, uma concentração cidadã em defesa da tão proclamada “unidade de Espanha” contra aqueles que a querem despedaçar… Não creio que seja necessário dedicar muito tempo ao favorecimento que o líder do PP está a receber para esta campanha da velha guarda do PSOE, com Felipe González à cabeça, ou de personagens como o antigo diretor de El País, Juan Luis Cebrián. Feijóo procura, assim, antecipar-se ao Vox, demonstrando que está disposto a competir mais uma vez com esta formação, explorando ao máximo o nacionalismo reacionário espanhol como principal recurso para mobilizar o eleitorado de direita e, inclusivamente, atrair parte dos que votam no PSOE.

Entretanto, a existência na Catalunha de uma ampla maioria social e política a favor da anistia e da autodeterminação continua a ser inegável, apesar das divisões que a atravessam e do facto de não ter conseguido expressar-se nas ruas durante a Diada de 11 de setembro com a extraordinária massividade que tinha tido antes da crise pandémica. Também na Catalunha uma nova fase se abriu e espera-se que a mobilização convocada pela mal denominada Sociedade Civil Catalã contra a Amnistia, no dia 8 de outubro, tenha uma resposta unida, mais cedo ou mais tarde, de todas as forças pró-soberania e democráticas.

Por que a Anistia? Qual Anistia?

A reivindicação da anistia está suficientemente justificada pelo facto de os alegados crimes cometidos durante o procés terem sido uma resposta democrática legítima à negação da sua capacidade de decidir pelo Tribunal Constitucional na sua decisão de julho de 2010 sobre o Estatuto de Autonomia aprovado na Catalunha e à rejeição pelo governo do PP, com o apoio do PSOE, das sucessivas propostas de negociação de um referendo acordado sobre a independência. Os argumentos, tantas vezes repetidos, de que esta exigência não cabia na Constituição foram suficientemente refutados na altura e foram recentemente recordados por Carles Puigdemont: mediante o artigo 92º desta lei fundamental seria possível estabelecer uma via para o seu exercício legal. Se tivesse havido vontade política para resolver democraticamente o conflito, poderia ter-se optado por esta fórmula, já para não mencionar outras, porque, como defendia Francisco Rubio Llorente, antigo presidente do Conselho de Estado e antigo vice-presidente do Tribunal Constitucional, já em outubro de 2012, teria sido possível estabelecer uma forma legal de a exercer:

“Se uma minoria territorializada, ou seja, não dispersa pelo território do Estado, como acontece em alguns países da Europa de Leste, mas concentrada numa parte definida, administrativamente delimitada, com a dimensão e os recursos necessários para se constituir como Estado, deseja a independência, o princípio democrático impede opor a esta vontade obstáculos formais que podem ser removidos” [1].

Foi este respeito pelo princípio democrático que permitiu o seu reconhecimento noutros países do Norte, como o Quebeque (onde se realizaram dois referendos – em 1980 e 1995 – sem acordo prévio do governo canadiano e sem consequências penais), a Escócia (onde em novembro de 2014 houve um pacto entre o governo do Reino Unido e o governo escocês) ou, a Leste, o Montenegro (com a mediação da União Europeia e o acordo da Sérvia em 2006). Sem esquecer o caso singular do referendo alegadamente realizado em maio de 1997, convocado pela Liga do Norte numa região de Itália, em que participaram cerca de cinco milhões de pessoas, que não teve reconhecimento internacional mas também não teve consequências penais.

Há, pois, razões suficientes para recusar a equiparação do exercício do direito de voto a um golpe de Estado ou a uma rebelião ou a sedição: tratou-se de um ato democrático de desobediência civil massiva de mais de dois milhões de pessoas face a um regime que mostrou toda a sua face autoritária e repressiva. A adoção de uma lei de amnistia seria agora uma medida de justiça restaurativa através de um “esquecimento penal” que ajudaria a criar as condições para desjudicializar o conflito e reconhecer a sua natureza política.

A beligerância da direita política, judicial e mediática face à própria possibilidade de uma lei de amnistia não deve levar a passos atrás no caminho da sua elaboração, antes pelo contrário: o seu conteúdo deveria aplicar-se às pessoas incluídas em relatórios documentados e fidedignos, como o apresentado pela organização Omnium Cultural [2], e não deve incluir membros de forças policiais denunciados ou investigados pelo uso de violência contra manifestantes, pois isso contrariaria o ordenamento internacional de respeito pelos direitos humanos [3]. Inclusive, como está a ser proposto por sectores da esquerda alternativa, deveria ser considerada a possibilidade de estendê-lo aos ativistas que se limitaram a exercer direitos fundamentais, como os de manifestação e expressão, e, mais concretamente, às pessoas afetadas pela Lei de Proteção da Segurança Cidadã, conhecida como Lei da Mordaça, uma vez que se trata de uma promessa eleitoral não cumprida pelo anterior governo e, portanto, deve ser também uma tarefa imprescindível do novo governo.

Não creio que seja necessário entrar no debate sobre a constitucionalidade ou não de uma lei de amnistia. Basta recordar que, face a uma interpretação fundamentalista da Constituição, é possível uma interpretação aberta da Constituição se o seu objetivo orientador for o aprofundamento da democracia e da justiça pelo Parlamento. Mais uma vez, é uma questão de vontade política e de não nos deixarmos arrastar por um formalismo jurídico por detrás do qual se exprimem os interesses da cúpula de uma magistratura que não para de praticar o lawfare e que continua a resistir, em estreita aliança com o PP, à renovação do Conselho Geral da Magistratura.

Reformas em conflito no quadro do regime

Sabemos, no entanto, que para além da anistia, o que está agora em jogo é a direção em que o regime irá evoluir no contexto da polarização que se verifica no seu seio sobre a forma de encerrar a crise que se arrasta há já algum tempo. Esta centra-se agora na resposta a uma fratura nacional-territorial de longa data, que se tem vindo a agravar e a alargar ao longo do século XXI, e que foi e continua a ser um fator estrutural de instabilidade política. A sua recente reativação foi influenciada por fatores como a radicalização da direita espanhola após 2001, a Grande Depressão iniciada em 2008, os maiores desequilíbrios territoriais, o consequente mal-estar entre as velhas e novas classes médias e, no caso catalão, o seu reflexo na decisão do Tribunal Constitucional de julho de 2010 contra o Estatuto de Autonomia da Catalunha. Esta foi percebida como uma rutura do pacto nacional-territorial da mitificada Transição que contribuiu para um salto em frente da maioria do movimento soberanista para o independentismo.

Parece evidente que nem o PP nem o PSOE estão dispostos a enfrentar esta fratura, admitindo que a integridade territorial do Estado espanhol possa ser posta em causa. É por isso que a agitação do bloco das direitas com o slogan “A Espanha está a desfazer-se” perante qualquer medida de perdão, como no caso dos indultos, é puro alarmismo eleitoral, como já aconteceu tantas vezes no passado. As diferenças residem sobretudo na forma de ultrapassar uma crise permanente de governabilidade que continua a ser condicionada pelo peso no Parlamento espanhol de formações políticas periféricas, sobretudo catalãs e bascas, em concorrência entre si nas respetivas comunidades.

A continuidade desta crise nacional-territorial permanecerá um obstáculo a uma recomposição do sistema do bipartidarismo e um obstáculo fundamental às tentativas de estabilização light do regime de 78 às mãos do PSOE e do Sumar e, mais ainda, por parte daqueles que, em sentido duro, venham da direita do PP e do Vox. Um fator que se insere na tendência dominante de regressão política e ecosocial, dada a pressão sistémica para o aprofundamento de um regime austeritário num contexto de débil relação de forças a partir de baixo. Aliás, não parece que a hipótese de um novo governo de coligação progressista, mais à direita na sua composição e apoio parlamentar, venha a ser um travão significativo a este caminho se não se iniciar um novo ciclo de remobilização social. Daí a importância da batalha em torno destas duas questões que estão agora no centro de um conflito político que não afeta apenas a Catalunha.

A divisão entre os dois partidos do regime gira, na realidade, em torno de questões de menor dimensão: o reconhecimento ou não da plurinacionalidade (mesmo que apenas no seu sentido cultural e não político) e a disposição ou não para dar novos passos no sentido da federalização do Estado, sempre a partir de cima. O carácter essencialista do nacionalismo defendido pelo PP, enraizado numa larga maioria do seu eleitorado ao longo de várias gerações, e agora pressionado pelo Vox, impede-o, no entanto, de fazer concessões significativas nestes domínios. Vimo-lo até no domínio do plurilinguísmo, com a rejeição da sua aplicação no Congresso. Isto é algo que também pudemos comprovar através da rápida retificação que Feijóo teve de fazer na sua tímida referência à necessidade de encontrar uma forma de encaixar a Catalunha no Estado. A ameaça que constituiria a formação de um governo PP-Vox seria, portanto, a de nos fazer regressar à versão dura do 23F de 1981, agora por via legal, ou seja, a um desmantelamento progressivo do Estado autonómico e mesmo à ilegalização das organizações políticas e sociais soberanistas pelo simples facto de reivindicarem a independência.

Em contraste com esta contra-reforma reacionária, a direção do PSOE parece agora querer tentar alguma forma de integração no regime do independentismo catalão mas a sua margem para fazer concessões continua a ser limitada: pode comprometer-se a aprovar uma lei de amnistia ou similar e a abrir uma nova ronda de diálogo que conduza a um referendo na Catalunha sobre um novo Estatuto federalizante, como propõe o Sumar, mas não parece ir mais longe. Este seria uma repetição da história do Estatuto anterior, que acabou por ficar esvaziado de conteúdo e, portanto, apenas conseguiria, na melhor das hipóteses, integrar uma parte da independência catalã com o apoio da alta burguesia catalã. Mas, como estamos a ver, mesmo dar estes passos não lhe será fácil, uma vez que terá de enfrentar não só o PP e o Vox, mas também toda uma teia de poderes dentro e fora das instituições do Estado e do próprio PSOE.

A perspetiva de um compromisso histórico como o proposto por Puigdemont continua muito distante, se é que se aspira realmente a um novo pacto nacional-territorial que reconheça o demos catalão como sujeito político soberano. Porque, como bem escreve Albert Noguera, um referendo de autodeterminação é “tecnicamente viável”, mas “politicamente impossível”… sob um regime monárquico que tem como um dos seus pilares fundamentais um nacionalismo espanhol nostálgico do Império e historicamente construído através da negação da condição de iguais e diferentes das diferentes nações e povos deste Estado.

Não se deve, portanto, retroceder perante a nova ofensiva das direitas ou perante as vacilações e reduções que o PSOE irá oferecer. Devemos promover iniciativas unitárias do conjunto das forças políticas, sociais e culturais que estão a favor de uma amnistia justa, tanto na Catalunha como em todo o Estado. Por essa via, poderemos recuperar as forças que permitam que a sua aprovação seja uma alavanca fundamental para a construção de um bloco de rutura capaz de avançar na reivindicação do direito à autodeterminação da Catalunha e dos povos que o reclamem. Uma tarefa que a partir da esquerda alternativa deve ser articulada com aquelas que devemos assumir face à ameaça de uma nova ditadura da dívida que se anuncia a partir de Bruxelas, assim como com todas aquelas que apontam para um horizonte alternativo ao de um capitalismo neoliberal cada vez mais autoritário.

 

Jaime Pastor é politólogo, editor do Viento Sur, membro do colectivo Madrileñ@s por el Derecho a Decidir.

Texto publicado originalmente no Viento Sur. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

Notas:

[1] “Un referéndum en Cataluña”, El País, 8/10/2012.

[2] “Omnium fixa en 1432 persones els mínims per l’amnistia i exigeix als partits una negociació ‘coordinada’”. Para um esclarecimento de como se chegou a esta conclusão: David Fernández, “1443”, ara, 15/09/23.