Por Atílio A. Boron
Via Pagina 12
Os argumetos a seguir são algumas hipóteses provisórias voltadas a apontar algumas chaves que explicam a inesperada e contundente derrota sofrida pelo kirchnerismo e suas forças aliadas nas eleições legislativas do último domingo. Insisto nesse “algumas” porque o ocorrido não é obra de uma causa única, mas sim de um conjunto de fatores que, de forma inadvertida, se combinaram para produzir um resultado que nem mesmo as figuras mais otimistas de La Libertad Avanza esperavam.
Primeiro, o governo conseguiu unificar suas forças e, por isso, La Libertad Avanza foi o único partido político que se apresentou nos 24 distritos do país. Fuerza Patria, por sua vez, o fez em 14, enquanto os partidos afins que integram a coalizão o fizeram em outros dez. Era uma vantagem grande demais concedida ao governo — e por isso se pagou um preço altíssimo. Diante dele, o mileísmo tinha um emaranhado de diferentes siglas partidárias, desorganizadas e carentes de um diagnóstico e de uma estratégia compartilhada para enfrentar La Libertad Avanza.
Segundo, durante a campanha, Fuerza Patria e seus partidos aliados não ofereceram ao eleitorado propostas concretas de como sair do desastre econômico e social produzido pelo mileísmo. Não havia palavras de ordem claras e distintas: não bastava denunciar os horrores produzidos pelo governo, era necessário apresentar as propostas que o peronismo e seus aliados tinham para superar a crise.
Em vez disso, assistiu-se a uma interminável disputa por candidaturas e lideranças, alimentando o desinteresse ou a apatia da própria base social. Em síntese: nem propostas nem uma liderança clara que organizasse as próprias fileiras — algo que Cristina Fernández, injustamente proscrita e sentenciada, não tinha condições de fazer. Nessas circunstâncias, o resultado não poderia ter sido diferente.
Terceiro, a sociedade mudou — e muito. O “senso comum” hoje predominante tem pouco a ver com aquele que existia no início do século e que se manifestou de forma tão enfática nas grandes jornadas de 19 e 20 de dezembro de 2001.
Predomina, em contrapartida, um radical individualismo, estimulado pela uberização do capitalismo de plataformas, cujo reflexo no plano das ideias e atitudes é um rejeito profundo — ou uma marcada indiferença — diante de qualquer estratégia de ação coletiva e, portanto, frente a sindicatos, partidos e associações de base territorial.
Esse universo simbólico penetrou particularmente nas classes e camadas populares e vem acompanhado de um desprezo paralelo pela política, assim como de atitudes que, ao contrário, exaltam a “antipolítica”.
Temas que outrora teriam sido desqualificadores — como a fraude da criptomoeda $Libra, a propina de 3%, o vínculo com o narcotráfico, a descarada compra e venda de candidaturas, bem como a promíscua relação de Milei e seus colaboradores com o grande empresariado nacional e internacional — já não abalam a fibra moral dos eleitores desencantados.
Em síntese, trata-se de uma sociedade que votou em um contexto marcado pelo medo e pela raiva — e, desta vez, o primeiro demonstrou ter maior capacidade de moldar o comportamento do eleitorado do que a segunda.
Quarto, a aberta intromissão do governo dos Estados Unidos na campanha eleitoral, personificada em seu presidente Donald Trump, atraiu muitos eleitores decepcionados com o mileísmo, mas temerosos do que poderia acontecer “no dia seguinte” à eleição, caso este viesse a ser derrotado pelo kirchnerismo e seus aliados.
Em 1945, o então embaixador dos Estados Unidos na Argentina, Spruille Braden, organizou a União Democrática, criada para frear a ascensão irresistível de Juan Domingo Perón à presidência. Braden permaneceu apenas quatro meses na Argentina e regressou a Washington um mês antes de 17 de outubro de 1945, para assumir o cargo de secretário de Estado adjunto para Assuntos das Repúblicas Americanas na administração Truman.
Mas Braden não chegou tão longe em seu ódio antiperonista quanto Trump ou Scott Bessent, seu secretário do Tesouro, que, em um gesto sem precedentes, colocaram à disposição de Milei, seu lacaio preferido, um resgate de 20 bilhões de dólares, além da promessa de outros vinte bilhões caso fosse necessário para evitar a queda da economia argentina no abismo e a derrota de seu procônsul na Argentina. É difícil subestimar o impacto dessa intervenção do império no processo eleitoral.
Quinto, os temores expressos por muitos dirigentes da Frente Patria, e especialmente por Cristina Fernández, sobre os efeitos do desdobramento das eleições na província de Buenos Aires, mostraram-se acertados.
De fato, entre a eleição provincial de 7 de setembro e a nacional de 26 de outubro, La Libertad Avanza aumentou seu caudal eleitoral em 880 mil votos, conseguindo derrotar, por uma diferença muito pequena, a Fuerza Patria. É evidente que os prefeitos e, além disso, os próprios quadros vinculados à Fuerza Patria não demonstraram o mesmo vigor militante em ambos os processos eleitorais.
Esse resultado reacende a polêmica em torno do futuro político do governador Axel Kicillof e sua possível candidatura presidencial. Algo semelhante ocorreu com outro político inscrito na corrida à Casa Rosada, o governador de La Rioja, Ricardo Quintela, cuja força política prevaleceu por apenas cerca de seiscentos votos sobre o candidato de La Libertad Avanza.
Tudo isso recoloca em pauta a urgência de reorganizar as forças do campo popular, que precisarão elaborar uma proposta para a reconstrução dessa Argentina que Milei e seus mandantes pretendem converter em uma colônia, além de resolver a questão crucial da organização e da condução política desse bloco.
