Cinco Estratégias da Luta pelo Aborto sob uma Perspectiva Argentina: Um diálogo transnacional

Lucila Szwarc

Publicado em Spectre Jornal

Tanto a primeira passagem, quanto derrubada de Roe versus Wade marcam momentos históricos não só nos Estados Unidos, mas também no resto do mundo. Com o povo dos Estados Unidos despojado de seu direito constitucional ao aborto agora, mais do que nunca, nós devemos estar em alertar máximo e ativas nossas conexões a nível internacional.

No presente contexto, as lições da luta argentina pelo aborto podem ser úteis para as ativistas estadunidenses. Aqui, eu falarei sobre cinco estratégias que as feministas locais e seus aliados aplicaram para construir o movimento pela legalização do aborto na Argentina, muitas delas refletindo experiencias transnacionais no feminismo.

Em dezembro de 2020, a Argentina votou a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez (ou IVE, no espanhol), legalizando o aborto até a decima quarta semana de gravidez. Após a decima quarta semana, o acesso ao aborto é permitido em casos de estupro e risco a saúde da pessoa grávida. Antes de aprovada a lei, o aborto era permitido somente nesses casos e apenas antes as catorze semanas. Foram necessários anos de ativismo e construção de coalizões para vencer a legislação vigente e garantir aborto. Porém, hoje a Argentina e vários outros países latino-americanos podem ser exemplos de como promover o aborto legal e o efetivo acesso ao aborto seguro.

 

1.    A criação de uma rede nacional pela legalização do aborto

Um dos elementos mais fortes do feminismo na Argentina foi a criação de uma rede nacional pela legalização do aborto. A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Livre, começou em 2003, como uma rede multisetorial de organizações e ativistas que, a despeito de suas diferenças políticas, caminham conjuntamente por um objetivo comum. O objetivo se desmembrava em dois. Por um lado, apresentar uma proposta pela legalização do aborto e conquistar apoio político. Por outro lado, construir uma rede de apoio cada vez mais ampla, a fim de gerar consciência pública e consenso social. A partir de sua criação, a campanha funcionou horizontalmente, com decisões tiradas em assembleias abertas, elegendo representantes para facilitar as operações e sem líderes do movimento.

 

2.    Um discurso combinado

No início, as ativistas da campanha acordaram argumentos que elas iriam utilizar para reivindicar a legalização. O discurso combinado posicionava que a legalização do aborto é necessária porque é uma questão de saúde pública, justiça social e direitos humanos. É uma questão de saúde pública porque a criminalização do aborto afeta as taxas de adoecimento e mortalidade paternal e maternal, e os indicadores de saúde de maneira mais ampla. É uma questão de justiça social porque enquanto os ricos sempre tiveram acesso ao aborto, mesmo em contextos de restrição legal, os mais pobres e mais vulneráveis estão correndo um alto risco e insegurança.

O discurso emergente não surgiu apenas dos acordos obtidos pelas ativistas na campanha, mas também pelas lutas históricas pelo direito ao aborto na Argentina, moldadas pelo calor das lutas contra o neoliberalismo, as desigualdades sociais, de mãos dadas com organizações de luta pelos direitos humanos, contando também com apoio importante de membros do sistema público de saúde[1].

 

3.    Construindo um consenso social

A estratégia mais importante foi que a campanha não se baseava exclusivamente em lobby político, mas se dedicava a construir um consenso a nível de sociedade, sobre o que nós chamamos de “descriminalização social do aborto”. Na Argentina, até alguns anos atrás, não era fácil falar publicamente sobre o aborto. O discurso era – e em alguns lugares continua a ser – um tabu, especialmente fora das grandes cidades. Em 2005, a campanha se propôs a descriminalizar socialmente o aborto. Isso se fez possível pelo unificado discurso que visava desmistificar o aborto, falando sobre ele e argumentando solidamente pela legalização em diferentes por diferentes meios, incluindo partidos políticos, sindicatos, grupos estudantis e organizações comunitárias de base. Todos esses grupos desenvolveram estratégias para encampar essa demanda como urgente e necessárias.

4.    Um apelo simbólico

Muito cedo a campanha muito oportunamente escolheu um símbolo: um pañuelo verde, uma bandana. Quando a campanha foi criada as ativistas decidiram usar o pañuelo em homenagem as Mães da Praça de Maio, as mães dos desaparecidos pelas mãos da ditadura entre 1976 e 1983. Mostrando profunda bravura e usando lenços brancos para sinalizar suas intenções pacíficas, elas confrontaram o regime militar e exigiam informações sobre seus filhos e seu retorno seguro. Sua aparição na cena pública da esquerda deixou uma marca profunda no papel da luta de resistência das mulheres na Argentina, na América Latina e além.

As pioneiras do movimento pró aborto tem diferentes versões sobre o porquê elas escolheram a cor verde. Algumas dizem que a cor relacionada a legalização ainda não era utilizada por nenhum outro grupo ou campanha, como o vermelho, o preto ou o branco. Outras pioneiras dizem que quando foram comprar tecidos durante o Encontro Nacional de Mulheres em 2004 ele estava disponível e parecia apropriado. Desde então, a campanha vem distribuindo lenços nas marchas feministas, especialmente nos encontros anuais.

Em 2018, quando a legalização do aborto foi discutida pela primeira vez no parlamento, houve marchas pelo aborto, e então o pañuelo verde assumiu caráter de massa. As novas gerações foram centrais, defendendo o pañuelo verde como um símbolo da luta feminista em sentido mais amplo, que logo tomaria caráter transnacional. Muitos países latino-americanos incorporaram a ideia do pañuelo para representar suas lutas pelo aborto legal e muitos deles escolheram a mesma cor verde, como na Colômbia, no Chile e no México. O símbolo continua a se espalhar, agora inclusive nos Estados Unidos.

5.    Agarantia do acesso ao aborto em um contexto legalmente restrito

Garantir o acesso ao aborto não é só uma questão de justiça reprodutiva; é também um modo de combater a crescente criminalização social e desenvolver capacidade social e institucional. Uma importante ferramenta a salvaguarda do acesso ao aborto seguro, tanto nos contextos restritivos e não restritivos, é o aborto medicamentoso – isso é, o uso de mifepristone e misoprostol, ou misoprostol apenas na falta de mifepristone. Esse é um método seguro, que requer mínima supervisão, de acordo com a Organização Mundial da Saúde[2].

Uma organização pioneira nos medicamentos abortivos é a holandesa ONG Women on Waves. Desde sua criação a organização tem buscado “fazer ondas” nos países onde o aborto é ilegal. Sua estratégia consiste em acorar um navio em águas internacionais em próximas a países onde o aborto é criminalizado, como Portugal e a Irlanda do Norte, e oferecer a bordo o aborto medicamentoso a população local. Eventualmente a Women on Waves começaram a fazer aquilo que se normatizou nos dias de hoje: a telemedicina. Através do Women on Web, elas aconselham mulheres sobre as práticas de aborto seguro em salas ded bate papo e enviam remédios pelo correio.

Posteriormente, a ONG incentivou o lançamento de grupos locais em uma série de países, que, por sua vez, começaram a se apoiar uns nos outros[3]. Na Argentina, Equador eChile foram criadas linhas diretas para fornecer informações sobre aborto seguro. Nesses países o aborto é criminalizado na maioria dos casos e não há medicamentos autorizados para esse propósito. Contudo, misoprostol é disponível porque é legalmente autorizado para outras finalidades, como o tratamento de ulceras estomacais.

Em 2013, o coletivo Lésbicas e Feministas pelo Descriminalização do Aborto lançou na Argentina um site como meio de disseminar informações sobre o aborto medicamentoso. Foi possível disseminar informação sobre o aborto sem realizar abortos na prática. As ativistas treinaram a si mesmas, estudando diretrizes médicas e disseminando informações claras, como linguagem simples. O coletivo também buscou – como sugere o seu nome – “descriminalizar” o aborto no discurso, e trouxe a linguagem dos coletivos LGBTQ+ para o campo da luta pelo aborto. Elas se referem, por exemplo ao “orgulho” pelo aborto e produziram materiais de alto impacto e atraentes que falavam sobre o aborto no cotidiano, de forma leve[4].

Mais tarde, a rede Socorristas em Red foi lançada. A rede foi inspirada na experiencia do grupo Lésbicas e Feministas pela Descriminalização do Aborto, mas adicionou um elemento crucial: o aconselhamento presencial. Elas seguiram o legado da experiencia histórica dos anos 1970 na Europa e nos EUA, onde feministas não profissionais aprenderam como realizar abortos seguros sem supervisão médica. Uma vantagem importante que elas tiveram foi que o aborto medicamentoso revolucionou o acesso ao cuidado e ao aborto de qualidade. Medicamentos são mais fáceis de transportar e usar, fazendo com que o processo fora das clínicas fosse mais autônomo e potencialmente mais seguro para não profissionais. O aborto medicamentoso pode ser seguro e efetivo, por meio de automedicação em casa por indivíduos com informações confiáveis e com acesso a píulas de qualidade[5]. Ao invés de discutirentre aborto seguro e não seguro, os pesquisadores agora identificam as questões de seguranças e riscos em torno da prática[6].

As ativistas Socorristas se encontram com pessoas que buscam por aborto para discutir com elas como usar pílulas de um jeito seguro, além de prover apoio emocional e companhia a essas pessoas durante o processo. Elas também mantêm uma linha de diálogo para pessoas que tem receios ou preocupações durante o processo, em que elas oferecem, além de tudo, aconselhamento para que elas procurem acompanhamento médico após o aborto. Ambos os grupos, das Socorristas e das Lésbicas e Feministas, coletaram e ainda coletam informações dos chamados que elas recebem. Essa é uma ferramenta crucial para demonstrar a utilidade dos fármacos abortivos, acompanhados por feministas, não só nos termos político-feministas, mas também no campo da saúde pública[7]. Nesse caso, essas experiencias promoveram um discurso centrado na autonomia, pois o aborto seguro
não necessita de mediação por um médico.

Ao mesmo tempo, as Socorristas estão em constante contato com profissionais da saúde, que também fazem parte da rede nacional da campanha. A Rede de Profissionais de Saúde pelo Direito de Escolher garantiu acesso ao aborto enquanto ele ainda era restrito. No início, eles seguiram a linha de redução de danos para minimizar os riscos do aborto inseguro, provendo informações antes e depois da prática. Eles argumentavam que, como profissionais da saúde, eles tinham o dever ético de precaver os pacientes de tomarem riscos desnecessários.

Com o passar do tempo, eles mudaram sua abordagem, para começar a trabalhar sob a “cláusula da saúde” ou causal salud em espanhol, que oferece uma estrutura de cuidados abrangentes. Essaabordagem redefine “saúde” para que as leis permitam o aborto em casos em que a saúde da pessoa grávida está em risco e levam em conta o bem-estar social e mental. Essa estratégica começou na Colômbia, em um contexto legal similar ao da Argentina, antes de ambos os processos de legalização. Nos dois países, o aborto era permitido em casos de risco de vida a pessoa grávida. Baseado na legislação Argentina e em acordo internacionais, advogadas feministas defenderam que a saúde é uma combinação entre os aspectos físicos, sociais e emocionais. Isso posto, se a gravidez atenta ao bem-estar de alguém, um médico poderia prescrever o aborto e isso seria legalmente justificado.

Durante muitos anos, muitos abortos foram garantidos sob essa política. De fato, como resultado de uma política pública oficial, os casos na Argentina passaram de ser chamados de “abortos não-puníveis” para “interrupções legais de gravidez. Na Colômbia, essa estratégia foi alcançada por via judicial, encabeçada por ONGs feministas. Mais recentemente, essa estratégia permitiu que a Suprema Corte colombiana descriminalizasse o aborto até a vigésima semana de gravidez.

 

Conclusão

Essas cinco estratégias ajudaram a iluminar como garantir o acesso ao aborto em contextos legais restritivos foi crucial para promover abortos seguros e encorajar mudanças legais em potencial. As estratégias que eu descrevi não são exclusivas do contexto argentino e na verdade respondem a intercâmbios transnacionais entre os movimentos feministas. Uma característica especial do caso argentino é a persistência de suas ativistas, que vem lutando pelo aborto legal por mais de trinta anos, desde o retorno da democracia. O projeto de legalização foi apresentado ao congresso para discussão mais de sete vezes e foi rejeitado no Senado antes de ser novamente submetido. Como disse Nayla Vacarreza, citando Sara Ahmed, talvez a teimosia, historicamente construída como falha daqueles que desobedecem as autoridades, possa ser revisitada e entendida como uma expressão de resistência que pode nos levar adiante[8].

 

[1] María AliciaGutiérrez, “Rights and Social Struggle: The Experience of the National Campaign for the Right to Legal, Safe, and Free Abortion in Argentina,” in Abortion and Democracy (Routledge, 2021).

[2] World HealthOrganization, Abortion Care Guideline (Geneva: World Health Organization, 2022).

[3] Fernández Vázquez,Sandra Salomé and Lucila Szwarc, “Aborto Medicamentoso: Transferencias militantes y transnacionalización de saberes en Argentina y América Latina,” Revista De Ciencias Sociales y Humanas 12, no, 12 (2018): 163–77.

[4] Ana Mines, Gabi DíazVilla, Roxana Rueda, and Verónica Marzano, “‘El Aborto Lesbiano Que Se Hace Con La Mano.’ Continuidades y rupturas en la militancia por el derecho al aborto en Argentina (2009–2012),” Bagoas – Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades 7, no. 9 (2013).

[5] World HealthOrganization, Abortion Care Guideline.

[7] Brianna Keefe-Oates,Chelsea G. Tejada, Ruth Zurbriggen, Belén Grosso, and Caitlin Gerdts,“AbortionBeyond13WeeksinArgentina:HealthcareSeekingExperiencesDuringSelf ManagedAbortionAccompaniedby the Socorristas en Red,” Reproductive Health 19, no. 1 (2022): 185; Ruth Zurbriggen, BriannaKeefe-Oates, and Caitlin Gerdts, “Accompaniment of Second-Trimester Abortions: The Model ofthe Feminist Socorrista Network of Argentina,” Contraception 97, no. 2 (2018): 108–15.

[8] Nayla Luz Vacarezza,“La mano que vota. Visualidad y afectos en un símbolo transnacional del movimiento por el derecho al aborto en el Cono Sur,” Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro) 35 (2020): 35–57.