Colômbia: acossado, Petro cogita contra-ataque

Retrato dos primeiros dois anos de governo. Presidente aponta tentativa de golpe. Congresso bloqueia ou dilui suas reformas. A inexperiência pesa. Mas há avanços reais e firmeza na intenção de mudar o país. Começa a batalha pela sucessão.

 

Às vezes, o estupor não vem acompanhado de surpresa. A decisão do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) colombiano, de acusar o presidente Gustavo Petro por supostas irregularidades no financiamento da campanha de 2022 estava anunciada.

Em 8 de maio, o órgão eleitoral anunciou que estudaria a proposta elaborada por dois magistrados, que propuseram a formulação de acusações ao presidente, por supsota violação dos limites de campanha, omissão de relatórios de pagamentos a testemunhas eleitorais e recebimento de doações de dois sindicatos. Imediatamente, Petro respondeu em suas redes sociais, denunciando que havia “começado o golpe brando”. Cinco meses depois, o aguardado anúncio do CNE gerou uma nova reação do presidente. “Hoje foi rompido o foro integral do presidente da República da Colômbia (…) hoje foi dado o primeiro passo de um golpe de Estado contra mim, como presidente constitucional”, afirmou em uma declaração televisiva.

Em um país cujas guerras civis tendem a culminar em debates constitucionais, é comum que o debate jurídico delimite os alcances da política. Em princípio, há duas certezas: que o CNE está habilitado para investigar o descumprimento das normas eleitorais e que pode formular acusações contra aqueles que gerenciam campanhas. Mas também é claro que o CNE não tem poderes constitucionais para destituir o presidente. O debate consiste em definir se uma autoridade eleitoral tem o poder de investigar o chefe de Estado por suas ações na campanha, pois o foro do presidente implica que ele só pode ser julgado pelo Congresso.

Aqueles que afirmam que o órgão eleitoral pode, sim, investigar Petro, asseguram que o foro presidencial cobre apenas aspectos penais e disciplinares, sendo a investigação eleitoral de natureza administrativa. Essa tese foi aprovada no início de agosto deste ano pelo Conselho de Estado, mas o órgão também reafirmou que o Congresso da República é a única instância que tem poderes para destituir o presidente. Já aqueles que negam essa possibilidade afirmam que o foro presidencial também se aplica a este caso, conforme apontado pela jurisprudência da Corte Constitucional.

A formulação de acusações por parte do CNE e seu respaldo pelo Conselho de Estado alimentaram o discurso de alerta de golpe que Petro tem feito desde o início de seu mandato. A composição do órgão investigador e o possível duplo padrão de julgamento são fatores a serem considerados.
O CNE é um órgão composto por magistrados designados pelos partidos políticos com representação no Congresso. Neste caso, alguns magistrados que promoveram a investigação são integrantes de forças políticas opositoras ao governo. Aqui ganham destaque três magistrados. O primeiro é Álvaro Hernán Prada, ex-parlamentar investigado criminalmente no mesmo processo que privou de liberdade o ex-congressista Álvaro Uribe. O segundo é César Lorduy, também ex-congressista e peça chave do poderoso clã Char, o império político-familiar mais consolidado do Caribe colombiano. A terceira é Maritza Martínez, que, em seu período, foi a única senadora proveniente das planícies orientais. Martínez é a herdeira política de seu esposo, Luis Carlos Torres, um poderoso dirigente investigado por suposta associação com grupos paramilitares e destituído por irregularidades na celebração de contratos quando foi governador do departamento de Meta.

Prada e Lorduy são apoiados por dois partidos que lideram a oposição, Centro Democrático e Cambio Radical, respectivamente. Martínez, por sua vez, é uma das líderes mais relevantes do Partido de la U, grupo que surgiu para apoiar o governo de Uribe, transformou-se no principal aparato eleitoral do ex-presidente Juan Manuel Santos e hoje mantém independência em relação ao governo de Petro.

O duplo padrão também é alvo de críticas. No passado, em investigações semelhantes, o CNE absteve-se de tocar no presidente da República, mesmo em casos tão notórios como o financiamento da Odebrecht às campanhas de 2014. Da mesma forma, causa preocupação o fato de que um órgão eleitoral e um alto tribunal decidam ignorar a jurisprudência da Corte Constitucional sobre a integridade do foro presidencial.

O governo teme que a investigação do CNE resulte em uma sanção inédita contra o chefe de Estado e que isso leve a um processo de destituição no Congresso da República. Em dois séculos de história republicana, nunca um presidente em exercício foi julgado pelo Congresso.


Dos avanços à contenção

Desde o início de seu mandato, Petro afirmou que seu governo é o primeiro da história colombiana a se declarar de esquerda. Uma definição que, após o estopim social de 2021 e uma série de governos de direita, gerou muitas expectativas em diversos setores do país. A implementação de programas sociais de redistribuição, uma estratégia de negociação de paz voltada para todos os atores armados organizados, a promessa de mudanças nos costumes políticos, uma nova política de drogas e uma política ambiental garantista, que inclua a transição energética, prometiam ser eixos de ação capazes de transformar uma sociedade marcada por profunda desigualdade, guerra prolongada, democracia restrita, um regime político com ampla influência do narcotráfico e um modelo econômico definido pelo extrativismo.

No meio do período de governo, os resultados não são animadores. Os propósitos reformistas de Petro dependem dos debates legislativos de um Congresso com maiorias flutuantes, que impediu a aprovação de uma reforma trabalhista e de uma reestruturação do sistema de saúde. A reforma do sistema de aposentadorias, aprovada em 14 de junho passado, fortaleceu a gestão pública e incluiu medidas para reduzir as desigualdades de gênero nos benefícios, além de uma estratégia de proteção para as pessoas idosas que não conseguirem se aposentar. Por outro lado, obrigou os trabalhadores de salários mais altos a contribuírem para seguradoras privadas. O novo ministério da Igualdade e Equidade, dirigido pela vice-presidente Francia Márquez, bem como o Ministério da Habitação, apresentam um baixo nível de execução de seus programas. A isso somam-se os maus resultados na arrecadação tributária, o que provavelmente exigirá um planejamento orçamentário que limitará a implementação de políticas redistributivas adiadas. A não aprovação das reformas e a subexecução da política social revelam as dificuldades do governo para adotar um caminho de transformação estrutural redistributiva.

A política de “paz total” foi traçada para negociar com diversos atores armados, incluindo a insurgência do Exército de Libertação Nacional (ELN), dissidências da antiga guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), grupos paramilitares como as Autodefesas Conquistadoras da Serra Nevada e gangues urbanas com controle territorial em cidades como Buenaventura e Medellín. No entanto, a paz total tem sido vítima de seus objetivos muito ambiciosos.

A dispersão das agendas de diálogo, a diversidade política dos atores ilegais e a intensificação dos confrontos entre esses grupos armados aprofundaram a violência em várias regiões. A situação mais complexa é a interlocução com o Estado-Maior Central (EMC), uma reagrupação instável de dissidências do acordo de paz com as FARC, hoje dividida em duas facções em confronto; uma delas em guerra declarada contra o Estado, liderada por Iván Mordisco, e outra encabeçada por Andrey Avendaño e “Calarca”, que se mantém em negociações com o governo. Enquanto isso, a mesa de negociações com o ELN vive uma crise permanente, agravada pela decisão de um de seus grupos de se separar dessa organização para negociar de forma independente com o Estado. O fracasso da política de paz intensificou a violência contra civis: só em 2024, registraram-se 143 líderes sociais assassinados e 57 massacres. Por enquanto, não há previsão de assinatura de um acordo de paz nem de submissão à justiça de qualquer grupo ilegal em um futuro próximo.

Além das suspeitas mencionadas sobre a campanha, a mudança nos costumes políticos esbarrou em um grave escândalo. A detenção do filho de Petro para investigação sobre o financiamento da campanha presidencial e o esquema corrupto na Unidade Nacional de Gestão de Riscos e Desastres (UNGRD), chefiada por um funcionário nomeado pelo presidente, enfraqueceram o discurso de um governante conhecido por suas denúncias contra a corrupção.

No entanto, o governo conseguiu avançar em alguns acordos políticos. Por exemplo, as negociações para nomear o Controlador, a Defensora do povo e o Procurador, eleitos no Congresso com números próximos à unanimidade, foram possíveis graças às negociações facilitadas pelo ministro do Interior, o veterano político liberal Juan Fernando Cristo – cuja proximidade com o ex-presidente Santos é bem conhecida. Tais circunstâncias demonstraram a ascendência, no governo de esquerda, de setores pertencentes, ou muito próximos, ao establishment político. Aqui destacam-se figuras como Laura Sarabia — braço direito do presidente e responsável pela coordenação das tarefas mais importantes do governo —, o embaixador em Londres e ex-presidente do Senado Roy Barreras, o chanceler Gilberto Murillo e o próprio ministro Cristo. Tudo isso demonstra que o “primeiro governo de esquerda” necessita do apoio de setores tradicionais para garantir um mínimo de estabilidade (o que é mais evidente em regiões onde esse poder tradicional permanece intacto) e que a escolha do Controlador e do Procurador buscou evitar o avanço de possíveis adversários, mais do que a nomeação de aliados progressistas.

No entanto, o governo de Petro não traiu a lógica que o levou à vitória eleitoral. Sua posição firme sobre a Palestina, suas reflexões sobre o extrativismo e a mudança climática, suas convicções ambientalistas ou sua crítica ao neoliberalismo não mudaram. Na questão ambiental, nota-se essa tensão característica da atual administração: um discurso coerente, mas com uma execução que não apresenta resultados imediatos, e que, por vezes, tende a ver o capitalismo verde com bons olhos.

Um aspecto complexo é a relação entre a coalizão de governo, o Pacto Histórico, e os movimentos sociais. Aqui se observa a participação de alguns setores no governo, combinada com uma pressão constante de mobilização. Curiosamente, o ritmo de mobilização se mantém em comparação com períodos anteriores, mas não mais em um tom de rejeição ou exigência de garantias, e sim de demanda pelo cumprimento do plano de governo. No entanto, boa parte dessas demandas não possui um caráter de classe, nem promove amplas convergências, buscando apenas conquistas para as organizações específicas que se mobilizam. Diante dessa situação, a resposta do governo tem sido errática, pois a estratégia proposta pelo Vice-Ministério do Interior foi a multiplicação de mesas de diálogo e concertação, que fragmentam a interlocução política e sobrecarregam os funcionários responsáveis pela execução do plano de governo.

Ainda assim, em meio a erros e dificuldades, o governo tem conquistas a apresentar. A implementação de um Serviço Social para a Paz, em substituição ao serviço militar obrigatório; a reforma da previdência (apesar de suas limitações); os avanços na distribuição de terras (incluindo marcos como a Fazenda Las Pavas e a entrega de terrenos para as famílias camponesas afetadas pelo projeto El Quimbo); o lançamento de uma estratégia territorial de atendimento em saúde; o reconhecimento dos camponeses como sujeitos de proteção especial e a instauração da jurisdição agrária são conquistas importantes que não teriam sido alcançadas em outro governo.

Os problemas da política social, o possível fracasso da paz total e os velhos e novos escândalos ocorrem em meio a um contexto difícil. Diante de problemas tão profundos quanto a guerra, a desigualdade e o narcotráfico, era improvável que o governo mostrasse avanços substanciais em um período relativamente curto. Ainda mais com um modelo estatal que não priorizou a redistribuição, a paz ou a proteção ambiental. Não é por acaso que as políticas mais importantes defendidas pelo governo, como a tributação de grandes projetos extrativistas, a contratação direta com organizações comunitárias, partes do Plano de Desenvolvimento e a criação do Ministério da Igualdade, tenham sido bloqueadas por altos tribunais.

Talvez o governo de Petro possa ser concebido como um período de contenção e transição, mais do que de avanço e transformação. Contenção frente ao avanço das direitas mais extremas na região e frente à aplicação do modelo neoliberal. E também de transição, neste caso para um sistema político com maior capacidade de integração dos setores políticos alternativos e suas agendas.

Cenários pré-eleitorais em aberto

As turbulências judiciais e os problemas de execução marcam a última etapa de um mandato cujo principal desafio será garantir sua própria estabilidade. O discurso sobre a possibilidade de um “golpe brando” deixou de ser a narrativa de um governante acusado paranoico para tornar-se um cenário possível, embora existam debates sobre sua probabilidade.

A formulação de acusações pelo CNE coincide com uma profunda crise de liderança que afeta os setores mais conservadores do espectro político. Desde o estopim social de 2021, o bloco de direita não conseguiu encontrar nem a coesão que possibilite uma estratégia coordenada, nem uma figura que canalize o descontentamento contra o governo.

Em outras palavras, a direita não conseguiu encontrar uma figura que encarne o que foi Gustavo Petro para Iván Duque, nem conseguiu conquistar as ruas com mobilizações de massa. Essa situação explica, por exemplo, o fracasso eleitoral das principais candidaturas de direita nas eleições de 2022 e o surgimento inesperado do falecido Rodolfo Hernández, o rival de Petro no segundo turno de 2022; um candidato que não vinha do establishment tradicional, mas que foi abraçado pelos setores mais tradicionais como uma alternativa à coalizão de esquerda. A ausência de uma candidatura clara que unifique os setores de direita nas eleições de 2026 é um elemento que alimenta a incerteza a médio prazo. Um sintoma dessa situação é o rumor sobre a candidatura presidencial de Vicky Dávila, uma jornalista ligada à imprensa corporativa, que dirige um meio claramente editorializado contra o governo e que explicitamente busca reproduzir as coordenadas discursivas de figuras como o argentino Javier Miley e o salvadorenho Nayib Bukele.

Essa ausência de lideranças não se limita aos setores conservadores. O Pacto Histórico continua operando como uma soma desordenada de atores políticos com interesses de curto prazo, e não como um projeto unificado com vocação de futuro. Embora Petro tenha insistido na necessidade de formar um partido único de esquerda, a fragmentação persiste na coalizão governamental. Apenas o Polo Democrático, o Colombia Humana e a União Patriótica, os três maiores partidos de esquerda, parecem inclinados à proposta de unificação. Em contraste, os agrupamentos menores (Comuns, Força Cidadã, Esperança Democrática, Partido do Trabalho da Colômbia, entre outros) propuseram um processo alternativo de convergência política, denominado paradoxalmente “Unitários”. Enquanto isso, os setores oriundos do governo de Santos preferem manter sua autonomia eleitoral.

Essa situação levou à falta de pré-candidaturas fortes vindas da esquerda histórica, enquanto ganham relevância figuras originárias desse poder político tradicional que acompanha Petro, como o embaixador Roy Barreras e o chanceler Luis Gilberto Murillo – dois funcionários do governo de Santos que não ocultam sua intenção de liderar uma candidatura que reflita a continuidade do atual governo, mas com maior moderação. Nesse cenário eventual, a esquerda enfrentaria a difícil situação de apoiar indivíduos que não vêm de suas próprias fileiras para assegurar a continuidade de seu projeto; novamente, mais em termos de contenção do adversário do que de avanço político próprio.

A situação dos setores de centro também não é das melhores. Embora contem com figuras relevantes, sua fragmentação e sua constante crise de identidade se intensificaram nos últimos meses. Inicialmente, três nomes parecem se destacar: o eterno candidato Sergio Fajardo, o ex-senador Juan Manuel Galán, irmão do prefeito de Bogotá, e a ex-prefeita Claudia López; no entanto, não é claro se eles têm vontade de convergência.

A propósito do centro político, um cenário que poderia alterar as coordenadas do tabuleiro seria uma aliança entre uma pré-candidatura de centro e o bloco de direita. Uma tese nessa linha foi apresentada pelo jornalista Gustavo Gómez, que sugeriu um acordo entre Sergio Fajardo e Vicky Dávila; embora essa proposta não tenha gerado grande repercussão, diz muito sobre o espírito dos tempos.

Certamente, o cenário de curto e médio prazo será influenciado pela formulação de acusações contra o presidente. A meu ver, a decisão da maioria do CNE pode ser interpretada como uma tentativa de impactar o debate eleitoral de 2026, e não como o início de um processo efetivo de destituição. O objetivo é tornar mais turbulento o cenário eleitoral futuro e dificultar o final do governo de Petro. No entanto, essa intenção poderia gerar um efeito bumerangue, pois a imagem de um presidente perseguido pela santa aliança entre o poder político tradicional, o poder midiático corporativo e um setor do judiciário pode ser benéfica para o final do governo, já que lhe daria razões para justificar os problemas de execução e tornaria seu bloco de apoio mais coeso – tanto o integrado ao Estado quanto o representado em organizações sociais com ampla capacidade de mobilização. Além disso, lembraria a frustrada tentativa de destituição vivida por Petro durante sua gestão como prefeito de Bogotá. Um avanço em direção à destituição presidencial daria novo fôlego a um líder político que gosta de exercer suas qualidades de tribuno.

As consequências do estopim social, a crise de lideranças, a fragmentação dos blocos políticos, o processo contra o presidente e os problemas de execução do governo configuram um cenário de incerteza diante de uma campanha que parece iniciar-se com muita antecedência. A estabilidade do governo dependerá da capacidade de Petro para responder à nova conjuntura e da capacidade de gerar novos avanços de política pública transformadora. Os possíveis desfechos do governo de Petro ainda dependem de suas próprias forças.