Como Porto Rico virou tema central nas eleições dos EUA

Via Giro Latino

Imagem: Reprodução Brasil de Fato

GIRO #256 | Insulto à ilha em comício de Trump gerou fúria de comunidade com 6 milhões de residentes nos EUA continentais (e direito a voto), além de vídeo viral de rapper Bad Bunny

Latino-americanos vivendo nos Estados Unidos são foco recorrente das campanhas eleitorais por lá, especialmente após a eleição de 2016, quando o ex-presidente e agora candidato Donald Trump chegou ao poder escorado em um discurso de terror sobre a imigração irregular. Venezuelanos, cubanos, pessoas vindas da América Central e – mais recentemente – haitianos foram alvo de discursos de ódio, racismo e xenofobia da campanha republicana. Bem menos usual é quando a retórica acaba se radicalizando tanto que começa a afetar os próprios eleitores, ao mirar em latinos que já são cidadãos estadunidenses – caso dos porto-riquenhos.


Os últimos dias antes da conclusão das votações nos EUA, na próxima terça (5), viram Porto Rico se tornar um improvável centro das atenções após um comediante fazer uma piada inoportuna no grande evento de reta final de campanha de Trump e se referir ao estado livre associado como uma “ilha flutuante de lixo”. Imediatamente, políticos, artistas, lideranças religiosas e a própria comunidade porto-riquenha que reside nos EUA – em números relevantes para mudar o destino de alguns swing states – passaram a inundar as redes sociais com indignação e pedidos de votos para barrar o trumpismo em nome do próprio orgulho. Até figuras que tinham anunciado voto no alaranjado ex-presidente, agora, dizem que mudaram de ideia.


O terremoto criado pelos próprios apoiadores de Trump no momento decisivo acontece enquanto, dentro de casa, um candidato que propõe a independência de Porto Rico aparece com grandes chances de obter uma votação recorde na busca pelo governo local – em eleições que acontecem no mesmo dia.


Foi no último domingo (27) que a bomba caiu: o comediante Tony Hinchcliffe fez seus comentários durante o comício que simbolicamente marcava as “considerações finais” da campanha, um megaevento no Madison Square Garden de Nova York (a comparação com o encontro nazista celebrado no prédio anterior de mesmo nome, em 1939, não passou despercebida pelos críticos). Após a repercussão, sem pedir desculpas pessoalmente, Trump apenas disse que “não conhecia” e “não ouviu” os comentários de Hinchcliffe, tirando o corpo fora. Mas a fala estava longe de ser imprevista: pessoas vinculadas à campanha indicaram que outras piadas “ainda piores” chegaram a ser barradas durante uma verificação prévia, sugerindo que o insulto a Porto Rico foi visto e aprovado – e que coisas ainda mais grotescas poderiam ter vindo à tona.


O que se seguiu foi uma reação até curiosa para quem vê de fora: em um daqueles casos clássicos em que o racismo e a xenofobia são rotineiramente tolerados até que me afetem, os comentários pouco diferentes de tudo o que se ouviu vindo do trumpismo nos últimos oito anos geraram uma reação muito distinta (dentro e fora do Partido Republicano) quando tocaram a comunidade porto-riquenha.


Uma resposta que se explica pelo status único que a ilha tem: sem ser um país independente nem um estado dos EUA, mas a ambígua figura de estado livre associado, quem nasce em Porto Rico não participa diretamente das eleições estadunidenses, mas pode fazê-lo com facilidade na comparação com outros latino-americanos, que precisam vencer uma série de obstáculos burocráticos para participar da vida política do gigante ao Norte. Os porto-riquenhos que residem na própria ilha não votam para presidente, mas são cidadãos dos EUA – e, quando moram no território continental, eles e seus filhos podem se registrar para votar lá, criando uma comunidade relevante de eleitores.


Há quase 6 milhões de porto-riquenhos ou descendentes vivendo nos EUA continentais. Destes, cerca de 1 milhão reside nos chamados swing states, o punhado de estados que – no arcaico sistema eleitoral vigente no país desde 1787, onde o vencedor de uma unidade da federação carrega todos os delegados dali – realmente definem as eleições, já que não são dominados por um dos partidos. Na Pensilvânia, um dos alvos mais quentes de 2024, vivem 473 mil porto-riquenhos; em 2020, Joe Biden venceu o estado por uma margem de apenas 80 mil votos. Na Geórgia, são 124 mil pessoas com alguma vinculação com Porto Rico – e a votação desse reduto conservador que os republicanos tentam recuperar foi definida por míseros 11 mil votos (a favor de Biden) há quatro anos. Todas as pesquisas indicam margens até mais estreitas este ano, com um viés levemente favorável a Trump em boa parte dos “estados-pêndulo”, e qualquer fato novo pode virar o jogo.


É claro que nem todos os residentes têm idade para votar e, mesmo com a repercussão dos comentários nos últimos dias, muitos seguirão firmes em seu apoio a Donald Trump, que já sobreviveu a episódios anteriores em que fez pouco caso da ilha (um ex-funcionário do alto escalão diz que Trump chegou a discutir internamente a viabilidade de propor à Dinamarca uma esdrúxula troca de Porto Rico pela distante Groenlândia). Mas é inegável o impacto que o evento nova-iorquino teve na mobilização dos latinos que mais podem influenciar os resultados nos EUA. Nos estados onde a votação antecipada é possível, pipocaram vídeos nas redes sociais de porto-riquenhos dizendo que desistiram de votar em Trump, marcando o nome de Kamala Harris nas cédulas.


Entre os famosos, houve reações semelhantes: o reaggetonero Nicky Jam, que havia subido ao palco de Trump em apoio ao republicano “pela economia”, voltou atrás na quinta-feira (30) citando os comentários de Hinchcliffe; e Bad Bunny, o artista latino mais ouvido da atualidade (que nunca apoiou Trump, mas não tinha aberto voto), publicou um vídeo em referência ao episódio e anunciou voto em Harris. Nas vésperas do fechamento desta edição, o reels publicado pelo Conejo Malo já tinha mais de 45 milhões de visualizações. Os citados, porém, não foram os únicos a se manifestar.


Se há um desdobramento interessante que Porto Rico pode trazer nas eleições dos EUA – cujo resultado, qualquer latino-americano sabe bem, ajuda a definir o nível de tormento que a região pode enfrentar nos próximos anos –, também há muito a ser dito pelo que ocorre na própria ilha. Na terça-feira, quem mora em solo porto-riquenho não poderá escolher o novo morador da Casa Branca, mas está convocado para as eleições do governo local, onde um azarão que defende a independência flerta com uma votação histórica – e não se descarta a possibilidade de vencer, já que as pesquisas vêm indicando um empate técnico.


Seu nome é Juan Dalmau, do Partido Independentista Porto-riquenho (PIP), que surgiu como uma improvável terceira via em um lugar historicamente dominado pelo bipartidarismo, como nos EUA. Na última pesquisa, Dalmau apareceu com 29% das intenções de voto, logo atrás da situacionista Jenniffer González, do Partido Novo Progressista (PNP), que tem 31%. Já o Partido Popular Democrático (PPD), que geralmente se alterna com o PNP no governo, surge em um longínquo terceiro lugar com 18%.


Há 12 anos, quando concorreu pela primeira vez, Dalmau conquistou apenas 2,5% dos eleitores. A votação recorde que ele pode alcançar este ano não está sendo interpretada como um apoio automático à independência (ou sequer um caminho aberto para uma mudança bastante complexa e que nunca chegou a tomar corpo suficiente para alterar o status da ilha), mas reflete o clima político de desilusão entre os porto-riquenhos: uma sucessão de escândalos de corrupção tanto nas gestões do PNP quanto do PPD, os apagões constantes pelo colapso da infraestrutura energética do país e o enfado com os políticos de sempre – caso de González, figura conhecida na ilha por sua atuação como comissária residente (cargo sem direito a voto no Congresso dos EUA, que também será renovado na terça).


O desfecho da história deve se desenrolar não apenas na terça-feira, mas ao longo de toda a semana, no já tradicionalmente arrastado processo de apuração dos votos estadunidenses. Mais além dos limites de Porto Rico e da comunidade que se instalou nos EUA continentais, toda a América Latina observa com atenção um resultado que pode mudar os rumos da região pelos próximos quatro anos.