Sylvie Laurent
Via Jacobin Brasil
Tradução de Felipe Calabrez
Foi a segunda vez, em poucas semanas, que um ex-membro da administração de Donald Trump qualifica friamente o atual candidato republicano como “fascista”. Após o general Mark Milley, seu antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, agora é a vez de outro militar, John Kelly, seu ex-chefe de gabinete, de assim classificá-lo e argumentar: “Bem! Se olharmos para a definição de fascismo… [é evidente] trata-se de uma ideologia e de um movimento político de extrema-direita, autoritário e ultranacionalista, caracterizado por um líder ditatorial, uma autocracia centralizada, o militarismo, a supressão forçada da oposição e a crença em uma hierarquia social natural.” Nos últimos dias, Joe Biden e Kamala Harris também adotaram o epíteto infame.
Para além dos jogos de poder políticos do momento e de seus efeitos retóricos, há alguma pertinência histórica em falar aqui de fascismo? É, de fato, tentador rejeitar sumariamente as opiniões de dois homens que serviram lealmente aquele a quem hoje chamam de “fascista”, mesmo que, talvez em fase de incubação, ele já fosse um demagogo de extrema-direita, ultranacionalista, autoritário e objeto de um culto à personalidade. Porém, o uso de um termo tão carregado historicamente e inextricavelmente ligado às figuras de Mussolini e Hitler não pode ser banalizado, ainda mais porque a hipérbole e o registro da propaganda excessiva são precisamente marcas de Trump.
A sabedoria democrática exigiria, portanto, evitar invectivas e analogias rápidas que obscurecem a especificidade de situações históricas e geográficas. O único fascismo concebido nos Estados Unidos não foi, afinal, o imaginado por Philip Roth em seu romance de 2004, O Complô Contra a América, uma distopia que permaneceu na imaginação dos leitores? Aliás, quando questionado pouco antes de sua morte sobre a ascensão de Trump, o romancista afirmou que o empresário megalomaníaco era demasiado limitado e indisciplinado para se tornar um verdadeiro fascista.
Feitas essas ressalvas, não se pode ignorar a riqueza e a profundidade do debate intelectual e histórico que se segue desde 2016, e que colocou o conceito de fascismo no centro das análises do fenômeno trumpista. Trata-se de especialistas e pensadores do fascismo e do nazismo que, com base em seus estudos, vêm defendendo a legitimidade da qualificação fascista para designar as ideias, o projeto e a linguagem de Trump: o filósofo de Yale, Jason Stanley, ou seu colega historiador da Segunda Guerra Mundial, Timothy Snyder, concluíram que a corrente política encarnada por Donald Trump pertence ao paradigma fascista.
O historiador emérito Robert O. Paxton, autor do influente Anatomia do Fascismo, era cauteloso em 2016 ao utilizar o termo fascismo. Mas, após 6 de janeiro de 2021, o historiador não vê mais nenhuma objeção científica. “César de papelão”, como ingenuamente se dizia de Mussolini, o Donald Trump de 2016 transformou-se em um presidente deposto que se recusou a aceitar a derrota com violência, para depois se tornar um demagogo com anabolizantes em 2024, o que fez com que Paxton, assim como o historiador do genocídio nazista Christopher Browning, superassem suas dúvidas. Após considerar o termo “hiperbólico”, hoje ele reconhece seu pleno valor analítico.
– Felipe Calabrez
Um chamado à renascença nacional das massas guiadas por um líder
Debatido e contestado, esse enquadramento mostrou-se, ainda que não irrefutável, cada vez mais pertinente nas últimas semanas, marcadas por sucessivos discursos públicos nos quais Trump afiou seu repertório e apresentou a linguagem de seu projeto político. Se observarmos por um instante podemos compreender o diagnóstico dos historiadores: em Aurora, no Colorado, em 11 de outubro, Trump fulminou contra “o inimigo interno… toda essa escória que temos de enfrentar e que odeia nosso país”. Mais tarde, ele acrescentou em uma rede social que o 5 de novembro será o “dia da libertação” para a América “ocupada”.
Diante da decadência da nação, corrompida por “vermes”, ele convoca uma renascença nacional por um despertar das massas guiadas por um líder: “Defenderemos nosso território. Defenderemos nossas famílias. Defenderemos nossas comunidades. Defenderemos nossa civilização. Não seremos conquistados. Não seremos invadidos. Recuperaremos nossa soberania. Recuperaremos nossa nação – e eu lhes devolverei sua liberdade e sua vida.” Para que a libertação do verdadeiro povo ocorra, será necessária uma dupla purificação: a deportação em massa de 15 a 20 milhões de imigrantes “clandestinos” e a repressão política mais rigorosa contra os “inimigos internos”: “Temos entre nós pessoas nocivas, doentes, loucos radicais de esquerda… teremos de lidar com eles, se necessário, pela Guarda Nacional ou, por que não, pelo exército.”
O filósofo Alberto Toscano, autor de um livro notável, Fascisme tardif. La politique raciale des droites au pouvoir, observa que a mistura trumpista de capitalismo autoritário e de esmagamento das lutas sociais pela mística racial de uma nação eleita em guerra existencial é um traço fascista inegável: “Os democratas dizem que eu não deveria dizer que esses imigrantes são animais porque são seres humanos”, exclama o bilionário, “mas eles não são seres humanos, são animais.” Para ele, essas criaturas contaminam e expropriam os verdadeiros americanos, trabalhadores dignos, espoliados e humilhados. Em seu livro Como Reconhecer o Fascismo, Umberto Eco destaca que um dos critérios essenciais é a “mobilização de uma classe média frustrada, uma classe que sofre com a crise econômica ou um sentimento de humilhação política e que tem medo da pressão exercida por grupos sociais inferiores”.
Desde 2016, uma institucionalização sem precedentes da violência política
Seu compatriota, o historiador Enzo Traverso, autor de As Novas Faces do Fascismo: Populismo e extrema direita, também reconhece a natureza inegavelmente fascista de Trump, a quem chama de “fascista sem fascismo”. O ex-presidente americano não é, de fato, herdeiro de uma tradição política estritamente fascista, ancorada na história europeia do século XX. Mas os movimentos fascistas, a virtualidade fascista na democracia e os processos de fascistização foram conceituados como uma modalidade de política e poder que escapa de sua matriz europeia.
Já nos anos 1930, o intelectual e ativista negro americano William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963) falava de um “fascismo americano” para descrever o regime de violência de Estado que mantinha a supremacia racial branca nos estados do Sul. Em todo o país, uma Ku Klux Klan com cerca de quatro milhões de membros nos anos 1920 também é hoje analisada como uma forma de violência política e ideologia antidemocrática e anti-igualitária de natureza fascista. A longa história americana de permeabilidade entre a violência de Estado e o terror racista imposto por multidões supremacistas participou, de forma indiscutível, desse roteiro além-mar.
Esse espectro político, pondera Traverso, nunca de fato havia conseguido impor sua hegemonia entre as elites nem se encarnar em um partido de massa organizador da repressão. Mas desde 2016, assiste-se a uma institucionalização sem precedentes da violência política contra minorias, médicos, professores e eleitos (cuja virulência chamou a atenção do FBI). Este novo “vigilantismo”, que hoje ameaça a segurança de centenas de seções eleitorais, revela uma estratégia política orquestrada por um partido de massa: Se não são mais do que milhares de milicianos armados, milhares de pais na saída das escolas ou clínicas que realizam abortos, essas tropas são encorajadas por dezenas de governadores republicanos, felicitadas pela mídia republicana e celebradas hoje por todo o partido, decididamente de extrema direita.
Eles vislumbram uma revolução: a captura do Estado
Claro, o regime dos Estados Unidos sob a presidência de Trump não foi fascista e ele não derrubou a democracia nem prendeu jornalistas e opositores. Neopopulista ou pós-fascista, ele não foi muito diferente de Viktor Orbán ou Jair Bolsonaro. Mas naquela época, Trump foi constantemente impedido, contido pelas instituições do país, a começar pelo próprio partido republicano, pelos juízes, pela administração pública, sua equipe e até seu próprio vice-presidente. Hoje, nenhuma dessas barreiras existe mais: o partido tornou-se seu, e ele é superado em seu extremismo por uma nova geração de eleitos, incluindo seu candidato a vice, J.D. Vance. Juízes e funcionários já foram escolhidos para substituir qualquer recalcitrante e um ecossistema ideológico completo está agora em vigor.
Nos últimos quatro anos, fundações, jornais, grupos de pressão e redes intelectuais forneceram a base jurídica, política e intelectual de uma contra-revolução cujos quadros estão apenas esperando para serem nomeados. Ultranacionalistas cristãos, pós-liberais, paleoconservadores, católicos integralistas, originalistas… todos têm em comum a rejeição do termo “conservadores”: o que eles vislumbram é uma revolução: a captura do Estado para que ele restabeleça a ordem moral, a tradição e a autoridade, uma hierarquia social rígida, a redefinição da cidadania em um sentido estritamente étnico e a guerra sem trégua contra uma “esquerda marxista” maligna, secular e igualitária. O uso da força contra dissidentes está programado, sob o comando de um César americano que terá plenos poderes e imunidade (a Suprema Corte, agora de maioria reacionária, já começou a cuidar disso em parte).
Donald Trump não é Hitler nem Mussolini e nenhuma voz séria fez tal comparação (com a notável exceção de Vance quando era hostil a Trump). Mas elementos inquestionáveis de fascistização, ancorados na história americana, estão inegavelmente presentes no discurso e projeto político de Trump: medo eugenista do declínio moral e étnico do país, uso da violência política, racismo estrutural, ódio aos movimentos sociais e à esquerda cultural e ressentimento contra o Estado e instituições públicas tidas corruptas e fracas. A enunciação clara de um horizonte político contra-revolucionário deve finalmente ser mais compreendida do que nomeada: não se trata apenas de apagar a revolução igualitária dos direitos e liberdades dos anos 1960, mas da revolução liberal de 1776, que separava os poderes, concedia voto e soberania a todos. Da primeira vez, tratava-se apenas daquilo a que chamamos de “fascismo inacabado, experimental e especulativo”. Mas e amanhã?