POR NAIEF YEHYA
Via Esquerda.net
O alcance do discurso desta direita radical, até há pouco tempo limitada à blogosfera e aos sites de extrema-direita, estendeu-se a novos domínios, pronta a corroer a cultura popular e, sobretudo, a conquistar o ouvido de líderes como Donald Trump e outros populistas.
Desde há vários anos que fermenta no mapa político planetário uma nova direita que, em muitos aspetos, se assemelha à velha direita no sentido em que o seu principal objetivo é o regresso aos velhos sistemas de privilégio e segregação, mas que, ao mesmo tempo, é super-acelerada devido à sua carga tecnológica. O neo-reacionarismo estadunidense (doravante abreviado como NRx) assenta no desejo de reinstalar uma ordem passada em que as classes altas mais conservadoras voltam a dominar a sociedade, eliminando as elites progressistas contemporâneas, que consideram essencialmente como uma aristocracia decadente, produto do ensino universitário da Ivy League e de outras instituições de prestígio que foram infetadas com os vírus do idealismo da justiça social e de um discurso liberal pró-diversidade (ainda que meramente performativo). Um dos intelectuais responsáveis pela proliferação desta ideologia é Curtis Yarvin, um antigo matemático criança prodígio. Os seus pais eram imigrantes judeus em Brooklyn, estalinistas, doutorados e trabalhavam para o Governo Federal. Quando ele era pequeno, levaram-no a viajar pelo mundo. Em 1992, Yarvin formou-se como engenheiro de software na Universidade de Brown, saltando três anos (não é difícil imaginar o bullying a que foi sujeito), e mais tarde abandonou os estudos de doutoramento em Berkeley. Hoje, aos 52 anos, este bloguista e fundador do movimento Dark Enlightenment conseguiu grande influência na Casa Branca, seduzindo com as suas ideias o vice-presidente J.D. Vance, entre outros membros do gabinete, conselheiros e cortesãos.
Este ideólogo pensa que “um governo é apenas uma corporação que detém um país”, e considera legítimo usar o “poder do povo” para pressionar, ameaçar, processar e extorquir juízes, os media e o Congresso para os forçar a aceitar as decisões do líder supremo. A nova reação é a ilusão de que os milionários, os oligarcas e a classe empresarial imporão um monarca ou CEO (chief executive officer) que eliminará a decadente e ruinosa monstruosidade que é a democracia e se livrará da onerosa e caótica necessidade de procurar o consenso popular através de políticas de inclusão, socialistas e globalistas. O alcance do discurso desta direita radical, que até há pouco tempo se limitava à blogosfera, aos sítios online de extrema-direita e à fétida alt right, estendeu-se a novos domínios, pronta a corroer a cultura popular e, sobretudo, a conquistar o ouvido de líderes como Donald Trump e outros populistas.
Yarvin começou a divulgar as suas ideias em 2007, num blogue, Unqualified Reservations, que tinha como objetivo difundir “a mentalidade da engenharia moderna e o grande legado histórico do pensamento pré-democrático antigo, clássico e vitoriano”. Yarvin e os seus seguidores não têm vergonha de reconhecer que os ideais do seu “Iluminismo Negro” - autoritarismo, segregação e simples crueldade - representam o oposto dos ideais do Iluminismo francês: liberdade, igualdade e solidariedade. Desde 2012, Yarvin tem promovido o desmantelamento do Estado e, agora que a sua influência é avassaladora, Trump e o seu séquito repetem as suas declarações provocatórias e levam a cabo as ações que ele tem vindo a propor no processo de demolição do Estado social, da segurança social, da economia, do Departamento de Justiça e das agências de ajuda internacional, entre outros alvos que a antiga estrela do reality show “O Aprendiz” e o seu apoiante preferido do momento, Elon Musk, desprezam. Yarvin cultiva um ódio particular pelas instituições de ensino. Em 2021, escreveu: “É absolutamente essencial para o sucesso de qualquer mudança de regime que todas as universidades acreditadas sejam física e financeiramente liquidadas”. Esta mensagem teve particular eco junto do vice-presidente Vance, que se refere ao ensino superior como “o coração da besta”.
O talento de Yarvin, que começou a difundir as suas ideias sob o pseudónimo Mencius Moldbug, reside na sua capacidade de trollar e em saber vender as suas ideias aos tecnocratas de Silicon Valley e a uma geração politicamente educada no Reddit e no 4Chan, que se descreve como libertária e até anarquista (no sentido de abolir o Estado para explorar os recursos sem pagar impostos, salários justos ou respeitar os direitos e interesses dos menos afortunados). O Iluminismo Negro é uma espécie de versão contemporânea do manifesto futurista de Filippo Tommaso Marinetti. Ambos partilham um fascínio pela tecnologia, um desprezo pela cultura, um culto da guerra e uma obsessão por monarcas todo-poderosos que não têm de responder perante o povo, o Congresso ou qualquer outra pessoa. Provavelmente, a única diferença é que Marinetti, embora irritante, pelo menos sabia escrever.
Uma das alegações mais conhecidas de Yarvin foi a de comparar Anders Behring Breivik, o multi-homicida norueguês que assassinou 77 pessoas num campo de jovens, a Nelson Mandela, salientando que ambos eram terroristas. Assim, a luta descontrolada de um extremista de direita contra o governo “comunista” norueguês é equivalente, na mente de Yarvin, à batalha contra o apartheid. Este pretenso conhecedor de história não parece compreender o ridículo da sua comparação nem reconhecer o racismo flagrante deste disparate, que tenta ver paralelos entre um governo escandinavo de centro-esquerda e a brutal desapropriação de terras, riquezas naturais e poder político da população nativa pela minoria afrikaner que chegou à África do Sul em 1652. Yarvin escreveu: “Se me pedes para condenar Anders Breivik mas venerar Nelson Mandela, talvez tenhas uma mãe que gostarias de foder”. Mas tal declaração não surpreende quem escreveu em 2009 sobre os programas sociais para ajudar as minorias étnicas: “Quando aplicadas a populações com uma ascendência recente de caçadores-recolectores e sem reputação de forte fibra moral, tais iniciativas são uma receita para a produção de lixo humano absoluto”. Hoje, Yarvin diz que esta declaração foi um pouco paródica, mas é perfeitamente coerente com os seus escritos mais recentes, que são ligeiramente mais cautelosos. Como bom provocador, ele sabe que a repetição de tais palhaçadas agressivas é essencial para consolidar a sua personagem.
Os seus dogmas giram em torno da alegada ameaça que representam as ideias liberais impostas por burocratas corruptos, “que ninguém elegeu”, para ditarem os destinos da nação. Para ele, a retórica liberal serve apenas para mascarar a forma como a esquerda (e por esquerda ele entende qualquer coisa) esconde o seu egoísmo para manter e expandir o seu poder. A perspetiva de combater a corrupção e a ineficiência dos burocratas substituindo-os por outras elites igualmente egoístas mostra a pobreza do seu raciocínio. A campanha febril de Musk e dos seus diletantes do DOGE (Departamento de Eficiência Governamental) para levar a cabo purgas em grande escala dos trabalhadores do Estado inspira-se na estratégia que Yarvin designou por RAGE (Retire All Government Employees). Nos seus delírios, a eliminação destes burocratas pesados e contaminados pela perfídia liberal dará lugar a uma nova classe de funcionários tecnologizados, orientados para a otimização dos sistemas de controlo e de gestão com mecanismos e ferramentas tecnológicas (leia-se inteligência artificial). E embora Yarvin devesse celebrar o facto de os seus planos estarem a ser levados a cabo por Musk e os seus lacaios, que começaram a pilhar dados em seu benefício, a despedir um número maciço de trabalhadores (mais de 30 mil neste momento), a eliminar departamentos e a destruir agências governamentais, optou por se distanciar, criticando estas ações como “uma orquestra de chimpanzés a tentar tocar Wagner” (difícil não reparar na escolha do compositor favorito de Hitler para a metáfora).
Segundo Yarvin, o DOGE é demasiado agressivo e não é suficientemente agressivo. As suas ações são “suficientemente grandes para serem perturbadoras, mas não têm por detrás qualquer sentido de propósito profundo e construtivo”. Parte dos elementos que rejeita na estratégia de Musk tem sido a ofensiva anti-ciência (é interessante o ódio que os tecnocratas mais raivosos podem ter pela ciência) que levou a cortes orçamentais brutais, despedimentos e cancelamento de projetos. Isto tem sido feito com uma clara obsessão pela vingança ideológica que é apresentada às fileiras MAGA como uma guerra de classes, considerando que os cientistas, tal como a maioria dos académicos, são elitistas, progressistas e frequentemente democratas. É evidente, em todo o caso, que Yarvin procura distanciar-se do DOGE para se proteger das consequências inevitáveis destas medidas.
A proposta yarviniana é um “cesarismo autocrático”, um governo de um só homem, um sistema “entre a monarquia e a tirania” que ele quer definir como uma espécie de ditadura suave, que vem em socorro da república que perdeu a direção e a vontade de se governar a si própria. Para Yarvin, o problema de “eleger um ditador benevolente é um problema de engenharia”. O despotismo corporativo garantiria, segundo ele e os seus correligionários, a estabilidade e a continuidade. É claro que Yarvin tem razão quando diz que a democracia americana é profundamente defeituosa. No entanto, o problema não está no “politicamente correto”, na “epidemia woke”, na imigração, nem no sufrágio popular e na pluralidade que este implica, mas na forma como o sistema bipartidário depende de doadores poderosos. Os Estados Unidos não sofrem de uma fraqueza causada pela sua democracia, mas sim de um capitalismo primitivo galopante (que faz da saúde e da educação um negócio cruel), da exploração indiscriminada dos recursos, da corrupção, da hipocrisia e da incoerência na aplicação da lei, e de uma despesa desproporcionada em armamento, guerra e intervencionismo.
Para qualquer pessoa com uma mínima noção ou memória das consequências deixadas pelos regimes ditatoriais, a ideia de entregar a nação a uma “hierarquia rígida liderada por um monarca ou um CEO” parece tosca e quase cómica, pelo que é difícil levá-la a sério. Mas é evidente que as ideias de Yarvin se espalharam dos topos empresariais de Silicon Valley para as fileiras ressentidas do movimento MAGA e para a Casa Branca. Nos seus primeiros 100 dias de mandato, Trump seguiu esse guião à letra e foi mesmo mais longe, atacando as firmas de advogados que o ofenderam no passado.
Outro dos profetas cibernéticos reacionários, o filósofo britânico Nick Land, imagina um futuro em que a inteligência artificial e o capitalismo se fundirão para criar novos sistemas que tornarão a democracia obsoleta. O filósofo Mckenzie Wark define-o como “a antena da cultura circundante. Lê-se para conhecer os sintomas do nosso tempo”. Land, um misantropo niilista com a firme convicção de que a nossa espécie não tem futuro a não ser através de algoritmos, inteligência artificial e homens fortes sem escrúpulos no poder, despreza profundamente os proletários e é um dos mais notáveis representantes do tecno-aceleracionismo. O aceleracionismo, aparentemente, deriva da noção marxista de que as contradições do capitalismo levadas ao extremo detonarão a revolução proletária. O tecno-aceleracionismo destes novos reacionários consiste antes em precipitar a destruição da ordem existente para criar uma ordem tecnologizada, corporativa e hierárquica. Nas palavras do filósofo Mark Carrigan, o ideal de Land é “a aliança de conveniência entre a elite tecnológica e a intransigente política de identidade branca” e “começa a parecer-se muito com a coligação nazi entre os industriais alemães e uma classe média em decadência”.
É este o tecno-fascismo ou tecno-feudalismo ao qual gentilmente nos convidam a ser vassalos. Nesta lógica, o cidadão torna-se um utilizador ou cliente e as elites tornam-se acionistas. A historiadora Janis Mimura, autora de Planning for Empire (Cornell University Press, 2011), sugere que, ao invadir a Manchúria, o império japonês experimentou a aplicação do tecnofascismo sob a forma de desenvolvimento forçado baseado na exploração da população local. O controlo cabia aos oficiais que não tinham de prestar contas aos seus superiores. Os nazis tinham o seu próprio tecnofascismo, que foi fundamental para o seu genocídio, pois utilizaram os avanços tecnológicos para otimizar o Holocausto, desde a utilização de computadores IBM para identificar a população judaica até à maquinaria necessária para o assassínio em massa e a eliminação dos restos mortais. Do mesmo modo, o Estado de Israel impulsionou a sua indústria para a tecnologia de ponta no domínio da guerra, dos serviços secretos e da espionagem. Transformaram Gaza num laboratório de armas para a sua indústria, utilizaram ferramentas de inteligência artificial, drones e robótica para massacrar civis e levar a cabo um genocídio que eles próprios transmitiram nas redes sociais como entretenimento.
As ideias de Yarvin não têm qualquer originalidade, derivam do velho nacionalismo branco, sobrecarregado de auto-vitimização, paranoia e nostalgia da velha ordem; consideram a escravatura “uma relação humana natural, semelhante à do patrão e do cliente”, e apoiam abertamente o apartheid e a mais feroz islamofobia. A sua “filosofia” é uma coleção de regurgitações e velhos dogmas simplistas que disfarçam mal as fantasias autoritárias e os delírios adolescentes de vingança, que são a base de algo a que podemos chamar a oligarquia da irmandade dos tecnocratas ou tech broligarchy. Grande parte do impulso dado às suas ideias na política de direita deve-se ao apoio do financeiro Peter Thiel, cofundador do PayPal e do Palantir (termo emprestado do Senhor dos Anéis que se refere a poderosas esferas de cristal indestrutíveis utilizadas para adivinhação e comunicações telepáticas), que declarou que “a democracia e a liberdade já não são compatíveis”. Também ao apoio do bilionário Marc Andreesen, coautor do navegador Mosaic e cofundador da Netscape. Outro aliado é Alexander Karp, diretor executivo da já referida Palantir, a empresa que cria ferramentas de espionagem para exércitos e agências de inteligência. Sem esquecer Steve Bannon, que não é a favor da tecnologização do poder mas apoia Yarvin.
A transgressão radical e política de Yarvin é uma birra patética com citações de culto, incelismo lamentável (a cultura misógina alinhada com o ressentimento daqueles que se sentem incapazes de uma vida romântica e que culpam as mulheres pela sua rejeição) conspiratório com pretensões de intelectualismo político. As suas referências são seleções convenientes de textos diversos (o seu autor preferido, que compara a Shakespeare, é o escocês Thomas Carlyle, também famoso pela sua apologia da escravatura), distorções e simplificações desconcertantes, comparações exóticas, citações de J.R.R. Tolkien, Frank Herbert e George Lucas, bem como uma reverência desenfreada pelo filme Matrix das irmãs Wachowski (com o seu conceito de pílula vermelha). Yarvin também tem uma obsessão insensata por ver certos governos do passado e do presente como se fossem start-ups que assumiram riscos pouco ortodoxos e sem precedentes em benefício dos seus cidadãos/investidores.
Yarvin é hoje o profeta de um governo de executivos e chatbots que, por um lado, anseiam por “tornar a América grande de novo”, ao mesmo tempo que aplicam o tecnodogma de “mover-se rapidamente e partir coisas” aos assuntos públicos. Embora seja um pouco difícil de compreender, os neo-reacionários lançaram uma era essencialmente contraditória de progresso conservador frenético. Os novos reacionários estão a fazer a sua revolução, a sua tomada da Bastilha e a sua era de terror. Mais cabeças irão rolar.
Bem-vindos à tecnoutopia.
Naief Yehya é escritor, jornalista e crítico cultural. Nascido na Cidade do México, vive em Brooklyn desde 1992. Entre os seus livros contam-se Guerra y propaganda (2003), Pornografía, obsesión sexual y tecnológica (2012) e Pornocultura, el espectro de la violencia sexualizada en los medios (2013), além de vários romances. Artigo publicado em CTXT.