Via New Left Review
Tradução: Equipe Radar Internacional
Tariq Ali: Vamos começar com Gaza. Esperamos estar agora no estágio final dessa guerra israelense. A taxa de mortalidade vai ser na casa dos centenas de milhares, talvez perto de meio milhão. Nenhum país ocidental fez qualquer ação significativa para parar isso. No mês passado, Trump ordenou os israelenses a assinar o acordo de cessar-fogo com o Irã e quando Israel rompeu esse acordo ele ficou enfurecido. Para usar suas palavras imortais: “Eles não sabem que merda estão fazendo”. Mas isso me leva a questão: você acha que os estadunidenses sabem o que estão fazendo?
Jean-Luc Mélenchon: Nós devemos tentar entender a racionalidade desses Estados ocidentais. Não é simplesmente que o Trump é maluco ou que os europeus são covardes; talvez eles sejam essas coisas, mas o que eles estão fazendo, entretanto, é baseado em um plano de longa duração, que faliu no passado mas que agora está no processo de ser realizado. O plano é, primeiro, reorganizar todo o Oriente Médio para assegurar acesso ao petróleo para os países do Norte Global; e, segundo, criar as condições para uma guerra com a China.
O primeiro objetivo remonta a guerra Irã-Iraque, quando os Estados Unidos usaram o regime de Saddam Hussein como um instrumento para conter a revolução iraniana. Depois da queda da URSS, os Estados Unidos lançaram a Guerra do Golfo e Bush proclamou uma “nova ordem mundial”. Minha visão desde o começo era que isso era uma tentativa de estabelecer controle sobre os oleodutos e gasodutos e proteger a independência energética dos Estados Unidos colocando os preços suficientemente altos, no limiar de rentabilidade do petróleo extraído por fracking. Quando nós compreendemos isso como a principal ambição do Império, vários outros eventos passam a fazer sentido. Por exemplo, o que os Estados Unidos fizeram no Afeganistão depois da invasão de 2001? Impediram que um gasoduto que passaria pelo Ira fosse colocado. A guerra do Daesh contra a Síria também foi, em vários sentidos, uma luta contra uma rota de gasoduto.
Então você tem isso: uma linha de raciocínio bastante consistente. Um império só pode ser um império se puder manter controle de certos recursos e é precisamente isso o que está acontecendo hoje. Os Estados Unidos decidiram redesenhar o mapa do Oriente Médio, usando Israel como seu instrumento e aliado. Os Estados Unidos sabem que devem recompensar Israel por esse trabalho e isso toma forma do apoio para o projeto político de uma Grande Israel, no qual a população palestina em Gaza e em qualquer outro lugar deve desaparecer. Se a Europa e os Estados Unidos quisessem parar essa guerra, ela teria sido limitada a três ou quatro dias de retaliação israelense depois do 7 de outubro. Mas ao invés disso, ela dura mais de vinte meses. Então ninguém pode dizer que os estadunidenses não sabem o que estão fazendo, como alguns já disseram. O que está acontecendo na região é totalmente deliberado, planejado e organizado conjuntamente pelos Estados Unidos e por Netanyahu.
TA: Você falou que a segunda parte do plano estadunidense é o conflito com a China. Vários liberais e liberais de esquerda estão agora finalmente se afastando dos eventos no Oriente Médio e dizendo que nosso alvo real deve ser a China. Mas o que eles não percebem é que o real alvo e a China, porque, como você disse, se os Estados Unidos controlam todo o petróleo da região - o que aconteceria em caso de derrota do Irã - então eles teriam controle do fluxo dessa commodity básica. Eles poderiam forçar Pequim a implorar por petróleo, o que ajudaria a manter esse país sob controle. Então a estratégia dos Estados Unidos no Oriente Médio pode parecer completamente maluca - e e maluca em vários níveis - mas também existe uma lógica profunda por trás disso: que é melhor brigar com a China do seu jeito do que entrar em guerra com esse país. Isso já começou a criar problemas gigantes ao redor do Oriente. Eu percebi que os governantes do Japão e da Coreia do Sul, dois países que possuem grandes bases militares dos EUA, cancelaram abruptamente os planos para sediar a cúpula da OTAN em junho.
JLM: O conflito entre os Estados Unidos e a China é sobre redes de comércio e recursos e em alguns aspectos os chineses ganharam, porque eles parecem produzir quase tudo que o mundo consome. Eles não têm interesse em lutar em uma guerra porque eles já estão satisfeitos com a sua influência global. Mas isso é tanto uma força quanto uma fraqueza. Quando 90% do petróleo iraniano vai para a China, por exemplo, bloquear o Estreito de Hormuz cortaria cadeias de suprimento cruciais e colocaria fim a uma grande parte da produção chinesa. Então a China é vulnerável nessa frente. Você está correto em dizer que algumas pessoas no Ocidente prefeririam uma guerra fria do que uma guerra quente, cerco e contenção do que conflito direto. Mas isso são nuances e na verdade é fácil se mover de uma para outra. Um dos maiores conselheiros econômicos do Biden disse que não existe “solução comercial” para o problema de competição com a China, o que significa que só pode haver uma solução militar.
O ponto sobre o Japão e a Coreia também é significativo. Não apenas eles, mas também várias outras potências na região estão estreitando laços com a China. O Vietnã supostamente estaria no bloco dos EUA, mas eles assinaram acordos com os chineses. Assim como a Índia, apesar das tensões entre os dois países. O pano de fundo aqui é que, em boa parte da Ásia, o capitalismo ainda é definido por forças dinâmicas de comércio e produção, enquanto nos EUA o capitalismo assumiu um caráter predatório e tributário. Ou seja, Washington agora tenta usar o seu poder para fazer o resto do mundo pagar tributos, como ficou claro na conferência da OTAN que você mencionou, onde foi decidido que cada Estado deveria gastar 5% do seu PIB em defesa. Esse dinheiro não vai ser usado para construir aviões ou submarinos domésticos, claro, mas para serem comprados dos Estados Unidos.
Uma vez eu tive uma conversa interessante com uma liderança chinesa. Quando eu disse para ele que a China estava inundando o mercado europeu com uma superprodução de carros elétricos, ele respondeu: “Sr. Mélenchon, você acha que tem muitos carros elétricos no mundo?” Claro que eu tive que responder que não. Então ele falou: “Nós não estamos forçando vocês a comprarem os nossos produtos; vocês que decidem se querem comprá-los.” Ele era um comunista me explicando os benefícios do livre comércio. Isso foi um lembrete de que quando se fala de EUA e China o que nós temos é uma competição entre duas formas diferentes de acumulação capitalista - mesmo sendo redutivo descrever o modelo econômico chines como simplesmente capitalista. Quando eu perguntei sobre o equilíbrio militar de forças, ele me disse que a China estava em uma situação favorável, porque, como ele colocou “nosso front e o mar chines. O front dos Estados Unidos e o mundo inteiro”.
Então a batalha com a China já foi iniciada e nós também estamos ainda em uma fase preparatória. Agora há navios de guerra e armas estadunidenses em todo o mundo, que Washington precisaria para se concentrar na preparação para qualquer ataque. Então ainda temos alguns anos pela frente, uma janela de oportunidades. A França ainda permanece um país com recursos militares e materiais para intervir na balança global de poder. Eu acredito fortemente que um dia nós teremos um governo insoumis que será capaz de assegurar soberania sobre nossa própria produção doméstica e política externa: um governo que reconheça que, mesmo que a China seja uma ameaça sistêmica ao império, não é uma ameaça sistêmica para nós. E para isso que estou fazendo campanha.
A Alemanha é um problema diferente. Você sabe, na França nós geralmente dizemos “nossos amigos alemães”. Bem, os alemães não são amigos de ninguém. Eles só pensam em si mesmos. Eles rompem acordos com nós o tempo todo. Agora eles estão querendo colocar $46 bilhões na economia de guerra porque eles perderam a batalha da indústria automobilística há mais de quinze anos. Até mesmo os alemães foram ensinados com uma lição agressiva pelos EUA. Eles acabaram dependentes do Gazprom para obter energia. O Sr. Schroder foi trabalhar para a empresa e assegurou um bom acordo com os russos. Depois os estadunidenses disseram “Chega” e a Nord Stream foi destruída. Você vê, o império vai brigar com qualquer um que desobedece-lo.
TA: Com o que você acha que o mundo que nós vivemos vai se parecer no fim do século?
JLM: A única coisa que nós podemos saber com certeza é que ou a civilização humana encontra um caminho para se unir contra as mudanças climáticas ou ela vai colapsar. Sempre haverá seres humanos que conseguirão sobreviver às tempestades, às secas e às enchentes. Mas os tecnocratas não saberão manter a sociedade como um todo funcionando. Na França temos alguns dos melhores tecnocratas do mundo, mas eles são estúpidos o suficiente para acreditar que tudo vai permanecer absolutamente do mesmo jeito. Eles estão planejando construir ainda mais plantas de energia nucleares como parte da sua estratégia climática; mas você não pode executar plantas de energia nucleares sem congelá-las e congelá-las requer água gelada, o que está em uma oferta crescentemente menor. Nós já fomos forçados a começar a desligar plantas nucleares porque o calor é muito extremo. Isso é apenas um exemplo, mas há dezenas de outros onde as decisões políticas são feitas como se o mundo permanecesse como ele é hoje. Como materialistas, nós devemos pensar sobre atuação política dentro dos parâmetros de um ecossistema ameaçado pela destruição. A menos que nós comecemos dessa premissa, nossos argumentos não terão valor.
Hoje, 90% do comércio mundial é conduzido pelo mar. Mas essa não é a forma mais fácil de transportar bens. Há alguns estudos que mostram que o transporte ferroviário é mais seguro, rápido e geralmente mais barato. Então uma pessoa pode imaginar que, se o clima ficar pior, os chineses vão explorar a possibilidade de encontrar rotas alternativas para seus produtos. A rota Pequim-Berlim será fundamental para sua ligação com a Europa; lembre-se que a China já escolheu uma vez a Alemanha como ponto final de uma de suas rotas da seda. E a outra grande rota vai por Teera e entra no sul do Europa. A China vai ter uma vantagem global ao desenvolver esses novos canais de comércio porque tem o poder dominante em termos de eficiência técnica: um recurso essencial no capitalismo tradicional. Os EUA, em contrapartida, não possuem proeza técnica. Os estadunidenses são incapazes até mesmo de manter a estação espacial orbitando sobre a Terra, enquanto os chineses trocam a equipe da sua estação a cada seis meses. Os estadunidenses mal conseguem enviar alguma coisa para o espaço, enquanto os chineses recentemente aterrissaram um robô no lado escuro da lua. “Ocidentais” - eu ponho esse termo entre aspas porque não gosto dele; eu não me considero ocidental - são tão orgulhosos de si mesmos, tão arrogantes, tão pretensiosos, que não podem admitir esse desequilíbrio.
Em resumo, se o capitalismo continuar a dominar, com os neoliberais no poder, então a humanidade está perdida, pelo simples fato de que o capitalismo é um sistema suicida que lucra com os desastres que causa. Qualquer sistema anterior foi forçado a parar quando criou muita desordem. Este não. Se chover muito, ele te vende guarda-chuvas. Se está muito calor, ele te vende um sorvete. Nas próximas décadas, regimes coletivistas vão demonstrar que o coletivismo é uma perspectiva mais satisfatória para os seres humanos do que a competição liberal.
Eu também quero fazer uma aposta. Eu acho que no fim do século, talvez antes, os Estados Unidos da América não vão existir. Por que? Porque não é uma nação, é um país que esteve em guerra com todos os seus vizinhos desde o momento do seu nascimento. Samuel Huntington o descreve como uma estrutura fundamentalmente instável e previu que a língua que eventualmente se tornará dominante lá é o espanhol. Uma grande proporção da população dos EUA agora fala espanhol em casa e essa parte da população é majoritariamente católica, em contraste com os “iluminados” protestantes que fundaram o país. Essas dinâmicas linguísticas e culturais são muito importantes. As pessoas se preocupam profundamente com sua língua materna: a que sua mãe usou para nanar quando era bebê, a que elas usam para contar a seus parceiros que os amam. Na Califórnia - um estado que foi arrancado do México, com uma economia que é a quarta maior do mundo em termos de PIB - o espanhol é falado em todo lugar, mais que o inglês. Não é de se espantar que a campanha para a independência da Califórnia esteja ganhando tração, com um referendo a ser realizado talvez no próximo ano. Eu não sei se vai funcionar, mas é notável que um dos principais estados dentro da potência dominante do mundo já esteja considerando a possibilidade de secessão. Nós vamos ver mais disso. E a ideologia dominante do país - “cada homem por si mesmo” - não vai conseguir mantê-lo junto.
TA: Você escreve no seu livro recente que o povo francês pode irromper sem avisar como um vulcão, que há algo constantemente borbulhando por baixo da superfície da sociedade francesa. A última pessoa que eu ouvi trazer um argumento similar foi Nicolas Sarkozy. Quando ele era presidente, um jornalista bajulador disse a ele, “Você é tão popular, Sr. Sarkozy, seus índices de aprovação são tão altos, você tem uma esposa tão bonita” etc. E a resposta do Sarkozy, para minha surpresa, era que as pessoas que fazem perguntas como essa não entendem a França, as mesmas pessoas que estão te elogiando hoje vão irromper o seu quarto e te matar amanhã.
JLM: Esse aspecto da sociedade francesa vem, em primeiro lugar, da nossa história. Dois impérios e três monarquias em menos de um século. Cinco Repúblicas em dois séculos e, claro, três revoluções. Isso produziu uma cultura coletiva de insoumission. Eu escolhi essa palavra para o nosso movimento porque é exatamente o ethos que eu quero incorporar: um instinto rebelde, uma habilidade presente de rejeitar a ordem que está sendo imposta sobre nós. Se nós quisermos desenvolver uma estratégia revolucionária, temos que construir sobre esses fundamentos culturais. As pessoas costumavam dizer, em voz baixa, “eu sou comunista” ou “eu sou socialista”. Agora elas dizem “eu sou insoumis”.
Mas isso não é a única coisa. Também há mudanças demográficas, a combinação de diferentes populações. Para se submeter a ordem estabelecida, você deve estar integrado a ela, em maior ou menor medida. O servo deve ser ensinado a aceitar sua posição como um servo, porque seu pai era um, seu avô era um e assim por diante. Mas se você acabou de chegar na França, se você arriscou sua vida para chegar aqui e você está cheio de entusiasmo com a vida, então você quer ter sucesso mais do que se submeter. Você quer que os seus filhos tenham sucesso também, que tenham uma boa educação. E isso cria uma dinâmica interna com essas populações que as classes dominantes, com a sua arrogância usual, não podem compreender. Mitterrand foi eleito em maio de 1981 porque o Partido Comunista organizou a classe trabalhadora tradicional e o Partido Socialista organizou as classes sociais ascendentes. Mas hoje não há mais classes sociais ascendentes na França além das comunidades imigrantes.
Nós na La France insoumise nunca acreditamos que os franceses tornaram-se racistas, fechados, egoístas. Sim, existem algumas pessoas assim. Mas também existem forças oponentes que são numerosas e fortes. E por isso que nos focamos nos bairros da classe trabalhadora - incluindo os bairros imigrantes - e na juventude, porque são os dois setores que têm mais interesse na abertura da sociedade do que no seu fechamento. Nós não somos um povo como os anglo-saxões, que são muito focados nos negócios. Este é o único país onde, quando você quer criticar alguém, você usa uma expressão popular como heureusement que tout le monde ne fait pas comme vous - “é uma coisa boa ninguém fazer o que você faz”. Em outras palavras, o que é bom e o que todo mundo faz. Existe um igualitarismo espontâneo na França que penetra nas nossas falas cotidianas.
Esta é uma nação construída através de revoluções, organizada ao redor do Estado e dos serviços sociais. Todas as nossas conquistas - técnicas, materiais, intelectuais - vem do poder do Estado. Consequentemente, ao destruir o Estado, o neoliberalismo está destruindo a nação francesa como um todo. Você quer um catálogo da destruição? Uma escola fechando por dia; uma maternidade por bairro; 9.000 quilômetros de pistas de estrada desmanteladas; dez refinarias foram embora. A guerra da oligarquia sobre a sociedade significa a destruição da propriedade pública em benefício da propriedade privada. E ainda, como resultado desse empobrecimento do Estado, o investimento privado colapsou. Os ricos não estão criando empregos. Eles não estão comprando máquinas para fazer coisas. Eles estão lucrando por fazer nada, simplesmente manipulando o maquinário financeiro especulativo.
Nossa estratégia política é baseada na combinação desse diagnóstico material com análise cultural. Socioculturalmente, há outros países onde as pessoas podem dizer “Sim, isso é perfeitamente normal; e o dinheiro deles, eles podem fazer o que eles quiserem com isso.” A França é diferente. Aqui você tem que justificar o que você faz. Você é responsável pelo coletivo. Isso não é nenhum tipo de nacionalismo abstrato. Não é que eu ache que os franceses são melhores que os outros; eles também podem ser levados a competir uns com os outros. Mas esse profundo impulso coletivo, contudo, me deixa otimista quando vejo os fascistas tentando impor sua visão desoladora de existência. Eles não tem ambição para a sociedade, não tem propostas para o futuro. Tudo o que eles sabem é que eles não gostam de árabes e de pessoas negras.
É muito fácil provocar os fascistas. Você tremula uma bandeira vermelha e de repente todos eles vêm correndo. Eu observei recentemente que a língua francesa não pertence aos franceses, mas a quem fala essa língua. Isso causou grande controvérsia. “O francês pertence aos franceses!”, eles gritaram. Bem, atualmente existem 29 países onde o francês é a língua oficial. Ao reconhecer isso, podemos começar uma discussão sobre a língua enquanto um bem comum. Quando você fala para um fascista que existem 100 milhões de congoleses que falam francês, eles desmaiam. Quando você fala para eles que, em média, os senegaleses são mais educados que os franceses, eles não podem tolerar isso. Pior ainda aos olhos deles: os muçulmanos do norte da África tem a ir melhor na escola. Eu acho que quando nós estamos confrontando o fascismo, temos que provocar uma guerra cultural completa e frontal, ao mesmo tempo que travamos a batalha econômica. Nós não podemos ter medo. Obviamente que isso pode ser desagradavel, mas é assim que as pessoas podem entender a realidade humana mais profundamente. Nós podemos ser trabalhadores, mas também somos amantes, poetas, músicos - e essas identidades também têm lugar na política. Eu não sei se isso soa muito romântico para você.
TA: A França não é imune ao crescimento global da extrema-direita. A tradicional intelectualidade liberal e liberal de esquerda tem sido incapaz de reagir, porque é o sistema que elas apoiam que permitiu essas forças reacionárias crescerem tão rápido. Você acha possível que um partido liderado por uma figura como Le Pen ou Eric Zemmour possa vencer sozinho e formar um governo majoritário na França?
JLM: O crescimento da extrema-direita tem sido uma catástrofe intelectual. Parte da razão de por que eles são tão fortes é que nós perdemos os pontos de referência coerentes de pensamento crítico. Os social-democratas não têm interesse nesse tipo de pensamento: ao invés de oferecer explicações compreensíveis, eles simplesmente repetem alguns velhos princípios econômicos que você e eu ouvimos há quarenta anos. Isso não é suficiente, principalmente para a juventude ou para aqueles que vivem uma vida difícil: que trabalham duro, pagam impostos, contribuem e querem saber por que agora eles estão vivendo em um mundo tão deteriorado. A extrema-direita dá a eles todo um arsenal de certezas: homens são homens, mulheres são mulheres, pessoas brancas são superiores. A maior parte das pessoas estão vigilantes sobre essa propaganda, mas muitas outras a aceitam. O que significa que nós estamos encarando uma situação onde - sim - a extrema-direita é capaz de ganhar sozinha ao absorver a direita.
Stefano Palombarini escreve que existem três blocos na França: a esquerda, a direita e a extrema-direita. A isso, nós acrescentaríamos uma quarta categoria: não um bloco, não um ator homogêneo, mas uma massa de pessoas que estão desiludidas com tudo. Há milhões dessas pessoas e nós estamos lutando para trazê-las de volta para a família política da esquerda. Mas a extrema-direita tem um trabalho muito mais fácil. Isso acontece parcialmente por causa do declínio da direita, incluindo os macronistas. Eles estão começando a aperceber que não podem mais convencer as pessoas; então eles estão abraçando a ideologia, a retórica, a cultura da extrema-direita.
O Ministério do Interior recentemente ordenou um dia de batidas a imigraçao nas estações de trem para eliminar as pessoas sem documentação correta. Isso foi horrível. Eu falei para os meus companheiros que precisamos nos preparar para uma luta muito mais intensa contra essas batidas no futuro. Enquanto a direita e a extrema-direita convergem, esse tipo de racismo vai se tornando norma. Se você trabalhou na França por dez anos e as autoridades não te enviaram os documentos renovados, você pode agora ser capturado na rua e deportado. Sua vida inteira pode ser jogada no lixo em questão de momentos. Não, não, nós não podemos aceitar isso. É insuportável.
Então assim como ter um papel de liderança nas lutas sociais, nós também devemos lutar nessa batalha de ideias. É por isso que nós criamos uma fundação, L’Institut La Boétie, para ligar intelectuais com uma camada mais ampla da sociedade. Nós sediamos palestras, organizamos painéis, publicamos livros. A maior parte dos palestrantes são da França, mas alguns vieram de outros lugares também. David Harvey veio para falar sobre geografia crítica; Nancy Fraser traçou sua visão de feminismo materialista e reprodução social. O objetivo não é “recrutar” intelectuais, mas difundir suas ideias, que de repente estão alcançado audiências de milhares de pessoas. Nós temos pedidos de encontros como esses em todo o país; já aconteceram mais de oitenta até agora.
TA: Uma coalizão da direita com a extrema-direita na França seria diferente em sua natureza em relação ao governo de Meloni na Itália?
JLM: Na França, a retórica racista tem se tornado extraordinariamente intensa e a violência tem sido crescentemente tolerada. Há apenas algumas semanas atrás, um policial que atirou e matou uma jovem mulher que estava viajando no assento de passageiro de um carro teve seu caso arquivado. Absolvido. Sem processo. Há escândalos envolvendo brutalidade policial quase toda semana. A força policial é dominada por esses elementos. Como resultado, um regime de extrema-direita na França seria ainda mais violento, ainda mais agressivo do que na Itália.
A extrema-direita pensa que nós estamos vivendo na França do início do século XX, onde os imigrantes ficavam quietos. Eles não percebem que as nossas populações foram mescladas. Há 3,5 milhões de pessoas com dupla nacionalidade francesa e algeriana: Pessoas que têm laços profundos com a França e pais que estão lá. E há 6 milhões de franceses muçulmanos. Mas a extrema-direita está inconsciente disso ou se recusa a acreditar nisso. Eles veem os muçulmanos como invasores por causa da sua religião e tentam esquecer que este país experimentou três séculos de guerra civil religiosa entre católicos e protestantes.
Todo o maquinário político e intelectual da classe dominante francesa está agora se movendo nessa direção. Isso inclui a miserável pequena esquerda, liderada pelo Partido Socialista, que late para a gente de manhã até a noite. Eles não percebem que estão participando de uma estratégia institucional mais ampla: agindo como a ala esquerda auxiliar da direita. Eles vivem em um mundo dos sonhos, querem que a França seja como a Alemanha, com uma grande coalizão do centro: social-democratas que são indistinguíveis dos liberais, verdes que estão sempre clamando por guerra. Essas pessoas estão fazendo o trabalho de nos dividir todos os dias enquanto fingem lutar pela unidade.
É muito deturpada, muito viciosa, mas essa é a luta. É difícil? E daí? Já foi fácil alguma vez? Eu não quero dar a impressão de que eu acho que a extrema-direita venceu. Frequentemente eu digo aos meus camaradas mais jovens: vocês não conheceram a França de quando a maioria das pessoas nas vilas iam para a igreja toda semana e o padre dizia a elas que elas não tinham que ter nada com os comunistas ou os socialistas. Eu batia nas portas quando eu era jovem na década de 1980 e as pessoas diziam “Você é aliado dos comunistas? Eles são contra Deus.” Eu tentava explicar que Deus não tinha nada a ver com as eleições francesas. E sobre que tipo de mundo você quer pertencer. Se você não conhece a resposta, então você pode acabar ficando tanto com os liberais quanto com os fascistas. Os liberais dizem que é cada homem por si mesmo e os fascistas dizem que são todos contra os árabes. Eles têm suas visões de mundo e nós, a esquerda, precisamos oferecer outra forma de ver o mundo. É isso o que nós estamos tentando fazer. É por isso que algumas vezes as pessoas dizem que eu sou lírico e romântico. Sim, eu sou, e nao tenho vergonha disso.
TA: Boa sorte.