Confira na íntegra a declaração do Fórum que reuniu em Belém lideranças indígenas, ribeirinhas, camponesas e urbanas de nove países da região Amazônica em 260 atividades. O Fórum surgiu em 2001, também na Capital Paraense, com raiz no 2º Encontro pela Humanidade e contra o Neoliberalismo e no 1º Fórum Social Mundial.
Declaração Pan-Amazônica de Belém – X Fórum Social Pan Amazônico
28, 29, 30 e 31 de julho, Belém do Pará, Brasil
DA NOSSA PAN-AMAZÔNIA…
1. Abraçados em frente ao Rio Guamá, no grande encontro de toda a diversidade que habita a Pan Amazônia, nós, indígenas, negros, quilombolas, camponeses, ribeirinhos, urbanos, de todos os gênero e faixas etárias dos nove países da Bacia Amazônica: Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, reafirmamos a viagem que começamos há 20 anos, desde o Primeiro Encontro como Fórum Social Pan-Amazônico, com a esperança de um “Outro mundo possível”. Não podíamos imaginar, na época, que hoje o mundo seria ainda pior.
2. Hoje, a Amazônia está no seu pior momento, devastada por governos para os quais a natureza é uma mercadoria e os direitos dos povos não têm validade. Até hoje, nenhum governo tem garantido o pleno exercício dos direitos dos povos amazônicos na defesa da Mãe Natureza. Nesta situação, é necessário chamar os movimentos sociais, apelar para a criatividade, aprender com os erros e continuar a luta.
3. O que percebemos ontem como ameaças são hoje realidades derivadas de um sistema de opressão múltipla: patriarcal, racista, capitalista e colonial, que localizou a grande Bacia Amazônica como sua mais recente fronteira de expansão, colocando em risco todas as formas de vida e aqueles que as defendem.
Sob a falsa premissa do desenvolvimento, a extração da borracha, madeira, petróleo, agronegócio, grandes hidrelétricas e mega-mineração avançou sobre os diferentes territórios amazônicos e foi inserida em modelos de caráter colonial, incluindo propostas de mercantilização de elementos do bioma. Sob este pretexto, os territórios estão sendo militarizados e os bens comuns saqueados, para gerar lucros. A desigualdade social e a violência estrutural e factual estão se aprofundando para a todas as populações da região Pan-Amazônica, que hoje vê como toda a vida está sendo destruída e envenenada.
4. A atual crise climática e sua ameaça civilizacional, consequência do modelo de desenvolvimento, levou o ecossistema amazônico ao ponto de não retorno, ameaçando com a perda irreparável da floresta tropical mais importante do planeta e lar de mais de 50 milhões de pessoas, juntamente com boa parte da biodiversidade planetária. Se não pararmos esta tendência agora, amanhã será a morte da região Pan-Amazônica, vital para frear o aquecimento global e garantir a vida no planeta. O tempo está se esgotando.
5. Indígenas, camponesas, negras, quilombolas, mulheres populares e urbanas, mulheres trans e lésbicas, uma força de resistência em defesa da vida, continuam a ser violadas pela ação e omissão dos Estados, fundamentalismos políticos e religiosos, patriarcalismo, racismo, militarização e corrupção, enraizadas e instaladas na nossa sociedade capitalista, que através de corporações transnacionais e forças econômicas expropria territórios com impunidade e promove a violação de corpos, o tráfico e controle de pessoas e modos de vida, a violência sexual, feminicídio, violação de direitos sexuais e reprodutivos, ataques contra a diversidade, dissidência sexual e de gênero.
6. Toda a Bacia Amazônica está passando por uma situação de guerra não convencional, com a participação de forças militares estatais, paramilitares, milícias e traficantes de drogas agindo em conexão com grandes interesses econômicos. A isto se somam medidas coercitivas unilaterais, bloqueios financeiros e econômicos e ameaças militares impostas por grandes potências globais e por grupos fundamentalistas.
7. Reiteramos que, embora os perigos tenham aumentado, as lutas e resistências adquiriram uma força sem precedentes, a partir da experiência das espiritualidades de nossos povos, que devem continuar a crescer como filhos da Mãe Amazônia. Neste sentido, os povos da Pan-Amazônia estão se organizando, se unindo, lutando por seus territórios e culturas, para tornar possível um futuro. Assim avançam as lutas anti-racistas, anti-patriarcais e anticoloniais, mantendo o otimismo que nos tem caracterizado, mas com um realismo que nos obriga a exigir o que é (im)possível. Este outro mundo é possível.
EXPRESSAMOS A NOSSA PROPOSTA POLÍTICA
8. Exigimos um modelo político, social e econômico que priorize a integridade de nossa casa comum, que reconheça e respeite os territórios e o pleno exercício dos direitos dos povos amazônicos e dos direitos da Natureza.
9. Recuperar, valorizar e proteger o conhecimento de homens e mulheres e as formas ancestrais de organização de nossos povos para o cuidado e gestão da água, a proteção de nossos territórios, que incluem nossos rios, limpos e livres de megaprojetos.
10. Nossas alternativas para uma terra sem males são a produção agrícola e florestal diversificada em harmonia com a natureza, agroflorestação, agroecologia, projetos para produção e consumo local, manejo comunitário dos bens comuns, florestas e território, uso de sementes nativas, ecoturismo comunitário, projetos de energias alternativas, cuidado e manejo integrado e participativo de bacias hidrográficas e biorregiões, e muitas outras iniciativas voltadas para a vida e não para a mercantilização da natureza.
11. Propomos articular esforços e lutas em defesa dos territórios da Pan-Amazônia e da vida, bem como, com outros movimentos sociais em outras regiões do mundo, contra o modelo econômico neoliberal patriarcal, colonial e racista que viola todos os nossos direitos individuais e coletivos, contra a corrupção e contra os fundamentalismos políticos, econômicos, socioculturais e religiosos.
12. Exortamos os governos dos países pan-amazônicos a porem em prática seus discursos contra a crise climática e os direitos da Mãe Terra, com medidas reais contra o desmatamento, a degradação e o aumento das emissões, e não com as maquiagens das chamadas economias verdes. Exigimos que eles cumpram e fortaleçam seus compromissos, assumidos em nível internacional.
13. Promover o exercício da autogestão e autodeterminação dos povos indígenas, negros, quilombolas, camponeses e costeiros, permitindo o exercício da gestão pública baseada em sua própria visão normas e procedimentos; isto requer, entre outras coisas, a implementação de mecanismos adequados às novas formas de planejamento que garantam seus modos de vida, respeitando suas cosmovisões. Sem a autogestão territorial dos povos, não há futuro para a Amazônia, nem para o mundo. Exigimos que os Estados cumpram plenamente as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, o veredicto de 2015 de Kalina e Lokono pronunciado pela OEA deve ser aplicado pelo governo do Suriname. Finalmente, exigimos a autodeterminação da Guiana, ocupada pela França. Nossa Bacia Amazônica não estará completa até alcançarmos sua descolonização.
14. Rejeitamos as políticas públicas extrativistas dos governos que ameaçam a vida e a natureza. Exigimos o cumprimento do Acordo 169 da OIT, a assinatura, ratificação, respeito e implementação do direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado, que inclui o direito de veto devido a objeção de consciência cultural no âmbito da autodeterminação dos povos, e exigimos manter os hidrocarbonetos no subsolo e uma Amazônia livre de mineração.
15. Exigir dos governos a plena propriedade e garantia legal dos territórios dos povos e comunidades, incluindo o subsolo, para que tenham proteção permanente contra a extração de minerais e hidrocarbonetos, para que não violem nossa mãe terra, para cuidar dos espíritos da floresta e para assegurar o Bem Viver dos seres humanos e de todas as formas de vida.
16. Condenar e rejeitar a implementação de medidas coercitivas, como qualquer forma de bloqueio político, econômico, financeiro e diplomático contra qualquer país em nossa Bacia Amazônica, pois são ações políticas criminosas que afetam nossos povos.
17. Assumir a defesa radical dos direitos dos povos da Pan-Amazônia à educação, comunicação e saúde a partir de uma perspectiva popular, intercultural, comunitária, crítica e decolonial.
18. As mulheres da Pan-Amazônia estão comprometidas com a reinvenção e a construção coletiva da democracia que desejamos. Exortamos todos os povos e organizações da Amazônia a incluir em suas agendas ações que corrijam as desigualdades e as relações de poder que persistem e afetam nossas vidas, nossos corpos e nossos territórios. Esta articulação deve ser direcionada para incidir em espaços internacionais que possam fazer recomendações aos Estados a respeito da urgência de incluir ações concretas que respondam à transformação da violência que afeta as mulheres amazônicas e andinas.
19. Apoiamos fortemente as cartas dos Pré-FOSPAs realizados em cada país e as conclusões das Casas dos Saberes e Sentires (Casa da Mãe Terra, Casa da Resistência da Mulher, Casa dos Bens Comuns da Natureza, Casa dos Povos e Direitos Indígenas e Casa dos Territórios e Autogoverno).
20. Reafirmamos a importância das iniciativas de ação como instrumentos de mobilização para alcançar os objetivos do processo FOSPA. Só é possível gerar processos de transformação se nossas organizações na Pan-Amazônia se unirem e se articularem nestas ações.
21. Apoiamos o Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, que chegou em Belém em caravana após viajar pelos territórios Xingu e Carajás. Apoiamos sua afirmação de que a Amazônia é uma entidade viva e ameaçada, sujeita a direitos, à qual as empresas, em cumplicidade com os estados, declararam guerra. As comunidades indígenas, assentamentos, acampamentos, comunidades locais, tradicionais, camponeses, quilombolas, ribeirinhos, rurais e indígenas urbanos são os que estão na linha de frente deste enfrentamento, e seus direitos devem ser garantidos. Ao mesmo tempo devem ser destacadas as múltiplas iniciativas de restauração integral, moratória extrativista e transição ecológica promovidas pelas comunidades.
22. Somos Natureza e há mais de 37 países que reconhecem os direitos da Natureza em vários níveis, incluindo os direitos da Amazônia. No Brasil, quatro municípios aprovaram este reconhecimento e mais quatro estados estão debatendo, incluindo Belém, sede do X Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA).
Neste sentido, celebramos a criação e o lançamento da Frente Parlamentar Global pelos Direitos da Natureza, composta por deputados e deputadas indígenas e não indígenas de todo o mundo, que busca articular esta mudança de paradigma, o mais rápido e diretamente, com políticas públicas que reconheçam a Natureza como um sujeito de direitos.
E PROPOMOS AS SEGUINTES ACÇÕES:
23. Declarar o estado de emergência climática na região Pan Amazônica e zelar pelo seu cumprimento a fim de permitir sua restauração ativa e a proteção de sua biodiversidade, em coordenação com os povos amazônicos e avançar em direção a um novo paradigma de relacionamento com a natureza.
Os avanços rumo à uma mudança de paradigma serão nosso melhor legado. Isto exigirá a transferência de recursos significativos para a restauração e cuidado da Bacia Amazônica e a transformação do comércio internacional de commodities da economia regional, favorecendo a produção e comercialização de bens que são climaticamente compatíveis com o ecossistema amazônico, restringindo a exportação de carne, soja, madeira, minerais, hidrocarbonetos e derivados para os mercados da Europa, Ásia, América do Norte e outros.
24. Apoiar o veredicto do III Tribunal de Ética em defesa dos corpos e territórios das mulheres amazônicas e andinas, que continuará a se reunir e investigar os casos ali apresentados. Continuaremos a fortalecer este cenário de visibilidade e incidência internacional que permite focalizar os múltiplos impactos do sistema de discriminação nas vidas, corpos e territórios das mulheres, sendo a violência, em suas diversas manifestações, a que emerge como resultado do atual poder capitalista patriarcal, colonial e racista.
25. Promover a educação, a pesquisa e a comunicação como pilares dos processos de transformação nos territórios da região Pan-Amazônica, promovendo seus próprios cenários que qualificam as lutas e ações de incidência com os Estados, através da elaboração de mapeamentos e sistematizações de experiências transformadoras, populares, interculturais e comunitárias com ênfase pan-amazônica, incentivando a inter-aprendizagem, a promoção de estudos e a pesquisa-ação participativa e transformadora.
26. Assegurar o objetivo comum de desmatamento real zero e a promoção do tratado de não proliferação de combustíveis fósseis, deixando o petróleo no chão e caminhando para uma transição energética popular.
27. Fortalecer a iniciativa de ação em defesa dos corpos e territórios das mulheres amazônicas e andinas, como espinha dorsal de nossos esforços coletivos para responder à ofensiva do patriarcado, do fundamentalismo político e religioso, do capitalismo e do racismo, que afeta mais as mulheres indígenas, negras e camponesas que vivem na Bacia Amazônica.
A partir daí, continuaremos a tornar essas realidades visíveis e a defender, através de campanhas e mobilizações em defesa da vida das mulheres amazônicas e andinas e da rejeição de todas as formas de discriminação e violências contra seus corpos e territórios.
28. Apoiar a realização de uma reunião amazônica sobre autonomia e autogoverno; apoiar a criação de guardas indígenas, quilombolas e camponeses e outras comunidades tradicionais, para a autoproteção dos territórios, viabilizando sua efetiva sustentabilidade.
29. Promover articulações para realizar campanhas permanentes, locais e globais:
– Para ajudar a conter a exportação de produtos que promovem a poluição e o desmatamento da Amazônia.
– Atacar a fome, promovendo a segurança alimentar na Pan-Amazônia.
– Zelar pela vida e proteção dos defensores da natureza, denunciando e enfrentando, em todos os países da Pan-Amazônia, sua perseguição, criminalização, acusação, ameaças, desaparecimentos e assassinatos pelos novos traficantes e predadores das florestas, máfias e assassinos contratados que afetam a vida dos povos e outras formas de vida. A solidariedade entre nossos povos deve ser efetiva e afetiva com eles; nossa defesa deve ser sustentada para que os Estados garantam suas vidas a partir da ratificação e cumprimento do Acordo de Escazú, condenando os perpetradores e honrando os mártires.
– Para assegurar a autodeterminação da Guiana franco-colonizada.
30. Promover o comércio de bens que são produzidos em sistemas compatíveis e em harmonia com a Amazônia. Nossas alternativas incluem a agroflorestação ecológica, a agricultura familiar camponesa e o manejo comunitário da floresta, para substituir a economia de destruição da Amazônia por uma economia florestal.
31. Impulsionar as Assembleias da Terra para fazer frente à captura corporativa e o fracasso das conferências da ONU sobre clima, biodiversidade e sistemas alimentares, fornecendo assim respostas eficazes à crise climática e ecológica.
32. Criar novas formas de integração regional, com base na consolidação de um bloco de países amazônicos que permita avançar na direção do pós-extractivismo na Amazônia.
33. Exigir o compromisso dos Estados na construção de mecanismos regionais que garantam o respeito pelo livre trânsito dos habitantes da Bacia Amazônica em todos os países que a compõem.
34. Apoiamos a resolução dos juízes do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza que propôs a criação de um Tribunal dos Direitos da Natureza no Canadá, de onde vem o capital do projeto Belo Sun, que querem desenvolver na bacia do rio Xingu, a fim de tornar visível e denunciar na fonte como seus recursos estão sendo utilizados para a destruição da Amazônia.
35. Apelamos para a diversidade das organizações que trabalham pela defesa e cuidado integral da Amazônia para continuar a fortalecer suas capacidades transformadoras nos processos de articulação em torno das Iniciativas de Ação da FOSPA.
A FOSPA continuará a tecer alianças com diferentes movimentos sociais ao redor do mundo a fim de expandir ações para superar a crise humanitária, ambiental e climática, e para influenciar órgãos governamentais internacionais a adotarem políticas que sejam consistentes com este propósito global.
Em 31 de julho de 2022,
Campus da Universidade Federal do Pará.
Belém do Pará, Brasil,
Capital da Resistência, Tincheira dos Povos.
Tecer o Esperançar nas Amazônias