Especial COP 30: Como substituir os combustíveis fósseis por energia limpa ininterrupta

Carlos Nobre e Flaminio Levy Neto

Via UOL

Na década de 1970, o mundo enfrentou sua primeira crise do petróleo. Naquela época, os combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural) forneciam cerca de 80% da energia consumida globalmente. Hoje, apesar da grande expansão das energias eólica e solar fotovoltaica, esse percentual caiu muito pouco, situando-se em torno de 75%.

As fontes fósseis, apesar de contribuírem fortemente para o aquecimento global, além de produzirem poluição e chuva ácida, ainda dominam a matriz energética. Por quê?

Uma das razões é que carvão, petróleo e gás natural são fontes que garantem geração de eletricidade ininterrupta, 24 horas por dia, sete dias por semana (24/7). Já as fontes renováveis, como a eólica e a solar, são intermitentes. Em regiões favoráveis, como o Nordeste do Brasil, a energia eólica gera eletricidade em apenas 43% das horas do ano, enquanto a solar, em cerca de 22%.

Isso significa que, sem avanços tecnológicos significativos, essas fontes continuarão sendo complementares e dificilmente substituirão a principal fonte atual, a menos que seja construída uma "global supergrid" (super-rede global) de ultra-alta voltagem, conectando os países produtores de energia eólica e solar fotovoltaica em todos os continentes. Embora essa solução pudesse até contribuir para a paz mundial, seu custo seria de dezenas de trilhões de dólares.

Para substituir as fontes fósseis de vez e contribuir para desacelerar a gravíssima crise ambiental atual, uma nova fonte energética principal deverá ser: renovável, abundante em várias regiões ao redor do planeta e capaz de operar no regime 24/7.

A Otec (conversão de energia térmica oceânica) como solução

Há mais de uma década, usinas piloto no Havaí, Okinawa, Índia e Malásia operam gerando eletricidade de forma contínua a partir da diferença de temperatura, igual ou superior a 20 ºC, entre as águas superficiais aquecidas pelo sol e as águas profundas, que permanecem frias. Trata-se da tecnologia Otec (ocean thermal energy conversion, ou conversão de energia térmica oceânica em português).

Os oceanos da faixa tropical, de ~20ºS até ~20ºN, funcionam como gigantescos coletores e armazenadores de energia limpa e, diariamente, absorvem radiação solar equivalente a 170 bilhões de barris de petróleo.

Como funciona uma usina Otec de ciclo fechado híbrida?

A água oceânica superficial, aquecida pelo sol, é mais leve, permanece na superfície e abastece o evaporador da usina. Enquanto a água fria e densa fica estabilizada no fundo dos oceanos, e é bombeada, de uma profundidade de cerca de 1 quilômetro, ao condensador. A usina utiliza um ciclo termodinâmico tipo Rankine Orgânico, com amônia como fluido de trabalho, e produz eletricidade limpa 24/7. A água quente vaporiza a amônia, e o vapor gerado aciona um turbo gerador que produz eletricidade. Em seguida, a amônia é resfriada e condensada pela água fria profunda, retornando ao estado líquido e reiniciando o ciclo. Uma Otec híbrida tem dispositivos adicionais, e também utiliza as águas, morna a cerca de 22 °C, e fria a cerca de 9 °C, das saídas do evaporador e do condensador, respectivamente.

Os principais fatores a serem considerados na escolha de um local para uma usina Otec são:

1. Diferença de temperatura de pelo menos 20 °C entre as águas superficiais e as profundas.

2. Distância da costa até a profundidade de 1 km, que determina a viabilidade logística.

3. Proximidade de mercados consumidores de eletricidade.

Viabilidade no Brasil

No Brasil, a diferença de temperatura de pelo menos 20 °C ocorre do norte do Espírito Santo até o Amapá. Entretanto, do sul da Bahia ao norte do Espírito Santo e do norte do Rio Grande do Norte ao Amapá, a plataforma continental é muito larga e a distância para se atingir a profundidade de 1 km é de várias dezenas de quilômetros, tornando a logística para operar uma usina Otec menos favorável.

Com isso, as condições mais vantajosas vão de Salvador até Natal. E, tendo em vista a proximidade de mercados consumidores, as cidades com maior viabilidade para se implantar usinas Otec são Salvador, Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa e Natal.

O arquipélago de Fernando de Noronha é um candidato ideal para a primeira usina Otec no Brasil. Atualmente, cerca de 90% da eletricidade da ilha vem de geradores a diesel, cujo alto custo é agravado pela logística de transporte do combustível. Além disso, a profundidade de 1 km pode ser atingida a apenas 4 km da costa, tornando a implantação da tecnologia mais viável.

Benefícios adicionais das usinas Otec de ciclo fechado híbrida

Além de fornecer eletricidade limpa e contínua, as usinas Otec oferecem outras vantagens:

Água dessalinizada, conectando-se uma câmara de vácuo na saída do evaporador

Água de altíssima pureza e rica em óxidos de fósforo e nitrogênio, da saída do condensador, excelente para maricultura e regeneração oceânica

Água fria para SWAC (sea water air conditioning, ou resfriamento com água do oceano, em português), que reduz em 90% o consumo de eletricidade em relação a aparelhos convencionais de ar-condicionado

Hidrogênio verde (H2)

Na produção de hidrogênio (H2) por eletrólise da água, é essencial que o eletrolizador - um dispositivo complexo e fundamental - opere de forma contínua, ou seja, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Para isso, o sistema precisa ser abastecido com eletricidade despachável. No Brasil, fontes renováveis como a eólica e a solar fotovoltaica podem gerar energia, mas são intermitentes. Isso exige uma fonte adicional 24/7 para suprir a demanda nos períodos sem vento ou sol.

As usinas Otec eliminam essa limitação, pois geram eletricidade de forma contínua e previsível. Além disso, oferecem uma vantagem estratégica: a produção de hidrogênio ocorre offshore, reduzindo riscos associados ao armazenamento e manuseio de um gás altamente inflamável.

A disponibilidade de eletricidade 24/7 e de água potável ajudaria a despoluir as capitais do Nordeste e fortaleceria o SIN (Sistema Interligado Nacional), reduzindo o risco de apagões.

A partir da água dessalinizada de uma usina Otec pode-se obter também água potável, que é uma carência em grandes centros urbanos. Com o aquecimento global e as ondas de calor, ter à disposição um sistema de SWAC permite obter uma significativa economia de energia. E, finalmente, a ascensão artificial de uma corrente de água pura e rica em nutrientes contribuirá para fertilizar e regenerar as superfícies dos oceanos que atualmente estão desvitalizadas, principalmente perto das praias nas capitais entre Salvador e Natal.

Flaminio Levy Neto é engenheiro mecânico e mestre em Engenharia pelo ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Ph.D. em engenharia, que lecionou no ITA e na UnB (Universidade de Brasília) e já publicou três livros. Foi consultor ad hoc da CAPES e do CNPq. Atualmente atua como ad hoc na FACEPE.