Estado Espanhol: qual o panorama da esquerda após o fim da hipótese Podemos? 

- Entrevista com Julia Camara e Pablo Rochela

Do levante dos indignados em 2011, passando pelo surgimento do Podemos e as mobilizações pela independência da Catalunha, a Espanha foi uma vitrine para a esquerda mundial do que poderia ser considerado a emergência de uma nova esquerda pós-crise de 2008. Nos últimos anos, contudo, tem se destacado pelo fortalecimento da antítese do projeto que irrompeu na praça Porta do Sol em 2011. Trata-se do surgimento do Vox, partido de extrema-direita com ampla influência internacional, e do crescimento do direitista Partido Popular, com um discurso cada vez mais conservador. Julia Camara, militante do Anticapitalistas, afirma que o ciclo político marcado pelo surgimento do Podemos e pela aposta na política municipalista de esquerda se encerrou, dando lugar a um processo de direitização da sociedade espanhola.

Julia Cámara e Pablo Rochela são militantes do Anticapitalistas, organização política ecossocialista ligada à IV Internacional no Estado Espanhol. Julia forjou sua militância política no movimento estudantil no contexto do 15M (Movimento dos Indignados) e teve um papel ativo na coordenação internacional das greves feministas de 2017 a 2020. Atualmente vive em Zaragoza e trabalha no movimento feminista. Faz parte da redação de Viento Sur. Pablo foi parte da primeira executiva do Podemos em Aragão e trabalhou no movimento pelo direito à moradia digna. Vive em Zaragoza e é sindicalista da CGT. Faz parte do conselho de redação do Poder Popular.

Em conversa com o Radar Internacional, Julia e Pablo nos contaram um pouco suas reflexões sobre o cenário em que se desenvolveram as últimas eleições na Espanha e o panorama atual da esquerda no país. Confira.

 

Radar Internacional: Gostaríamos de começar perguntando como vocês caracterizam a situação política atual do Estado Espanhol frente a indefinição das últimas eleições em relação a formação de governo e também ao crescimento da direita e da extrema-direita.

Julia Camara: Primeiro, uma precisão. A extrema direita no Estado Espanhol, personificada eleitoralmente pelo Vox, não é, e aparentemente não pretende sê-lo, uma corrente política que organiza militância de rua. A extrema direita está vendo um crescimento de sua filiação eleitoral, mas isto não está correspondendo com uma militância de combate de rua. Isso é importante porque acredito que é uma diferença com o Brasil e talvez com outros países da América Latina. É claro que o crescimento eleitoral lhes dá mais legitimidade pública, com a qual podem tornar-se mais perigosos nas ruas, mas não existe a presença de uma militância organizada na rua.

Depois, nós viemos de um ciclo político marcado pelo que foi a hipótese Podemos e, posteriormente, diversas hipóteses que bebiam da experiência do Podemos. Fundamentalmente, o que foi chamado de ciclo municipalista, que foi uma tentativa de ganhar as prefeituras de grandes cidades. Esse ciclo passou. Podemos está em uma crise que podemos considerar quase definitiva. Atualmente, a situação em termos gerais é de profunda desorientação. É uma situação de cansaço, de esgotamento, onde muitas camadas ativistas abraçaram a proposta de Podemos dos municipalismos e posteriormente de Unidas Podemos, o que foi um progressivo esvaziamento da política, onde o embate eleitoral tornou-se o único fim. Então depois do triunfo eleitoral, não resta programa nem organização nas bases. Isso é um desastre.

A organização que está sendo construída agora, não por nossa parte, mas dentro da esquerda em termos amplos eleitorais, é Sumar. Sumar é uma triste imitação ou uma triste sequela do que foi o Podemos. É infinitamente mais à direita, sem nenhuma ambição transformadora, cuja hipótese explícita é formar governo com o Partido Socialista. Além disso, está contribuindo com um discurso de que não é possível outra coisa. É um contexto muito problemático porque educa politicamente as pessoas em um horizonte de impossibilidade e bloqueia muitas oportunidades de tentar rupturas, de dar saltos e de sair defendendo medidas de transformação.

Atualmente, depois das últimas eleições gerais, não é certeza se é possível formar governo [a entrevista foi realizada antes da eleição da presidência da Câmara e do Senado espanhóis], porque o que se conseguiu é que a direita não formará governo, mas a soma numérica do resto dos deputados é muito apertada. Então não basta o Partido Socialista e Sumar, são necessárias todas as outras organizações que não são explicitamente de direita para poder formar governo. Isso é muito complicado, porque muitas delas também não são explicitamente de esquerda. É uma diversidade importante porque são organizações que têm um ou dois deputados. Então é necessário somá-las todas e as negociações são muito difíceis.

Existe um voto contra a extrema direita, muito pragmático. Muitas pessoas de esquerda, posso falar por mim mesma, votaram na Sumar, mesmo tendo um programa bastante limitado, com vários acordos políticos com empresários e com uma série de medidas vendidas como positivas, mas que objetivamente beneficiam apenas as classes dirigentes. Mas era a única possibilidade de voto em um contexto de possível formação de governo com a extrema-direita e era importante evitar isso. Claro, muita gente não organizada politicamente votou também no Partido Socialista, que é a maior força politica que não é explicitamente de direita, é um tipo de social-liberalismo, e que não vai pactuar com a extrema-direita. Há uma concentração de votos contra a extrema-direita.

Nosso desejo é que se forme governo o antes possível. Um governo que não é o nosso não é o que gostaríamos, mas é necessário que se forme governo e que não tenha repetição eleitoral para podermos começar a fazer trabalho político fora da agitação eleitoral, porque é um contexto que dificulta fazer trabalho político de esquerda. E cada repetição eleitoral e cada concentração de voto de medo contra a extrema-direita piora as condições para poder fazer frente à extrema-direita, porque claramente são as políticas sociais-liberais que permitem que a extrema-direita cresça. As pessoas estão insatisfeitas, então acabam sendo atraídas pela extrema-direita.

Por exemplo, nós desde Anticapitalistas, pedimos voto explicitamente apenas para as organizações que entendemos que são as duas únicas que se apresentam nas eleições com um programa de independência de classe, que são Adelante Andalucia, onde nós participamos, e a CUP – Candidaturas de Unidad Popular – na Catalunha. A CUP é um partido de esquerda anticapitalista catalã, independentista. Eles se consideram soberanistas, porque buscam soberania para decidir tudo, não apenas a questão nacional, como também econômica, o gênero etc, por isso são soberanistas. Nós temos algumas alianças com eles e são um partido que tem muitos representantes públicos na Catalunha, em muitas prefeituras e câmaras municipais, é um partido muito interessante. Pedimos votos explicitamente apenas para Adelante Andalucia e para a CUP na Catalunha, mas os resultados da esquerda foram muito ruins no geral, tanto para Adelante Andalucia e para a CUP, como também para outras correntes.

RI: Como as questões nacionais, como a catalã e a basca, interferiram nestas eleições?

JC: Na nossa análise, há um fechamento do ciclo político anterior e também uma derrota política das hipóteses desse ciclo. Isso também é, na Catalunha concretamente, uma derrota da hipótese do que foi o proces, que foi a tentativa de independência, com um referendo. Houve mobilizações absolutamente massivas em 2017, durante a tentativa de fazer um referendo pela independência da Catalunha, que foi proibida pelo Estado Espanhol, que por sua vez mandou as forças de segurança fecharem os colégios eleitorais e apreenderem as urnas. Aí entramos em uma crise que realmente poderia ter desembocado em uma situação de crise pré-revolucionária na Catalunha.

A direção do proces era da burguesia de centro, com alguns elementos de direita moderados, mas realmente nacionalistas catalães. Eles não imaginavam que sua iniciativa chegaria tão longe. Então eles apostam no referendo como uma confrontação ao Estado Espanhol e logo se deparam com o apoio de toda a esquerda catalã e com milhares de pessoas nas ruas. Havia auto-organização popular para defender os colégios eleitorais, para evitar a entrada do exército e da polícia. Era uma situação realmente muito potente, mas a direção do proces foi covarde, afinal era uma direção da burguesia, que não tomou as medidas que teriam sido necessárias para levar o processo adiante. No fim, houve uma intervenção por parte do governo nacional e o balanço feito posteriormente por muita gente é um balanço negativo. Há também um fechamento desse ciclo e um fracasso da hipótese do que foi o proces, então as correntes nacionalistas perderam muitos votos.

Pablo Rochela: Houve duas fases nesse processo. Na Catalunha, o processo inicial foi de confrontação com o Estado Espanhol. Essa confrontação, que não foi violenta, foi absolutamente pacífica, trazia o lema da democracia, da independência da Catalunha, com a convocatória do referendo de 1 de outubro de 2017. Houve uma repressão brutal do Estado Espanhol pelo simples fato de as pessoas quererem votar, o que acabou reforçando o sentimento de solidariedade com o independentismo, tanto na Europa como no resto do mundo. No entanto, dentro do Estado Espanhol, prevaleceu o apoio à repressão, porque se considerava que a Catalunha não poderia realizar esse processo sozinha. E então, com exceção de Anticapitalistas e de uma ou outra organização, a maior parte da esquerda espanhola teve uma posição um pouco ambígua. Por um lado, apoiava o direito de autodeterminaçao dos povos, mas por outro nao aceitava que fosse uma decisao unilateral das forças catalãs convocar um referendo que o Estado Espanhol dizia que era ilegal. Então, essas forças de esquerda reforçaram que o referendo era ilegal e que deveria ser feito de outra maneira. Havia essa ambiguidade de apoiar, mas não desta maneira.

JC: Existe uma tensão importante no Estado Espanhol com os nacionalismos chamados periféricos, que tem esse nome porque estão na periferia geográfica. Existe uma tensão no Estado Espanhol e na esquerda espanhola com esses nacionalismos porque historicamente as duas regiões onde a participação política da sociedade civil é mais forte são a Catalunha e o País Basco, que são também regiões mais ricas em comparação ao restante do país. Foram os dois principais núcleos da industrialização e os dois principais pólos de migração interna, sobretudo a Catalunha. Isso historicamente produziu uma tensão entre a esquerda do resto do país e as esquerdas catalã e basca, na qual a esquerda dos outros territórios diz que os nacionalismos são ideologias burguesas, que são egoístas, que não querem pagar impostos etc. Do outro lado, as esquerdas basca e catalã acusam as outras esquerdas de serem “espanholistas”, de apoiarem a supremacia espanhola contra as suas identidades, o que em muitas ocasiões é verdade, tenho que dizer. O Partido Comunista, por exemplo, tem um pouco essa ideia da terceira internacional de que “o proletariado não tem pátria”, com a qual “eu te nego a possibilidade de ter a sua e te imponho a minha”.

PR: Uma vez terminada essa fase de confrontação direta entre o proces catalão e o Estado Espanhol, continuou a repressão, com a prisão de pessoas envolvidas no proces. Foram julgamentos infames, em que não se respeitaram os direitos básicos dos acusados. Alguns eram políticos eleitos na Câmara Catalã, outros eram representantes da sociedade civil. Em todos os casos, houve penas de prisão.

JC: Das direções. As pessoas que foram presas pertenciam às direções políticas, isso é importante. Entre elas, as direções políticas da CUP, que foi a força anticapitalista dentro do proces. Então nesse momento que o movimento tinha alcançado um caráter realmente de massas, com um programa super avançado, muitos dirigentes se exilaram para não serem presos. Anna Gabriel, por exemplo, companheira da CUP, se exilou na Suíça, que é um país que não tem convênio de deportação. O presidente da Catalunha da época se exilou na Bélgica. Isso é delirante.

RI: Nesse novo ciclo que você menciona, me parece que o espaço ocupado pelo Podemos foi assimilado pelo PSOE, por Sumar e também pela direita. Ou seja, a esquerda radical não é quem está ganhando espaço com a crise do Podemos. Qual o panorama da esquerda espanhola hoje? Quais as possibilidades de atuação da esquerda radical?

JC: Eu acredito que, por um lado, há uma direitização generalizada da sociedade. A direita que existe hoje está mais à direita do que há dez anos atrás. Também a ultra-direita está mais à direita. O Partido Popular é explicitamente mais agressivo do que há dez anos. A esquerda também está mais à direita. Acho que isso é importante para entender as dificuldades. Acredito que existe um sentimento comum de resignação, de que não é possível outra coisa. Muitas das pessoas que estavam no Podemos, no primeiro Podemos, estão nas suas casas, sem nenhum tipo de atividade de participação política e acho que ainda vão levar muitos anos para que essas pessoas reúnam forças para voltar a se envolver politicamente, porque a derrota foi grande. Mas também é verdade que uma parte não desprezível numericamente foi para o Sumar, porque também viveu um processo de direitização, de possibilismo, de acreditar que o único possível é isso. Eu acho que essa tendência é muito forte e isso é um fator importante.

Para nós, é uma tragédia a não existência de uma possibilidade eleitoral claramente de esquerda ou pelo menos com um programa medianamente avançado, mas plural, onde podemos ter uma participação. Isso para nós é uma lástima dentro do contexto atual. Mas também entendemos que há algumas linhas limites com Sumar, que tem a ver com suas posições imperialistas. A primeira delas é que Yolanda Diaz se manifestou a favor da OTAN e para nós isso é inadmissível. Obviamente sua política econômica também, mas isso é como uma linha limite com a qual não se pode trabalhar. A aprovação do orçamento praticamente de guerra com o tema da Ucrânia, a permissão da entrada da OTAN na Espanha, a colaboração, o envio de armas à Ucrânia.

PR: Eu acho que a direção de Sumar não defendeu explicitamente o envio de armas e o apoio à OTAN. O que acontece é que em um contexto tão eleitoral como o de agora, sabem que essa posição pode ser negativa e pode provocar perda de votos e, por essa razão, preferem ficar em equilíbrio. Não reivindicam um posicionamento contra nem a favor. Uma questão absolutamente eleitoral. Mas no fim, essa posição os torna favoráveis à OTAN e ao envio de armas.

JC: Em relação à esquerda radical, a situação é complicada por isso. Existe uma direitização generalizada. Nós estamos experimentando alianças com alguns setores organizados. Primeiro, com algumas áreas do sindicalismo, sobretudo com a Confederação Geral do Trabalho, a CGT, de caráter anarcosindicalista. Também com Ecologistas em Ação, que é a principal organização ecologista que existe hoje na Espanha. E, por fim, com o movimento em defesa da moradia. Em Madri, Barcelona e em outros lugares, está surgindo um movimento muito forte de sindicatos de inquilinos. Pablo participa do sindicato em Zaragoza, mas tem força especialmente em Madri e em Barcelona. Por exemplo, em Barcelona, também temos experiências de colaboração interessantes.

Então a nossa hipótese é que devemos ir dando passos em direção a reconstrução de um bloco de classe, em busca de uma unidade política das lutas. Não uma unidade organizativa, mas sim proporcionar às lutas um programa político. Isso se faz obviamente de maneira coletiva, tentando alianças com diferentes setores, que podem funcionar como vanguardas amplas do movimento. Obviamente, com um horizonte de estarmos atentos às possibilidades de quando possa ser possível uma ruptura no eleitoral. Também tentamos oferecer formação e organizar reuniões com ativistas de diversos espaços sociais, tentando dar forma a um programa comum.

RI: Dentro desse contexto da esquerda espanhola, também nos chama muito a atenção o movimento feminista, que congrega massividade e radicalidade, principalmente durante as greves do 8M. Qual o papel do movimento feminista no cenário politico espanhol?

JC: Também está um pouco em um momento de crise e de se repensar. O governo de coalizão entre o Partido Socialista e Podemos, Unidas Podemos, teve pela primeira vez um Ministério da Igualdade. A Ministra da Igualdade, Irene Montero, que é do Podemos, foi a pessoa mais violentamente atacada, tanto pela extrema-direita e pela direita tradicional, como até mesmo pelo Partido Socialista. Por ser uma mulher jovem, com 35 anos de idade, ser ministra e ainda por cima, é a companheira do Pablo Iglecias. Então claro que foi alvo de muitos ataques. Ela conduz uma política com algumas coisas interessantes, mas também com muitos limites e muitas coisas problemáticas.

Fundamentalmente, houve duas grandes leis lançadas pelo Ministério. Uma é a lei de direitos trans e a outra é a lei contra violências sexuais, que é conhecida como a “lei do só o sim é sim”. São duas leis que provocaram muito debate público e que receberam muitíssimos ataques. Isso fez com que o movimento feminista se concentre ao redor do Ministerio, para defender as leis e o proprio Ministerio. Como ha uma polarização muito forte, existe uma defesa muito forte, por parte do movimento feminista, da Ministra da Igualdade, do Ministerio e das leis.

A lei de direitos trans tem alguns limites de importância. Por exemplo, existe uma ausência das pessoas não binárias. Mas é uma lei importante e nós saímos às ruas para defendê-la fortemente. Já a “lei do só o sim é sim”, a lei contra violência sexual, é mais problematica, porque nós entendemos que é uma lei punitivista. Digamos que o grande exito dessa lei foi a unificação de dois delitos: estupro e violação sexual. Na Espanha, existia uma diferença entre esses dois delitos. Se não houvesse penetreção, nem violencia demonstravel, nao era considerado estupro. Para nós, isso era muito problemático.

Houve um caso muito mediático, que ficou conhecido internacionalmente como o caso “La Manada”. Ocorreu em 2016, em uma festa de Pamplona (Sanfermines), houve o estupro coletivo de cinco homens sobre uma garota. Foi um estupro muito violento, ela estava inconsciente, foi gravado, o video foi difundido etc. O juiz não os condenou por estupro, mas por agressão sexual. Houve uma mobilização massiva em resposta a isso, que foi como a origem da “lei só o sim é sim”. Então a raiz de tudo isso, existe uma demanda do movimento feminista para acabar com a diferença de delitos e para que se considere tudo como estupro. E um pouco o que o Ministério faz é tentar dar uma resposta a essa demanda.

O movimento feminista tem se nucleado muito fortemente em torno do Ministerio e isso provocou tambem uma desorientação importante do movimento. Em Madri, muitas companheiras que estavam nas direções informais do movimento, foram trabalhar no Ministério. Algumas companheiras não vão concordar totalmente comigo, mas eu considero que, pelo menos em Madri, existe uma relação quase orgânica entre o movimento e o Ministério, o que obviamente é muito problemático. E entre isso e a pandemia, agora o movimento feminista estó buscando se reorientar, pensar em que direção vai daqui pra frente.