Via Jacobin AL
A greve nacional em curso no Equador abre uma fissura no muro de medo que o presidente Daniel Noboa ergueu com sua retórica de guerra interna. Sua força reside em ter devolvido ao povo a capacidade de nomear a violência e de politizar a (des)obediência.
Na madrugada de 8 de dezembro de 2024, uma patrulha militar interceptou quatro crianças negras que jogavam futebol no setor de Las Malvinas, ao sul de Guayaquil. Horas depois, elas desapareceram. Dias mais tarde, na véspera do Ano Novo, seus corpos foram encontrados carbonizados nas instalações militares de Taura. Constatou-se que Ismael, Josué, Neemias e Steven haviam sido torturados por efetivos das Forças Armadas, submetidos a espancamentos e simulações de execução.
O governo de Daniel Noboa oscilou entre declará-los “heróis nacionais" durante seu desaparecimento e guardar silêncio após sua identificação, lançando posteriormente uma campanha oficial de justificação e estigmatização das vítimas e de suas famílias. O ministro da Defesa, Giancarlo Loffredo, passou de negar os fatos a reconhecer a detenção, oferecendo desculpas públicas por ordem judicial enquanto ameaçava punir a juíza que exigia justiça.
Desde os primeiros dias, o caso foi atravessado por narrativas racistas e classistas difundidas em redes e mídias privadas que desumanizaram as vítimas, culparam suas famílias e legitimaram a violência estatal sob o guarda-chuva do “conflito armado interno” decretado por Noboa em janeiro de 2024. Aquela declaração, sem base jurídica sólida alguma, marcou o início de um regime de exceção permanente e de violações sistemáticas de direitos humanos: detenções arbitrárias, torturas, execuções e desaparecimentos com impacto diferenciado sobre jovens negros e pobres.
De acordo com a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, o Comitê Permanente de Defesa dos Direitos Humanos e a própria Procuradoria-Geral do Estado, desde então foram registradas mais de 40 desaparecimentos, 25 execuções extrajudiciais e mais de 100 assassinatos —«objetivos neutralizados», segundo o governo—, entre os quais crianças e adolescentes. Esses organismos também denunciam a opacidade judicial, torturas, detenções sem garantias e a estigmatização de defensores dos direitos humanos, em um país onde a exceção se tornou a forma de governo.
Quando no Equador se acreditou que este aberrante crime de Estado tinha sido o último degrau na ascensão do autoritarismo neoliberal militarizado que hoje governa o país, a greve nacional iniciada em 22 de setembro — que entra em sua quarta semana de realização — trouxe cenas que o superam. A imagem de um corpo infantil reduzido a despojo em nome da ordem transformou-se na partitura que hoje ressoa em cada gás lacrimogêneo disparado contra os manifestantes da greve nacional.
Entre os gritos de “Fora Noboa, fora” e “Não somos terroristas”, e o rugido metálico dos comboios militares blindados, o eco daquelas crianças volta como advertência: assim começou a guerra interna: não contra o crime organizado, mas contra o povo despojado de seus direitos fundamentais.
Em 28 de setembro de 2025, já no contexto da terceira greve nacional em seis anos, o líder comunitário indígena Efraín Fuérez foi assassinado por efetivos das Forças Armadas equatorianas durante uma mobilização pacífica no cantão Cotacachi, província de Imbabura (setor que concedeu o voto a Noboa nas duas últimas eleições). A imagem de seu corpo estendido no chão enquanto um companheiro tenta socorrê-lo e é agredido e ameaçado por militares tornou-se o símbolo do novo rosto interno da guerra: uma política belicista que identifica os manifestantes como inimigos.
Diversas testemunhas e organizações de direitos humanos confirmam que Fuerez, membro de uma comunidade kichwa, recebeu disparos letais no tórax enquanto as tropas despejavam uma via que havia sido bloqueada em protesto contra o decreto que eliminou os subsídios aos combustíveis e traiu as promessas de campanha.
Embora os manifestantes não portassem armas, o governo classificou o fato como um “confronto”, inserindo sua morte no relato oficial do terrorismo interno. A CONAIE, a Aliança de Organizações pelos Direitos Humanos e o CDH de Guayaquil denunciaram o assassinato como uma execução extrajudicial e exigiram a punição dos responsáveis, afirmando que este crime exemplifica a repressão sistemática e o uso ilegítimo da força militar contra o protesto social.
Dias depois, na madrugada de 5 de outubro, forças combinadas da Polícia e do Exército invadiram Otavalo, detendo arbitrariamente doze camponeses, jovens e líderes comunitários. Acusados de “terrorismo” e “associação ilícita”, foram transferidos para prisões de segurança máxima. Com essas detenções exemplares, o regime enviou uma mensagem clara: protestar é um crime, e seu castigo é o isolamento – a pedagogia autoritária de um Estado que governa com base no medo.
O assassinato das quatro crianças de Las Malvinas e de Efraín Fuérez, juntamente com os desaparecimentos e detenções arbitrárias, não são fatos isolados nem efeitos colaterais de uma guerra interna — inventada —, mas sim o resultado de decisões deliberadas do poder político. Expressam a deriva autoritária e militarizada do Estado sob um regime que reproduz o que os cientistas políticos dos anos setenta denominaram «Estado cívico-militar», forma característica que adotaram as ditaduras do Cone Sul.
Aquelas regimes buscavam restaurar o controle oligárquico e garantir a acumulação por espoliação mediante a despolitização social, a exclusão das organizações populares e a institucionalização do autoritarismo (supressão de liberdades, censura, perseguição a sindicatos e movimentos sociais, desaparecimento e assassinato sistemático de pessoas) sob a Doutrina de Segurança Nacional, na qual o inimigo era o próprio povo. Quarenta anos depois, o Equador de Noboa repete esse roteiro.
Crise estatal e neoliberalismo militarizado
A atual crise estatal equatoriana tem suas raízes em um processo de desmantelamento institucional iniciado durante o governo de Lenín Moreno (2017-2021). Sob o discurso e com o objetivo de “descorreizar” o Estado, Moreno reverteu as conquistas sociais do ciclo progressista e restaurou o poder das elites econômicas. A consulta popular de 2018 e a Lei de Fomento Produtivo abriram caminho para a remissão de dívidas empresariais, a subordinação do Estado às elites econômicas crioulas e ao capital financeiro internacional e a proscrição política do correísmo como força política.
Esta “corporativização ascendente" aprofundou-se a partir do acordo com o FMI em 2019, que consolidou o ajuste neoliberal: redução dos gastos públicos, flexibilização das leis trabalhistas e eliminação de subsídios. A greve indígena e popular de outubro de 2019 revelou o alcance desta restauração: uma resposta estatal violenta que resultou em mortos, centenas de feridos e detidos. A democracia foi sacrificada em nome da estabilidade fiscal e da obediência ao mercado.
O sucessor de Lenín Moreno, Guillermo Lasso (2021-2023), aprofundou esse esvaziamento institucional sob uma coalizão anticorreísta que governou por meio de decretos e estados de exceção permanentes. Entre a crise carcerária, a expansão do narcotráfico, o aumento da taxa de homicídios e a perda de legitimidade, o Estado dissolveu-se em sua própria impotência.
Nesse vácuo emergiu Daniel Noboa em 2023, jovem representante da nova direita empresarial pertencente à família mais rica do país, que converteu a insegurança no núcleo da governabilidade. A declaração via decreto do “conflito armado interno" no país e a aliança aberta com as Forças Armadas consolidam um regime cívico-militar que combina neoliberalismo e militarização: ajuste econômico com repressão e suspensão de direitos. O Estado já não se concebe como garantidor do bem comum, mas como aparelho de guerra interna.
Nesse sentido, o governo de Noboa representa a fase superior do neoliberalismo autoritário, onde a política se subordina à lógica do medo e os interesses oligárquicos são protegidos mediante a exceção. A chegada de Daniel Noboa ao poder em novembro de 2023 aprofunda a crise estatal equatoriana, a normalização do regime de exceção e a consolidação da deriva autoritária e militarista. Se durante o breve governo de Guillermo Lasso já se vislumbravam os sinais de um Estado governado pela emergência —repressão seletiva, uso discricionário da força e paralisia institucional—, com Noboa essa tendência se institucionaliza, dando lugar a um “regime cívico-militar”.
Na campanha das eleições antecipadas de 2023, o jovem empresário construiu um discurso despolarizador e dialoguista, prometendo “unidade nacional" e moderação econômica. No entanto, apenas dois meses após assumir o cargo, reativou a antiga fratura correísmo-anticorreísmo como eixo de legitimidade política, reinstalando a lógica do inimigo interno e a perseguição judicial e midiática como instrumentos de governo.
O episódio que marcou definitivamente o giro de seu governo foi a invasão da Embaixada do México, em 5 de abril de 2024, para deter o ex-vice-presidente (do governo de Correa) Jorge Glas, então asilado político. Este ato sem precedentes violou o direito internacional e mostrou até que ponto o Executivo concebia o conflito político como uma guerra.
Mas o ponto de inflexão já havia chegado em janeiro de 2024, quando, após uma escalada de violência organizada nas prisões e nas ruas, Noboa declarou por decreto a existência de um 'conflito armado interno', estendeu o estado de exceção a todo o território nacional e concedeu faculdades extraordinárias às Forças Armadas. O medo social produzido pelos fatos e amplificado pela mídia permitiu que amplos setores aceitassem essa narrativa: ou se estava com o governo ou se era cúmplice do narcotráfico. Assim, a segurança se tornou a nova linguagem da obediência.
Sob o marco do conflito armado interno, o governo consolidou a suspensão permanente de direitos e transferiu para o âmbito militar a gestão da vida civil. A consulta popular de abril de 2024 referendou esta política ao aprovar, em nove de onze perguntas, a ampliação das prerrogativas das Forças Armadas e do Executivo, incluindo a imunidade penal para militares em operações internas. Com esse respaldo plebiscitário, Noboa aprofundou sua política de “bukelização”, baseada na concentração do poder, na perseguição da dissidência e no uso sistemático do estado de exceção.
As Forças Armadas do Equador passaram de instituições obedientes ao mandato constitucional a atores políticos com capacidade de veto e arbitragem, inclusive nos processos eleitorais. Tudo isso no quadro do alinhamento geopolítico com os Estados Unidos de Donald Trump, um vínculo de subordinação estratégica que opta por replicar os objetivos de Washington — segurança, controle migratório e contenção da China — em vez de implementar qualquer política soberana equatoriana. O resultado é um Estado que governa pela força, um neoliberalismo armado que converte a segurança em ideologia e a guerra, em forma de governo.
Nesta deriva, o Equador de Noboa guarda inquietantes semelhanças com a experiência colombiana das últimas duas décadas, na qual a militarização do Estado sob a lógica do neoliberalismo extrativo articulou-se com economias ilícitas e com a criminalização dos setores populares. Durante os governos de Álvaro Uribe (2002-2010), o discurso da 'segurança democrática' promovido (por não dizer imposto) pelos Estados Unidos legitimou uma expansão sem precedentes das Forças Armadas e a instalação de um estado de exceção de fato, que naturalizou as execuções extrajudiciais conhecidas na Colômbia como “falsos positivos”: camponeses, jovens e pobres assassinados e apresentados como guerrilheiros para mostrar resultados na “guerra contra o terrorismo”.
Em ambos os casos, a política de segurança opera como dispositivo de disciplinamento social e de restauração da ordem oligárquica a serviço de um modelo de acumulação baseado na espoliação dos territórios, no desapossamento e no medo. Se a Colômbia foi o laboratório de um neoliberalismo armado sob o patrocínio de Washington, o Equador aparece hoje como uma reedição adaptada ao novo ciclo de crise estatal, em um cenário hemisférico reconfigurado pelo trumpismo e pela estratégia estadunidense de recolonização geopolítica que busca reposicionar a América Latina como seu “quintal”, sob o pretexto do combate ao narcotráfico e da segurança regional.
“Guerra interna”, pacto cívico-militar e racismo institucional
Após concluir seu breve mandato, Daniel Noboa voltou a se impor nas eleições presidenciais de 2025, revalidando por via eleitoral o regime cívico-militar construído durante seu primeiro período. A apropriação autoritária do medo — como antecipara Norbert Lechner nos sombrios anos setenta — e a instrumentalização da 'guerra interna' permitiram a Noboa transformar a insegurança em fonte de legitimidade política. Mesmo com um processo eleitoral repleto de ilegalidades[1], Noboa conseguiu plebiscitar o belicismo e aprofundar um modelo de neoliberalismo militarizado no qual a violência estatal e o ajuste econômico se justificam mutuamente.
A política da guerra converteu-se assim no marco legitimador do ajuste estrutural, apresentado como uma necessidade fiscal para garantir a segurança. Desde os primeiros meses de gestão, Noboa impulsionou medidas emblemáticas desta nova ordem. Por meio do Decreto Executivo 198, estabeleceu um aumento do IVA de três pontos percentuais, disposição que qualificou como um 'sacrifício patriótico' para financiar a luta contra o crime organizado.
Os dados do INEC mostram que a cesta básica familiar passou de US$ 764,71 em janeiro de 2023 para mais de US$ 813 em 2025, afetando especialmente os lares de renda baixa e média. Entre abril e junho de 2024, o governo assinou um novo acordo com o FMI por 48 meses, que fixou a rota do ajuste: eliminação de subsídios aos combustíveis, reformas trabalhistas regressivas e remissão de dívidas empresariais (incluindo as do grupo econômico Nobis, pertencente à família do presidente). Estas políticas detonaram a terceira greve nacional, que já ultrapassa vinte dias de realização e tem sido reprimida com uma violência sem precedentes.
Embora o governo tenha enquadrado essas decisões na “necessidade” de estabilizar as finanças públicas, reduzi-las ao FMI seria uma leitura simplista. Noboa não apenas aplica um programa neoliberal em sintonia com o organismo internacional, mas consolida um projeto oligárquico-patrimonial que converte o Estado em instrumento de benefício familiar e de articulação com o narco-neoliberalismo global. Neste modelo, a segurança torna-se ideologia de governo, a militarização naturaliza-se como forma de gestão e o medo converte-se na condição política da obediência.
O autoritarismo não é um desvio do neoliberalismo, mas sim seu complemento funcional. O ajuste requer ordem, e a ordem se impõe com medo. Desde 2024, o governo converteu a 'guerra contra o crime' em estratégia fiscal: cada decreto de exceção é acompanhado por um novo imposto, cada operação militar justifica a redução do gasto social. A repressão se financia incrementando a pobreza. A “bukelização" do Equador não reduziu a violência; apenas a deslocou para os mais vulneráveis. Enquanto os grupos dedicados ao narcotráfico continuam controlando portos e prisões, os bairros populares são ocupados por patrulhas que operam sem controle judicial. O “inimigo interno” continua sendo o mesmo de sempre: o pobre racializado.
A deriva equatoriana inscreve-se em uma onda hemisférica de neoliberalismo punitivo. Bukele em El Salvador, Milei na Argentina, Bolsonaro anteriormente no Brasil, compartilham a mesma gramática: medo, inimigo, exceção. Todos prometem ordem, todos produzem desigualdade. Certa vez, Noboa citou Bukele como inspiração, mas seu modelo também lembra o dos 'Estados burocrático-autoritários' que Guillermo O'Donnell descreveu nos anos setenta: regimes nos quais a aliança entre elites civis e Forças Armadas garante a estabilidade do capital e a exclusão política das maiorias. A diferença é que agora a repressão é transmitida ao vivo, e a violência deixou de ser clandestina para tornar-se performativa e didática.
O inimigo já não é o narcotráfico, mas sim o “terrorista interno": estudantes, líderes indígenas, jornalistas críticos, coletivos de mulheres, professores, médicos, qualquer um que ouse questionar a falta de recursos públicos para atender às necessidades fundamentais. O rótulo de “terrorismo” funciona hoje como marco legitimador da repressão. Assim como em 2019 e 2022 instalou-se a narrativa de um ilusório comunismo como orquestrador das greves nacionais e instou-se os “índios” a voltar para seus páramos, e em 2024 afirmou-se que as crianças assassinadas 'não eram santinhos' e estavam vinculadas a grupos criminosos, agora, desde o governo, seus corifeus midiáticos racistas e seu núcleo duro anticorreísta de urbes como Quito e Guayaquil classificam os manifestantes de “terroristas”.
Com a criminalização social como política de Estado e o poder civil mimetizado com o militar, um Noboa rodeado de baionetas, comboios militares e uniformes governa por decreto e aprova leis como a da Solidariedade Nacional (que permite indultos militares), ignorando não apenas as demandas populares, mas também os outros poderes estatais, como o Tribunal Constitucional. O “pacto cívico-militar" tornou-se a própria arquitetura do governo: um Estado securitário neoliberal no qual a autoridade moral se mede pela capacidade de infligir medo.
Este entrelaçamento entre neoliberalismo, militarização e economias ilícitas delineia um tipo de Estado capturado pela lógica narcoutoritária. Assim como na Colômbia a expansão territorial do narcotráfico tornou-se parte constitutiva da ordem neoliberal através do controle violento de recursos, rendas e territórios, no Equador a cooptação institucional por redes político-empresariais e narcofinanceiras configura uma forma de regime cívico-militar “narcoprivatizado” que utiliza a guerra como estratégia de espoliação.
Em ambos os cenários, a repressão não busca eliminar o crime, mas administrar a violência para sustentar a acumulação; e o inimigo interno —seja liderança comunitária, estudante ou criança negra— ocupa o lugar simbólico daquele que ameaça a ordem. A guerra interna equatoriana, como antes a colombiana, é menos uma resposta ao narcotráfico do que uma estratégia de controle social e de reorganização autoritária do capitalismo em tempos de crise.
Greve nacional e memoria democrática
A greve nacional iniciada em 22 de setembro de 2025 foi convocada pela CONAIE, organizações sindicais como a Frente Unitária de Trabalhadores, coletivos de estudantes e mulheres, e associações de bairro. Suas demandas, longe de estarem vinculadas a bandeiras partidárias momentâneas, expressam o mal-estar acumulado após anos de degradação estatal e empobrecimento social. Reverter a eliminação de subsídios, revogar o aumento do IVA, deter as demissões no setor público, rejeitar o autoritarismo e exigir a saída de Noboa são algumas das demandas heterogêneas que se escutam em todo o território nacional.
Diferentemente das greves anteriores, desta vez o movimento adotou uma tática descentralizada: manter bloqueios e concentrações em diferentes pontos do país sem se deslocar massivamente para Quito. A decisão respondeu a uma leitura estratégica do contexto atual, marcado pela militarização do espaço público e pela vigência permanente do estado de exceção. Marchar rumo à capital — como em 2019 — significaria expor-se a uma repressão em larga escala e um massacre anunciado.
A territorialização da greve converteu cada província, comunidade e estrada em cenário de resistência. Ao distribuir os focos de protesto, o movimento obrigou o Estado a dispersar sua capacidade repressiva, visibilizando que o descontentamento não é setorial nem regional, mas sim nacional. A ação coletiva sustentou-se em redes comunitárias, cozinhas comunitárias e guardas indígenas que garantiram o caráter pacífico das mobilizações.
Em vez de cair na armadilha do confronto urbano, o movimento optou por uma resistência de baixa intensidade, porém de longa duração, articulada à defesa territorial. A não mobilização para Quito não implica recuo, mas uma relocalização da luta nos territórios onde o Estado só chega com violência ou abandono. A estratégia do movimento indígena e popular conjuga resistência prolongada e defesa territorial, desmontando a narrativa governamental que associa protesto a terrorismo e devolvendo às comunidades a capacidade de fazer política a partir de baixo, em tempos de repressão e guerra interna.
O governo respondeu à greve com uma nova estratégia de controle e militarização. Transferiu temporariamente a sede do Executivo para a cidade de Latacunga (Serra central) e decretou estado de exceção por sessenta dias em sete províncias (Carchi, Imbabura, Pichincha, Azuay, Bolívar, Cotopaxi e Santo Domingo), suspendendo o direito à liberdade de reunião. Paralelamente, reforçou o despliegue policial e militar para conter as mobilizações e ocupar os territórios em protesto. Montou patrulhas conjuntas com diplomatas alinhados à direita global e regional sob o pretexto de entregar “ajuda humanitária", enquanto fabricavam narrativas sobre supostas tentativas de magnicídio.
A resposta estatal incluiu também ameaças a líderes sociais, detenções em massa — inclusive dentro de comunidades indígenas — sob acusações de terrorismo e sabotagem, e o uso de blindados, drones e cercos militares para intimidar as populações mobilizadas, avançando inclusive sobre espaços educativos e culturais que historicamente têm sido refúgios humanitários, como a Universidade Central do Equador e a Casa da Cultura Equatoriana em Quito.
A jornada de greve de 12 de outubro expôs uma das faces mais contundentes do autoritarismo em curso. Amparado no estado de exceção, o governo nacional submeteu a cidade capital a um cerco militar e policial, bloqueou o transporte público para impedir a mobilização social e avassalou as competências do Governo Autônomo Descentralizado de Quito.
Nos meios de comunicação oficiais, a narrativa centrou-se em criminalizar o protesto e em reforçar o discurso da ordem. As redes nacionais repetem que a greve afeta a cidadania “que quer trabalhar" e que o governo "não cederá ante a ameaça". O ministro da Defesa advertiu que “os violentos serão tratados como inimigos", e o próprio Noboa declarou: “Antes que me queiram fazer retroceder, prefiro morrer". A maquinaria comunicacional do regime cumpre assim um papel crucial: ao rotular os manifestantes como “terroristas" ou “sabotadores", transforma a repressão em defesa nacional. Em noticiários e cadeias públicas, os operativos são narrados com épica militar, mostrando armas apreendidas e uniformizados em ação. A linguagem da guerra colonizou o senso comum e naturalizou a violência estatal como política de governo.
Em vinte e dois dias de greve, registram-se mais de 100 pessoas detidas, mais de 60 feridas e uma assassinada por balas militares. O caso das crianças afrodescendentes revelou que o Estado seleciona suas vítimas segundo hierarquias raciais e de classe. Hoje, esse padrão repete-se na repressão da greve: os mortos, feridos, desaparecidos e detidos pertencem a comunidades indígenas, bairros populares e estudantes de universidades públicas. A necropolítica neoliberal se fantasia de “segurança nacional”. A vida digna converte-se em privilégio; a morte, em advertência. Governa-se por exceção, mesmo quando a greve reclama medidas cotidianas (subsídios, tarifas, emprego, segurança).
Mas a greve também mostrou algo mais profundo: o retorno do povo — ainda que este careça de forma e condução — como ator político. As marchas indígenas que avançam por todo o país, especialmente na Serra Central, onde Noboa havia obtido a base eleitoral necessária para a vitória; as cozinhas comunitárias nos bairros; as mobilizações cidadãs em Quito e Cuenca, que transcendem a organização indígena; as mulheres indígenas organizando guardas para proteger suas crianças dos gases... todos estes atos emergem da raiva e das redes de solidariedade ancoradas na memória recente.
Lembram que o país real não é o dos gabinetes nem dos quartéis, ao mesmo tempo que constroem uma pedagogia diferente: a da empatia frente à crueldade, a do cuidado frente à militarização, a da igualdade real frente ao poder confiscatório. Igualmente, compõem uma cartografia de resistência que revive a memória de outubro de 2019 e expressam atos de resistência que não apenas recordam o passado, mas prefiguram outro futuro. Cada regime autoritário precisa do seu espelho moral que lhe mostre até onde está disposto a chegar. No Equador de Noboa, esse espelho são os corpos das crianças de Las Malvinas, Efraín Fuérez e as centenas de feridos, detidos e desaparecidos no marco da greve nacional.
Se o Estado pôde desaparecer, torturar e queimar crianças sem que sua legitimidade desmoronasse, então tudo é possível. Até que o povo lhe imponha um limite. Esse ato, esse limiar de inteligibilidade do presente, não é uma resposta ao crime organizado, mas uma política deliberada de disciplinamento social e de declaração de guerra ao povo. O horror de Las Malvinas nos ensinou que a paz não se decreta com fuzis e gases lacrimogêneos. Hoje, quando a repressão se abate sobre a greve nacional, esse limiar volta a iluminar a cena: os mesmos uniformes, o mesmo discurso, a mesma impunidade.
O Equador precisa de um novo pacto democrático. Assim como o caso Restrepo nos anos oitenta obrigou a reconhecer a violência estatal e deu origem a uma Comissão da Verdade, o caso das crianças de Las Malvinas e a repressão da greve deveriam conduzir a um Nunca Mais equatoriano: nunca mais guerra contra o povo, nunca mais crianças carbonizadas pelo Estado, nunca mais manifestantes tratados como terroristas, nunca mais oligarquias saqueando repúblicas. Esse Nunca Mais não será obra do governo, mas da sociedade que hoje resiste nas ruas e que, apesar das adversidades e ameaças impostas pelo regime cívico-militar, constitui o único reservatório de vida democrática possível.
A greve nacional está abrindo uma fissura no muro de medo que Daniel Noboa quis erguer com sua retórica de guerra interna. Para além dos resultados imediatos que os setores mobilizados possam obter, sua potência histórica reside em ter devolvido ao povo a capacidade de nomear a violência e de politizar a (des)obediência. Essa politização encontra agora um cenário decisivo: a consulta popular convocada para 16 de novembro, cujo verdadeiro propósito é plebiscitar o autoritarismo.
Por trás de perguntas aparentemente técnicas — instalação de bases militares para combater o crime organizado, redução do número de assembleistas, financiamento de partidos políticos — esconde-se a pretensão de Noboa de legitimar por via eleitoral este regime cívico-militar e perpetuar um modelo de espoliação social. Qualquer vitória em alguma dessas perguntas será capitalizada para aprofundar o dito modelo, especialmente a referente à instalação de uma assembleia constituinte. Votar “sim” em qualquer de suas perguntas equivaleria a referendar a guerra contra o povo, a repressão ao protesto e o neoliberalismo armado que sustenta seu governo.
Por isso, o voto pelo 'não' em toda a consulta não é uma consigna partidária momentânea, mas um ato de consciência democrática e memória coletiva. A greve mostrou que ainda existe um país disposto a resistir. A consulta será a oportunidade de transformar essa resistência em uma decisão política, um 'não' rotundo que diga não ao medo, não à militarização, não ao autoritarismo. Em um Equador onde a exceção tornou-se norma, votar “não" é um modo de recuperar a palavra, a política democrática e a dignidade.
Notas
[1] Como o uso de recursos públicos e do aparato estatal com fins proselitistas, a não solicitação de licença por parte do presidente-candidato Noboa, catorze benefícios (bônus, bolsas, pagamentos) anunciados em 2025 no valor de mais de US$ 518 milhões e operativos de segurança “midiáticos” com Erik Prince da empresa privada de segurança Blackwater, a interferência e pressão do Executivo sobre o Conselho Nacional Electoral restringindo sua autonomia eleitoral e a declaração de Estado de exceção na véspera da eleição presidencial, entre muitas outras.
