Quando o Partido pela Liberdade (PVV) surpreendeu nas urnas na última passada, praticamente toda a imprensa, inclusive o Brasil de Fato, noticiou que a extrema direita havia vencido na Holanda. A notícia provocou surpresa, pelo fato de a Holanda estar há 13 anos sob uma gestão da direita moderada liberal e pelo país ser conhecido por suas iniciativas progressistas e de vanguarda. Porém, se o tratarmos como Países Baixos, em vez de Holanda, a notícia fica menos chocante.
A rigor, a Holanda é só uma parte do país, cujo nome correto é Países Baixos (em inglês, Netherlands). Apenas para traçar um paralelo ilustrativo, é como chamar o Reino Unido (nome correto do país) de Inglaterra (nome de parte dele).
A Holanda propriamente dita, que corresponde às províncias da Holanda do Norte (onde fica Amsterdã) e Holanda do Sul (onde ficam Haia e Roterdã), concentra o poder econômico, financeiro e político. Já o interior dos Países Baixos, onde ficam as cidades médias e menores, é mais conservador e religioso.
No país todo, mas particularmente nessa parte mais provinciana, ganhou eco nos últimos tempos a ideia de que a cultura e a história de seu povo anda na defensiva e precisa ser valorizada; de que não é papel de um governante se desculpar publicamente pela escravidão, como fez o primeiro-ministro Mark Rutte, porque isso depõe contra o heroísmo de um povo com um longo histórico de conquistas mundo afora; de que o bem-estar do holandês nativo não deve ser reduzido pela necessidade de acolher imigrantes. Tudo isso no contexto da manipulação do sentimento de que não há futuro, da falta de perspectivas.
As ideias acima são do italo-holandês (ops, neerlandês) Giorgio Romano Schutte, professor de Relações Internacionais e Economia na UFABC e membro do Observatório da Política Externa e da Inserção Internacional do Brasil (OPEB). “Lembre-se de que a palavra mais famosa no mundo é uma palavra holandesa: apartheid”, diz ele, nesta entrevista ao Brasil de Fato para analisar o resultado e os desdobramentos da eleição da última quarta-feira (22), quando a extrema direita praticamente dobrou sua presença no Parlamento e ganhou o direito de formar o próximo governo.
Qual será o impacto da ótima votação da extrema direita dentro e fora da Holanda?
Ainda é muito cedo para saber qual é o resultado porque a gente não sabe se ele vai conseguir formar um governo. De qualquer forma, estamos em numa fase de ascensão da extrema direita, com idas e voltas. No início da pandemia de Covid-19, os partidos políticos tradicionais recuperaram credibilidade e a direita radical perdeu o discurso. Mas no momento seguinte, com o impacto da guerra na Ucrânia sobre a inflação, a direita radical retomou seu protagonismo, ganhou impulso em vários países. Mesmo assim, nos Países Baixos, o partido da direita radical ganhou 23,7% dos votos. Mais de 22% não foram votar, então dos 77% que foram votar, só um quarto votou nele. Então, não é uma enorme massa da população. É uma votação expressiva, é surpreendente, mas tem que colocar em perspectiva. Ele pulou de 20 para 37 deputados na Câmara dos Deputados, de um total de 150. A vitória dele dá um gás, dá moral para outros partidos de extrema direita na Europa. Teremos eleições em Portugal e na França. A (Giorgia) Meloni (na Itália) se sente menos isolada.
Você acha que Geert Wilders (líder do PVV e provável futuro primeiro-ministro) vai conseguir formar governo?
É a primeira vez que a direita liberal declarou publicamente, antes das eleições, que poderia ser o caso de governar junto com os radicais. Isso deu uma margem muito grande para a extrema direita avançar. Antes, as pessoas não votavam na extrema direita achando que era voto perdido, que o partido ficaria isolado como sempre. Mas com a sinalização da direita liberal, que governou o país durante anos, foi um fator psicológico importante para a população votar nesse partido. Então existe uma relativa facilidade para formar governo, mas como isso vai ser feito, precisa ver.
(Nesta segunda, 27, o observador nomeado por Wilders para tentar costurar uma coalizão, Gom van Strien, renunciou, o que parece sinalizar dificuldades para as negociações.)
Wilders critica o que chama de “invasão islâmica” e diz que os holandeses esperam recuperar seu país e garantir que o “tsunami” de solicitantes de asilo e imigração se reduza. Por que um político com esse tipo de raciocínio consegue votação tão expressiva num país como a Holanda? Qual(is) fator(es) do contexto atual ajudam a explicar isso?
A insegurança, o estado de bem-estar social, a ideia de recuperar os valores holandeses, o bem-estar da Holanda, e nisso está embutida a ideia de ejetar o que vem de fora, principalmente do Islã. Embora nessa eleição ele tenha enfatizado muito mais questões materiais do bem-estar, como habitação para pessoas de baixa renda e aposentadoria — Wilders defende diminuir a idade mínima de 67,5 para 65 anos —, esse tema tem a ver diretamente com a ideia de conter a imigração e suas influências.
A Holanda, país cuja situação econômica é tradicionalmente estável, teve reduções seguidas do PIB nos dois primeiros trimestres de 2023, com queda das exportações e piora no consumo das famílias. Isso tem relação com o resultado da eleição?
Problemas econômicos mais recentes não explicam o resultado. Tem mais a ver com uma ideia de que a cultura holandesa está na defensiva, com o fato de o primeiro-ministro da direita liberal ter pedido desculpas pela escravidão, pelo envolvimento da Holanda no comércio de escravos, e aí as pesquisas mostram que quase 60% da população acha que não deveria fazer isso porque são águas passadas, que quem vive hoje não tem nada a ver com isso. O Wilders mobiliza essa ideia de que tem que parar de atacar os heróis históricos, esses “bandeirantes holandeses” que saíram para o mundo fazendo pilhagem, pirataria… Tudo isso então tem a ver com a defesa cultura, da história do país, e de diminuir as migrações.
A Holanda é um país tradicionalmente de vanguarda e receptivo a ideias inovadoras, progressistas e contraculturais. Para citar os exemplos mais notórios, temos a liberdade para o consumo de drogas e a enorme infra-estrutura que prioriza a circulação de bicicletas em detrimento dos veículos motorizados. O que explica um país assim embarcar numa onda reacionária e xenófoba?
Essa Holanda de vanguarda, inovadora, é Amsterdã. Tanto que você fala em Holanda, que é só uma parte dos Países Baixos. O Wilders ganhou nos Países Baixos. Em Amsterdã, ele ficou em quarto lugar, com 9,5%, e a esquerda ganhou com 34%. Pela primeira vez, a centro-esquerda e parte da esquerda radical se juntaram, fizeram uma lista só e ganharam. No país como um todo, ficaram em segundo lugar, à frente da direita liberal. Então, Amsterdã continua tendo essas características que você falou e resistindo ao avanço da extrema direita. Observe que justamente nas grandes cidades, onde os imigrantes convivem com a população, a extrema direita anti-imigrantes não teve uma votação expressiva como teve em cidades menores do interior.
Apesar do histórico racista, Wilders declarou na campanha que quer ser um primeiro-ministro para todos. Isso é só para ganhar a eleição ou ele pode realmente suavizar suas propostas (algo que, aliás, Milei parece estar fazendo na Argentina)?
O Wilders já tinha mudado o tom com relação às últimas eleições, enfatizando menos a questão da cruzada contra o Islã e mais a defesa do bem-estar dos holandeses, de se colocar contra o medo da insegurança. A xenofobia está embutida nessa questão mais geral. Junto com isso, há a perspectiva de poder governar com a direita liberal, com um eventual novo partido de centro-direita. Ele precisa desses votos, então ele não pode ser muito radical porque sabe que sem o apoio parlamentar, não vai poder governar.
Existe chance de a Holanda iniciar um movimento para sair da União Europeia?
Isso não está na pauta, nem sair da zona de euro. O que esses partidos querem é diminuir a centralização do poder político em Bruxelas (sede da União Europeia) e reformar a União Europeia, não acabar com ela.
A vitória de Wilders ocorre na esteira de avanços da extrema direita em vários países europeus, como Suécia e Finlândia, onde os radicais fazem parte do governo; Polônia e Hungria, com governos ultranacionalistas e autoritários; Itália, onde Meloni governa por um partido de raízes neofascistas; França, onde Le Pen está bem cacifada para tentar chegar ao poder; na Grécia, onde três partidos de direita radical conquistaram assentos suficientes para entrar no parlamento; na Espanha, onde o Vox superou expectativas nas eleições regionais e conquistou quase 10% do Congresso; na Alemanha, o AfD está em alta. O que está acontecendo? É um voto de protesto, acima de tudo, ou os eleitores estão realmente dispostos a viver experiências radicais e conviver com governos radicais de direita?
Estamos vivendo um momento em que está se aproximando a ideia de um caos sistêmico no mundo, com uma enorme dificuldade de manter uma hegemonia e perspectivas. Tem as guerras na Ucrânia, em Gaza. A questão dos preços da energia também pesa muito. O Wilders explorou muito o cansaço em relação ao discurso sobre as mudanças do clima. Ele diz que as mudanças climáticas são um processo natural. As pessoas estão cansadas de ouvir que precisam parar de usar gás e petróleo, porque eles veem que quando não tem gás e petróleo, tem caos. Aumenta o preço, pessoas têm medo da insegurança energética, então há uma reflexão a fazer sobre como se garante a paz social para fazer uma política de segurança energética que leve em conta a questão distributiva.