Malcolm X em seis atos

 

"E no princípio era trevas, no inicio do inicio;
Um cego leva uma leva, a um passo do precipício.
Não de som de erva, louco de solidão;
No princípio eram trevas, Malcolm foi Lampião”
Mano Brown

A primeira vez que vi a figura de Malcolm X, não sabia que aquele homem negro, portando uma arma, vestido de terno, e com olhar firme era Malcom. A imagem passou rapidamente na abertura da música Negro Drama no DVD Mil trutas e Mil tretas do grupo Racionais MC´s. Foi na voz de Mano Brown que escutei também pela primeira vez o nome de X, na música Mente de Vilão, e também em Jesus Chorou (Gente que acredito, gosto e admiro, Brigava por justiça e paz levou tiro: Malcolm X […]), ainda sem saber que ela fazia referência justamente àquele homem de terno que portava uma arma e aparecia no DVD.

Foi a partir de outra música que busquei identificar o nome com a história por trás dele. Ao ouvir Malcolm X foi à Meca e Gog ao Nordeste, o título da mesma, seu refrão e versos me fizeram questionar quem seria esse tal Malcolm. Logo me deparei com a história daquele nome, que descobri ser também aquela foto que havia visto por diversas vezes. Dono de uma oratória espetacular, firme e discurso poderoso, inflamado e intenso, Al Hajj Malik Al-Habazz, ou Malcolm X, foi um dos principais nomes das lutas antirracistas em todo o mundo.

 

Ato 1: Uma infância em meio ao ódio racial

Em 19 de maio de 1925, na cidade de Omaha, no estado de Nebraska, Estados Unidos, nasceu Malcolm Little, que entraria para a história como Malcolm X. Como um jovem negro norte-americano, Malcolm teve uma infância e juventude marcadas pela violência racista, pela desigualdade e pelos guetos característicos do país.

Nos Estados Unidos em pleno século XX, espancamento, linchamento e assassinato de negros eram algo comum em vários estados, em especial os do Sul. O ódio racial de pessoas brancas era saciado com sangue e com corpos negros queimados vivos e enforcados em árvores.

Essa violência atingiu a vida de Malcolm e de sua família. Ele tinha apenas quatro anos, numa manhã fria de novembro em 1929, quando sua casa foi incendiada. Homens encapuzados, com roupas brancas, portando crucifixo no peito, membros da organização de supremacistas brancos Ku Klux Klan, jogaram gasolina em sua casa e tocaram fogo nela com a família dentro, que consegue fugir desesperada em meio aos gritos, fumaça e chamas que devoravam o local. Dois anos mais tarde, o terror do racismo atingia novamente a família. Seu pai, Earl Little, um pastor batista, foi espancado por supremacistas brancos e teve o corpo esquartejado ao ser jogado em um trilho de trem. Os assassinos de Earl passaram impunes, e sua morte seria somente mais uma entre tantas outras mortes de negros naquele país que se dizia a maior democracia do mundo.

Sua mãe, após tantos traumas e a pressão de sustentar oito filhos, terminou sendo internada em um hospital psiquiátrico. Malcolm X e seus irmãos foram tristemente separados na adoção. Ele passou a viver com sua meia-irmã em Boston. Melhor aluno de sua classe, sonhava em ser advogado, mas nas palavras de um professor “isto não era para negros”. Malcolm dividia seus estudos com trabalho de engraxate, e logo percebeu que nos Estados Unidos o racismo impedia os negros de sonharem e de estudarem. Malcolm vendeu drogas, se envolveu com prostituição e em assaltos, até que foi preso em 1946, sendo condenado a 10 anos de prisão.

Foi na cadeia que sua vida mudou por completo.

 

Ato 2: O islamismo político e o antirracismo

Foi na cadeia que sua vida mudou por completo. A religião foi a porta de entrada para que Malcolm passasse a questionar a desigualdade social e a violência sofrida pelos negros. Wilfred, um de seus irmãos, envia-lhe um cartaz apresentando a Malcolm àquela que seria “a religião natural para os homens negros”, se referindo ao Islã. Wilfred mostrara a Malcom textos de Elijah Muhammad, dirigente do grupo Nação do Islã (NoI), que o convence a conversão.

O honorável Elijah Muhammad e a Nação tinham uma visão peculiar da religião islâmica misturada a ideias políticas. A NoI defendia a separação total entre brancos e negros, condenava a miscigenação e defendia que os negros norte-americanos deveriam criar um Estado separado dos brancos, que por sua vez seriam os demônios da humanidade. Elijah Muhammad afirmava que Allah era negro e que o Islã daria motivo para o povo negro se sentir orgulhoso e não ter vergonha de ser negro. Malcolm, como muitos negros que estavam jogados em presídios, entrou para a Nação. Ele adota o X em seu nome, negando seu sobrenome de origem, do período de escravidão. Após a conversão, Malcolm X se torna um leitor insaciável, um verdadeiro autodidata, o que o fez, somado com sua grande oratória, subir rapidamente nos postos da Nação. Ele comanda a construção de templos em Boston, Hartford, Filadélfia, se torna líder do templo Número 7, que ficava no Harlem, em Nova York, e logo assumia o posto de porta-voz oficial da organização.

Em dez anos, a partir do momento que Malcolm saiu da cadeia, em 1952, até sua ruptura com a Nação do Islã, o grupo teve um absurdo crescimento, de 500 membros para 30 mil. Este sucesso se dá tanto por conta do contexto de luta política por direitos civis no país, que teve a NoI como parte mais radical de um nacionalismo negro, como deve muito ao papel pessoal de liderança exercido por Malcolm X.

Com o crescimento das tensões raciais, o discurso de Malcolm X se tornava mais firme. Ele discordava publicamente de Martin Luther King e de defensores da não violência como tática. X defendia o direito e a necessidade da autodefesa e da violência revolucionária como um meio para os negros conseguirem combater o racismo.

Seu discurso e opinião entrava cada vez mais em conflito com o de Elijah Muhammad. Esse, por sua vez, estava preocupado com a quantidade de admiradores de X, dentro e fora da Nação. Elijah Muhammad via em Malcolm uma ameaça à sua liderança pessoal sobre a NoI. Vale ressaltar que o papel de Elijah Muhammad na Nação o permitiu ter um crescimento em seu nível social e financeiro. Usando a fé, ele havia consigo se tornar dono e sócio de negócios altamente lucrativos, e era isto que ele temia perder com a ascensão de X.

Malcolm criticava por um lado a confiança que Dr. King tinha nas instituições do Estado norte-americano, e por outro lado passava a ver com um olhar cada vez mais desconfiado as ações do dirigente da NoI.

X critica as limitações que Elijah Muhammad impôs sobre ações diretas de defesa e de revide feitas por membros do grupo. Essas medidas estavam ligadas à relação do principal líder da NoI com uma crescente classe média negra. Malcolm fazia críticas duras também ao fato de a Nação não avançar em seu discurso sobre o funcionamento do modelo racista de sociedade norte-americana.

A ruptura definitiva de Malcolm X com a Nação ocorre em dezembro de 1963. Quando o mesmo sofre uma sanção de Elijah Muhammad, ficando proibido de falar em público por 90 dias. Isso se deu por conta de uma resposta de Malcolm sobre o assassinato de John F. Kennedy, que gerou fortes críticas da imprensa do país.

Terminado o período de silenciamento, Malcolm X anuncia sua ruptura completa com a Nação do Islã, e demonstra um desenvolvimento na crítica ao racismo que o aproxima de movimentos socialistas e operários. Criticando o sectarismo da NoI, Malcolm afirma que: “não misturamos nossa religião com nossa política. Nos envolvemos com qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer maneira que seja para eliminar os males, os males políticos, econômicos e sociais que estão afetando as pessoas da nossa comunidade”.

 

Ato 3: O Hajj, o retorno e a crítica ao capitalismo

Após deixar a Nação do Islã, Malcolm X realiza o Hajj, que consiste na peregrinação a cidade sagrada de Meca, e isso marca uma ponto de ruptura em seu pensamento. Malcolm X muda seu nome para Al Hajj Malik Al-Habazz, e deixa de lado as ideias da NoI, passando a ver a questão racial cada vez mais como um problema relacionado à estrutura social.

“Durante os últimos onze dias aqui no mundo muçulmano, eu tenho comido do mesmo prato, bebido do mesmo copo, e dormido no mesmo tapete – enquanto oro para o mesmo Deus – com irmãos muçulmanos, cujos olhos eram os mais azuis dos azuis, cujo cabelo era o mais louro dos louros, e cuja pele era a mais branca das brancas. E nas palavras e nas ações e nos atos dos muçulmanos brancos, eu senti a mesma sinceridade que senti entre os muçulmanos negros africanos da Nigéria, Sudão e Gana.”

Antes do Hajj, Malcolm realizou uma série de viagens pela África, o que o aproximou da luta anticolonial e de organizações revolucionárias socialistas e pan-africanas. Em especial da luta do povo de Gana dirigida por N’Krumah, o que influencia sua leitura e visão de mundo, que gradualmente deixava de ser um conflito entre negros x brancos, passando a compreender o racismo estruturado a partir de uma ótica do colonialismo. O mesmo declararia: “Em minhas recentes viagens para países africanos e outros, fiquei impressionado com a importância de ter uma unidade de trabalho entre todos os povos preto, bem como com o branco”.

Quando ele retorna aos Estados Unidos, funda a Organização de Unidade Afro-americana, uma organização que buscava atuar nas comunidades negras do país e eleitoralmente. Che Guevara chegou a anunciar presença em um evento do grupo, mas cancelou por conta de sua segurança e enviou uma mensagem que foi lida pelo próprio Malcolm. A reunião contava ainda com a presença de Abdul Rahman Muhammad Babu, um dirigente socialista e pan-africanista de Zanzibar.

Apesar da ruptura com a Nação, é importante vermos o papel que a religião tem no desenvolvimento e nas ações tanto políticas quanto teóricas de Malcolm X. Para ele, a religião usada de forma correta tem o papel de desenvolver o que há de melhor no ser humano, o sentimento de unidade, a solidariedade e de luta contra as desigualdades. Além da religião ser um importante meio de desenvolver a autoestima e o sentimento de reconhecimento a uma comunidade, algo muito importante para o povo negro que teve seu passado e sua história negada.

 

Ato 4: A luta racial e o colonialismo

Após a saída da Nação, Malcolm X faz uma série de discursos pelo país, um dos seus mais famosos, “o voto ou a bala”, foi feito em 3 de abril, na Igreja Metodista Cory de Cleveland, nele X diz: “Não sou anti-branco, sou anti-exploração e anti-opressão.” Dias depois, em Palm Gardens, Nova York, em uma nova palestra, desta vez organizada por um grupo do Partido Socialista dos Trabalhadores (SWP), partido trotskista norte-americano, Malcolm X defenderia a revolução cubana e chinesa. Afirmava que “todos os países que hoje emergem do capitalismo se voltam para o socialismo, não acredito que seja por acaso”. Colocando ainda que os principais países que avançaram na luta antirracista tinham como filosofia política o socialismo.

Malcolm X passava a identificar a luta racial nos Estados Unidos não de modo isolado, mas como parte de um processo de luta que acontecia globalmente. O conflito racial não era um problema local, nem uma questão de brancos e negros. Para X era: “Incorreto classificar a revolta do negro como sendo simplesmente um conflito racial, ou somente como um problema norte-americano. Ao invés disso, estamos vendo uma rebelião global de oprimidos contra opressores, os explorados contra os exploradores”.

X colocava a revolta negra que acontecia no coração do Império em um processo ligado a fora de suas fronteiras, em especial aos processos revolucionários anti-coloniais que aconteciam na África: “Você pode pegar o exemplo do socialismo Africano. Muito dos intelectuais africanos que analisaram a via do socialismo começaram a ver onde os Africanos podem usar a forma do socialismo e onde ela se encaixa no contexto Africano; onde a forma que é usada num país europeu pode ser boa para um particular país europeu, mas não pode ser utilizada de bom modo num contexto Africano.”

Os negros norte-americanos não eram pra Malcolm um grupo social isolado em sua fronteira nacional, mas parte de um movimento mundial: “Estamos vivendo uma Era de revolução, e a revolta do negro estadunidense faz parte da rebelião contra a opressão e o colonialismo que caracterizaram essa Era”.

Podemos dizer que a evolução do pensamento de Malcolm X partiu do islamismo político e do nacionalismo negro, e, cada vez mais, seu antirracismo foi se tornando a principal potência de um anticapitalismo. Malcolm X conseguiu identificar a interligação entre imperialismo, racismo e capitalismo, desenvolvendo uma das frases mais importantes tanto para o movimento antirracista quanto para os anticapitalistas: “A maioria dos países de poder colonial eram países capitalistas e o último bastião do capitalismo hoje em dia é a América, e é impossível para uma pessoa acreditar no capitalismo e não acreditar no racismo. Não existe capitalismo sem racismo.”

Ato 5: sobre autodefesa e auto organização do povo negro

O discurso de fundação da Organização de Unidade Afro-americanas é dos mais importantes de Malcolm X. Nele, X convida os negros para tomarem para si o controle de seus destinos. Além disso, ele parte da noção da necessidade da unidade entre os negros do país em torno da luta anti racista independente de sua religião, local do país, ou origem.

“vamos apoiar as aspirações no nosso povo por irmandade e solidariedade numa grande unidade que transcenderá todas as diferenças de organização. (…) Desejosos de que todos os Afro-Americanos se unam a partir de agora para que o bem-estar e o bem viver de nosso povo sejam assegurados. (…) Estamos decididos a reforçar os laços de objetivos entre nosso povo, ultrapassando todas as nossas diferenças e estabelecendo um programa construtivo e não sectário para os direitos humanos”.

Demonstra também um internacionalismo que liga o futuro das lutas negras em seu país, com as lutas em outras partes do continente e na África: “Porque não é apenas uma organização para unidade Afro-Americana, no sentido de que nós queremos unir todo o nosso povo na América do Norte, América do Sul e Central com o nosso povo no Continente Africano. Precisamos andar unidos para avançar unidos. A África não irá adiante mais rápido do que nós, e nós não andaremos mais rápido que a África. Nós temos um só destino e nós temos um só passado!”.

Malcolm X nunca abandonou suas ideias e a defesa da necessidade e direito da autodefesa por parte do movimento negro na luta contra os supremacistas brancos.

Não venha me ensinar como não ser violento com esses espancadores antes de ensiná-los a não ser violentos. Se o Governo dos EUA não quer que nós tenhamos rifles, então deve tirar os rifles dos racistas. Se não querem que eu e você sejamos não violentos, então tem que fazer os racistas deixarem de ser violentos. Não venham nos ensinar a não violência enquanto esses brutamontes são violentos. (…) Táticas baseadas exclusivamente em moralidade só podem ter sucesso quando você lida com pessoas que tem moral ou num sistema que é moral. Um homem ou um sistema que oprime um homem por causa de sua cor não é moral. É dever de todo Afro-Americano e cada comunidade Afro-Americana por este país proteger nosso povo contra assassinos das massas, contra os que jogam bombas, contra os linchadores, contra os que batem nas pessoas, contra a brutalidade e contra os exploradores. Nunca podemos ter paz e segurança enquanto um só Negro neste país sendo mordido por uma cão da polícia. Ninguém tem paz e segurança.”

 

Para Malcolm X o povo negro devia escrever sua própria história. Tomar em suas mãos seu destino e a partir de sua auto-organização garantir seus direitos. Ele dava atenção essencial a questão da necessidade do povo negro redescobrir sua identidade e assim crescer seu auto-respeito, e através disto, que são atos políticos, lutar por sua liberdade enquanto grupo social.

 

Ato 6: Ato final – Sua morte e legado

Pouco antes de morrer, em uma entrevista concedida ao jornal trotskista Young Socialist em 18 de janeiro de 1965, Malcolm X falava: “É impossível o capitalismo sobreviver, principalmente porque o sistema capitalista precisa de sangue para sugar. O capitalismo costumava ser como uma águia, mas agora é mais como um abutre. Costumava ser forte o suficiente para sugar o sangue de qualquer pessoa, forte ou não. Mas agora tornou-se mais covarde, como o abutre, e só pode sugar o sangue dos desamparados. À medida que as nações do mundo se libertam, o capitalismo tem menos vítimas, menos para sugar e se torna cada vez mais fraco. É apenas uma questão de tempo, na minha opinião, antes de entrar em colapso completo.”

Ele não chegou a ter tempo de ver se sua opinião se realizaria ou não. No dia 21 de janeiro do mesmo ano que deu a entrevista acima, em um discurso no Harlem, Malcolm foi alvejado com 14 tiros de calibre 38 e 45. Assassinado diante de um público de sua esposa que estava gravada e de seus quatros filhos.

A trajetória política de Malcolm X foi interrompida e se torna impossível como se desenvolveria suas ideias se ele vivesse mais tempo. Quando foi brutalmente assassinado, X não era o mesmo que saiu da cadeia, nem aquele dirigente da Nação do Islã. Malcolm X destilava um justo e merecido ódio ao racismo e identificava a luta contra este, com a luta contra o imperialismo e o capitalismo.

Sua trajetória pessoal é um encontro com a história da luta contra o racismo nos Estados Unidos nas décadas de 50 e 60. Entre o islamismo negro, a autodefesa, o nacionalismo negro e a auto-organização.

Malcolm X sempre criticou o chamado Sonho Americano, e mostrou que este Sonho, era feito em cima de pesadelos dos negros do país.

“Não, eu não sou norte-americano. Eu sou um dos 22 milhões de negros vítimas do norte-americanismo. Um dos 22 milhões de negros vítimas da democracia que nada mais é que uma hipocrisia disfarçada. Então, eu não estou aqui falando com vocês como um norte-americano, ou patriota, ou um patriota cego qualquer estiador de bandeira. Estou falando como vítima desse sistema. Eu vejo a América através dos olhos da vítima e não a vejo como um sonho norte-americano.”

Suas lições sobre autodefesa, auto-organização, consciência negra, e a ligação entre capitalismo e racismo, faz de Malcolm X um dos grandes nomes e legados a ser reivindicados pela comunidade negra que luta e se ergue por meio de coletivos políticos, culturais e artísticos.

Como cantou Mano Brown, Malcolm X foi lampião, e sua luz abriu caminho para H.P Newton e os Panteras Negras, para pensadores que utilizam a noção de colonialismo

doméstico, para aprofundarmos a inter-relação entre raça e classe, e para lembramos que “temos o direito de revidar, por qualquer meio necessário”.

 

Sejamos como Malcolm X!