Na Turquia, a verdadeira oposição está na esquerda e nas ruas

No final do mês passado, Recep Erdoğan se reelegeu por uma pequena diferença após 20 anos no poder. Seu adversário no segundo turno, Kemal Kılıçdaroğlu, tentou angariar apoio da direita e perdeu – mostrando que os movimentos de esquerda e curdos precisam construir uma oposição própria, aproveitando o crescente descontentamento da população com o atual regime.

O final do maio turco testemunhou a vitória eleitoral da continuidade do governo de Recep Tayyip Erdoğan depois de 20 anos no poder. Esse ganho nas urnas, no entanto, não foi alargado e resultou em uma diferença de apenas 4%, o que pode representar uma significativa mudança na conjuntura política da Turquia.

Os principais atores políticos dessas eleições se centraram nas discussões sobre Erdoğan, candidato do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) que levou 52,11% dos votos; seu opositor Kemal Kiliçdaroglu do Partido Republicano do Povo (CPH), que obteve 47,89% e as três alianças formadas em apoio às candidaturas. A primeira, a Aliança Popular, construiu o bloco de apoio conservador ao redor do candidato eleito. Dentre os partidos que compuseram essa formação estavam o AKP; o Partido de Ação Nacionalista (MHP); o Partido da Grande Unidade (BBP) e o Partido da Prosperidade (YRP). Todas essas organizações promoveram uma aliança entre interesses ultranacionalistas e o aparelhamento da religião pela política, conforme circundou a própria candidatura de sua figura máxima, Erdoğan.

A segunda foi denominada como Aliança da Nação trazendo um discurso mais moderado, politicamente localizado no centro, promovendo alianças tanto com a centro-esquerda quanto com a centro-direita, conforme suas necessidades. Sua representação estava justamente no opositor de Erdoğan, Kemal Kiliçdaroglu. Em consonância com o caso anterior, o partido que lançou a candidatura presidencial era a principal força neste grupo, o Partido Republicano do Povo (CPH). Juntamente a outros cinco partidos, formou-se a denominada Mesa dos Seis: O Bom Partido (IYI); Partido Felicidade (Saadet); Partido Futuro (Geleck); Deva e Partido Democrata.

“Já é conhecido que o governo turco empreende uma repressão a grupos étnicos diversos, como os curdos que reivindicam a sua emancipação como uma nação.”

A terceira aliança se posicionou não a partir de coligações ou alinhamentos ideológicos com a proposta apoiada, mas por um apoio tático e um objetivo comum ao grupo anterior. A chamada União Pelo Trabalho e Liberdade, teve como principal força política o Partido Democrático dos Povos (HDP), organização de esquerda e representativa da questão curda dentro da Turquia. Devido à grande repressão do governo de Erdoğan às populações curdas, que inclusive, resultaram em perseguições políticas às suas organizações e ataques às áreas de maioria curda, o apoio deste grupo foi à força opositora e ao candidato Kemal Kiliçdaroglu.

A falta que uma esquerda organizada de massas faz

Esse cenário de apoios e alianças políticas, em um primeiro relance, não nos espantaria se olhássemos para a questão de forma simplista e nos atentássemos apenas aos posicionamentos políticos dos candidatos. Recep Tayyip Erdoğan, um ávido representante de uma direita conservadora, nacionalista e de um Islã distorcido, que persegue as minorias étnicas, religiosas e sociais de seu país, não poderia ser uma alternativa para a esquerda turca.

No entanto, temos que considerar a particularidade da dificuldade de estruturação deste espectro político dentro da Turquia. Desde 1923, após longos séculos de vigência do Império Turco-Otomano, criou-se o Estado-nação turco e uma emergente república parlamentar em meio a inúmeros tratados políticos e disputas de interesses sobre as terras do império recém-dissolvido. A questão é que desde o início da consolidação dessa república, foram poucas as representações que apresentaram projetos políticos de esquerda para a nação. Um agravante neste cenário se deu com a mudança, entre os anos de 2017 e 2018, para um sistema presidencialista, por meio da aliança dos parlamentares dos partidos AKP e MHP, que possibilitaram uma maior concentração de poder e influência na figura do presidente, no caso, Erdoğan.

Desta forma, se considerarmos que há 20 anos o governo permanece o mesmo, com poucas chances de concorrências de projetos políticos e que as reformas promovidas pela Era Erdoğan visavam centralizar mais poderes em suas mãos, os resultados dessas eleições e a forma como o processo eleitoral se desenhou, podem nos surpreender.

“Não apenas Erdoğan afirmou seu compromisso com as pautas discriminatórias, como o candidato de centro Kiliçdaroglu, também se posicionou contra as minorias étnicas.”

Para além disso, precisamos considerar também qual era a alternativa turca senão Erdoğan. Embora todo o contexto já fosse convincente para organizações de esquerda optarem por um opositor, essa escolha fora feita a partir de muitas abdicações. Isso se evidenciou desde o número de candidatos até os resultados percentuais do primeiro turno, que já indicavam apenas quatro pleiteantes, com uma centralidade na disputa entre Erdoğan e Kiliçdaroglu. Esse cenário foi reflexo da estruturação de diversas organizações, que desde o início abriram mão de proporem suas candidaturas próprias e construíram suas campanhas em torno das duas principais figuras que concorreram ao cargo presidencial.

Outra forma de abdicação que partidos de esquerda inseridos no contexto turco tiveram que realizar com a finalidade de integrar o apoio da candidatura de Kiliçdaroglu, foi em relação a pauta dos imigrantes. Já é conhecido que o governo turco empreende uma repressão a grupos étnicos diversos, como os curdos que reivindicam a sua emancipação como uma nação. No entanto, para além de uma postura repressiva às minorias étnicas endógenas da Turquia, desde o início da guerra em território sírio, os refugiados provindos da Síria também sofrem com a discriminação. Infelizmente, em vias do segundo turno, não apenas Erdoğan afirmou seu compromisso com as pautas discriminatórias, como o candidato de centro Kiliçdaroglu, também se posicionou contra as minorias étnicas, chegando até a promessa de expulsar refugiados do país, visando o convencimento de grupos de direita a apoiá-lo.

Essa posição, além de deplorável, é sintoma de uma atitude de tentar angariar a anuência de grupos muito diferentes entre si, tornando-se incoerente e desleal com aqueles que entendiam a sua candidatura como uma forma de acabar com a governança do atual presidente e já prestavam seu apoio em campanha. O propósito de findar a Era Erdoğan era tão valioso para a oposição que muitos ideais tiveram que ser escanteados nesse pleito eleitoral.

No entanto, a despeito de todos esses esforços da oposição turca, a superioridade de campanha promovida pelo Erdoğan em decorrência de um monopólio das mídias em apoio ao então presidente, estiveram a favor da continuidade do seu governo. Apesar da terrível crise econômica que o país se encontra, com inflação, queda da lira turca e as consequências do terremoto que atingiu regiões do país em fevereiro deste ano e não obtiveram o suporte necessário do governo, as urnas não trouxeram uma solução para os problemas conjunturais em que se encontra a Turquia.

O que fazer

Aperspectiva de esperança da esquerda turca não pode se limitar aos resultados eleitorais de 2023. O processo como um todo pode se apresentar e ser interpretado a partir da relevância que a oposição ao governo Erdoğan teve nesse ano, ao demonstrar e evidenciar um descontentamento de grande parte da população com as políticas econômicas e com a discriminação étnica, religiosa e sexual que o país vem experienciando.

O país, no momento, se encontra polarizado. De um lado, a oposição buscou por discursos e projetos mais conciliatórios, enquanto Erdoğan utilizou de um ataque contínuo aos seus opositores. Rotulando-os com a alcunha de terroristas devido ao apoio da organização majoritariamente curda HDP e promoveu ataques às populações LGBTQIA+ por um suposto apoio da candidatura de Kemal Kiliçdaroglu às suas causas. Em contraposição, fez discursos acalorados à sua base, declarando aos seus apoiadores: “estaremos juntos até o túmulo”, em seu discurso de vitória.

Entende-se, então, que para além de um resultado que não fora favorável no pleito eleitoral, a esquerda turca pode vislumbrar um momento de alto descontentamento da população com a política intransigente de Erdoğan. Mobilizar o descontentamento com projetos políticos que emancipem a classe trabalhadora, os refugiados, imigrantes, minorias étnicas, juventudes, mulheres, LGBTQIA+, se faz oportuno e urgente para o horizonte político turco.

 

Sobre os autores

é Mestranda em História (UNIFESP), Membro do Laboratório de Estudos Orientais e Asiáticos (LEOA-UNIFESP) e estuda o Oriente Médio, principalmente Palestina e Síria contemporâneas.