O caráter estratégico do lítio latino-americano e as disputas globais por sua gestão

Alejandro Carrasco Luna

 

A aceitação das mudanças climáticas, o uso cada vez maior de energias renováveis e a transição a um novo paradigma energético baseado no armazenamento de energia colocaram na mesa o lítio como o “ouro branco” ou o “petróleo do século XXI”. Argentina, Bolívia e Chile possuem juntos 51% dos recursos mundiais de lítio, o que tem levado à denominação da região como o “triângulo do lítio”. Seus salares, ainda, possuem condições hidrogeológicas e climáticas ideais, que reforçam sua posição de competitividade. A importância energética do lítio despertou, nas últimas décadas, o interesse das grandes potências globais como a China e os EUA, e também dos Estados que compõem o triângulo do lítio. Os parágrafos que se seguem têm dois objetivos: o primeiro, dar conta das condições que transformam o lítio em um mineral “estratégico” para o sistema capitalista. Em segundo lugar, alguns acontecimentos recentes que nos permitam argumentar a intensificação da disputa pelo lítio em solo latino-americano. Quando assinalamos que o lítio é um mineral “estratégico”, fazemos referência a cinco condições, pelo menos, relativas a sua disponibilidade e valor de uso.

 

 Por que o lítio é um “mineral estratégico”?

Primeiro, o lítio é um mineral relativamente escasso. A capacidade das reservas em relação à demanda é muito superior a de outros minerais, não se constituindo atualmente como um mineral escasso. Não obstante, se considerarmos o crescimento exponencial de sua demanda, essa condição tende a mudar.

Segundo, é um mineral insubstituível ou dificilmente substituível. O lítio é o metal mais leve e com menos densidade entre os elementos sólidos que compõem a tabela periódica. Além de sua alta condutividade elétrica e térmica, possui baixa viscosidade e coeficiente de expansão térmica. Essas condições lhe permitem, para sermos gráficos, armazenar mais energia em menos peso. Daí sua importância para a confecção de baterias para distintos artefatos tecnológicos e para a indústria automotiva.

Terceiro, o lítio se encontra desigualmente distribuído. Para compreender a forma em que se concebe a disponibilidade de um recurso, devemos esclarecer a diferença entre recursos e reservas. Os recursos são a totalidade de um determinado recurso (lítio, cobre, ouro, etc.), enquanto as reservas são os recursos que são econômica e tecnologicamente factíveis de extrair. Nesse sentido, em 2017 os recursos conhecidos de lítio alcançam 53,35 milhões de toneladas, enquanto as reservas de lítio chegam apenas a 15,6 milhões de toneladas. No que concerne aos recursos, Argentina (18%), Bolívia (17%) e Chile (16%) possuem juntos 51% dos recursos mundiais de lítio, o que levou à denominação da área como o “triângulo do lítio”. No que diz respeito às reservas de lítio, Chile é quem mais possui, com 48%. Se olharmos para a Bolívia, que possui grandes recursos armazenados principalmente no Salar de Uyuni – o maior do mundo –, suas reservas não chegam a ser importantes comparadas aos demais países.

Mas muito mais importante é que, além da concentração de reservas e recursos, existem diferenças quanto às vantagens comparativas de cada país. Um exemplo claro é o Salar do Atacama que, além de ser o principal reservatório de lítio no Chile, possui condições ideais que reforçam a posição de competitividade para quem o controla. Se é importante a quantidade de reservas de lítio que cada país abriga, ainda mais importante é a composição das salmouras de que o lítio é extraído. A composição de cada salmoura varia não só quanto aos conteúdos de lítio que armazena, mas também na presença de outros elementos como potássio, sódio, cálcio, ferro, boro, magnésio, cloro, sulfatos e carbonatos, que dão a cada salmoura uma forma distintiva. Os percentuais de lítio armazenados no Salar do Atacama são significativamente superiores a outros salares do mundo, entre os quais se encontram os mais importantes da América do Sul, como o Salar de Uyuni (Bolívia) e o Salar de Hombre Muerto (Argentina). Por sua alta concentração de lítio e de outros sais de interesse econômico (potássicos e boratos), a composição salina do Salar do Atacama é profundamente vantajosa em comparação com as demais.

Em quarto lugar, cremos que o lítio será chave para o funcionamento do modo de produção capitalista e a manutenção da hegemonia regional e mundial das potências industriais. Em meio a uma tendência de diminuição das energias fósseis e aumento das energias renováveis no marco das aceleradas mudanças climáticas, o lítio se constitui – sobretudo para os países industriais – como um fator chave para a emergência e consolidação de um novo paradigma tecnológico e econômico, baseado na geração, armazenamento, distribuição e consumo eficientes e sustentáveis das energias renováveis. Não obstante, nos parece relevante assinalar que esse novo paradigma não significa em si mesmo uma saída da profunda crise climática que se agudiza, já que, ao não haver um questionamento e uma transformação radical das lógicas de produção e consumo, os esforços podem terminar sendo uma ferramenta de consolidação para o que se tem denominado capitalismo verde. Historicamente, os combustíveis fósseis, primeiro o carvão e depois o petróleo e o gás, foram a pedra angular para o desenvolvimento da sociedade industrial. Não obstante, seu aporte como aceleradores das mudanças climáticas e sua finitude tiveram como consequência um consenso sobre a necessidade de transitar para outro paradigma energético baseado na incorporação massiva de energias renováveis, principalmente solar e eólica, o que por sua vez implicou na configuração de um sistema eficiente de armazenamento energético. Isso porque o combustível fóssil (petróleo, gás, carvão, etc.) é energia armazenada, como diz seu nome, de maneira fossilizada – ou seja, não se perde. Enquanto as energias renováveis, que captam energia do ambiente em suas diferentes formas (térmica, cinética, etc.) produzem energia que deve ser consumida no mesmo momento em que é produzida, já que, caso contrário, se perde. Por conseguinte, e considerando ainda a volatilidade das energias renováveis, sua integração dentro do sistema energético mundial converte o armazenamento em uma necessidade de primeira ordem.

Em quinto lugar, o lítio agudizará as disputas globais por sua gestão. A transição da era das energias fósseis ao novo paradigma das renováveis está reconfigurando a ordem atual e outorgando vantagens importantes a quem assume essa transição em seus distintos níveis organizativos, das distintas instituições privadas às mega potências, que disputarão um lugar na reconfiguração da arquitetura energética mundial. É por isso que o aumento da demanda e da produção, somado à distribuição desigual, despertará – e já está despertando – disputas globais por sua gestão. Assim como o carvão durante os séculos XVIII-XIX, e o petróleo no século XX até a atualidade, o lítio poderá intensificar processos de conflitividade nos distintos países que possuem o recurso.

 

Disputas globais pelo lítio latino-americano

Durante os últimos anos, a disputa global para apropriar-se do lítio latino-americano se intensificou. A China está avançando de maneira intensiva nas distintas escalas da cadeia de valor do lítio. Suas empresas realizaram fortes investimentos, tanto na aquisição de empresas controladoras de salares, como na instalação de fábricas de baterias. Na Argentina, durante o ano passado e com a participação de instituições governamentais chinesas e argentinas, a empresa chinesa Gangfeng adquiriu o grupo minerador argentino Lithea por US$ 962 milhões (Financial Times, 2022), e foi anunciada a construção de fábricas de baterias de íon de lítio (Inforeg, 2022). De sua parte, a Bolívia está em pleno processo para licitar contratos de exploração de lítio. Das seis empresas na concorrência, quatro são chinesas, uma russa e apenas uma estadunidense (El País, 2022). Enquanto que, no Chile, a mineradora Tianqi avança no mercado de lítio, comprando 24% das ações da Sociedad Química y Minera de Chile (SQM), controladora do Salar do Atacama, que possui as melhores condições de extração de lítio no mundo (Diario Financiero, 2018). Ainda, para março deste ano, o governo de Gabriel Boric planeja o início da discussão sobre a criação de uma Empresa Nacional do Lítio.

O avanço das empresas chinesas representa uma séria ameaça para os interesses dos Estados Unidos. A China controla entre 80% e 90% da fabricação de baterias de lítio e, para reduzir a dependência chinesa, a Casa Branca anunciou 3 bilhões de dólares para expandir a produção doméstica de baterias (La Voz de America, 2022). O próprio Secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, em discurso para apresentar a política dos Estados Unidos em relação à China, assinalou que “quando se trata de painéis solares, baterias para carros elétricos, setores chave da economia do século XXI, não podemos permitir sermos completamente dependentes da China” (US Dept. of State, 2022).

Mas a demonstração mais gráfica está nas declarações da chefe do Comando Sul estadunidense. No marco do Concordia Annual Summit, Richardson assegurou que os investimentos da China estão “minando a democracia” na América Latina, e que “essa região é muito rica em recursos: minerais raros, lítio – o triângulo do lítio está nessa região –, há muitas coisas que tem para oferecer”. Ainda, completou, “nos últimos cinco anos, houve investimentos de mais de 50 bilhões de dólares”. Frente a esse panorama, a chefe do Comando Sul pensa que a China está na América Latina “para minar os Estados Unidos”, agregando que “temos muitas eleições importantes no imediato ou que acabam de ocorrer, e temos que seguir comprometidos e preocupados com essa região”. Essa perspectiva de segurança nacional foi reafirmada em um evento do Atlantic Council (think tank vinculado à OTAN), onde assinalou que para os EUA “há muito a ser feito” na América Latina, e que “temos que começar nosso jogo”. Não é uma questão menor que, quando fala dos recursos, usa o “nós temos”. “Temos 38% da água doce nessa região”. O fato de que dizem abertamente não deve ser lido como um erro de comunicação, mas como a instalação de um sentido, a preparação para algo que, posteriormente, não nos surpreenda.

Tudo isso parece deixar manifesta uma disputa aberta pelo controle do triângulo do lítio. Não obstante, não está claro o alcance dessa disputa. Mas a memória histórica latino-americana, e mesmo do mundo, nos recorda que a disputa por recursos naturais chave para o processo de acumulação capitalista não termina nunca de maneira pacífica, e sim com invasões, golpes de Estado ou guerras.