O conceito de “legítima defesa” e suas controversas no conflito Israel-Palestina

Por Bruno Fabricio Alcebino da Silva e Julia Protes Lamberti

 

Os recentes ataques à Gaza (28) têm gerado uma intensa discussão em todo o mundo sobre o direito de defesa de Israel. A situação na Faixa de Gaza atingiu um ponto crítico, com a pior sequência de bombardeios desde o início dos ataques israelenses em 7 de outubro. O impacto humanitário dessa escalada de violência levou a Assembleia Geral da ONU a aprovar uma resolução de “trégua humanitária imediata” na última sexta-feira (27).

 

No entanto, as reações de Israel a essa resolução refletem a complexidade das questões envolvidas. O embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, descreveu o documento como “perigoso” e “ridículo”. O ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, declarou que os militares “mudaram de fase na guerra” e intensificaram os ataques. A situação é ainda mais alarmante considerando que a comunicação e a internet em Gaza foram cortadas, tornando o acesso a informações e assistência ainda mais desafiador.

A cifra de mortos, que supera os oito mil, é profundamente perturbadora, com mais de 3.500 crianças entre as vítimas. O cenário descrito como uma “avalanche sem precedentes de sofrimento humano” pela ONU ilustra o custo humano da escalada da violência.

Direito de defesa

Os Estados Unidos, o Reino Unido, a França, a Itália e a Alemanha lançaram juntos, no dia 9 de outubro, uma declaração que apoia o direito de Israel de “legítima defesa”, alegando que o país tem o direito de se defender contra o terrorismo. Mas afinal de contas, em teoria, o que seria a legítima defesa – e até onde são suas limitações?

Na Carta das Nações Unidas, assinada em 1945, há o reconhecimento do direito a legítima defesa:


“Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, CAPÍTULO VII, ART. 51)”.

 

Na própria carta, já se estabelecem alguns requisitos para suscitar esse direito (ver tabela 1); Esses requisitos incluem a presença de um ataque armado, a notificação imediata do Estado afetado ao Conselho de Segurança e a cessação da legítima defesa assim que o Conselho de Segurança tomar medidas (SCHWEBEL, 1994). Para além da carta, as delimitações da legítima defesa nos termos de proporcionalidade e neutralidade se estendem ao chamado direito costumeiro (ou direito consuetudinário). O caso “Estados Unidos vs. Nicarágua, julgado pela Corte Internacional de Justiça, é um exemplo emblemático da interação entre a Carta da ONU e o direito consuetudinário no contexto do uso da força. Esse caso histórico, que ocorreu durante os anos 1980, lançou luz sobre as complexas questões envolvidas na interpretação das obrigações dos Estados em relação à legítima defesa e ao uso da força no direito internacional.

O cerne do caso estava relacionado às ações dos Estados Unidos na Nicarágua, incluindo o apoio a grupos insurgentes conhecidos como “Contras” em sua luta contra o governo sandinista. A Nicarágua alegou que as ações dos Estados Unidos violavam o direito internacional, incluindo as disposições da Carta das Nações Unidas que proíbem a intervenção em assuntos internos de outros Estados e promovem o princípio da não intervenção (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1986).

A Corte Internacional de Justiça emitiu uma decisão histórica. Em seu voto, a Corte analisou detalhadamente as ações dos Estados Unidos à luz da Carta da ONU e do direito consuetudinário relacionado ao uso da força: “Existe uma regra específica em que a legítima defesa autoriza apenas medidas que são proporcionais ao ataque armado e necessárias para respondê-lo, uma regra do direito costumeiro internacional” (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1986, parágrafo 176)”.

A decisão da Corte ajudou a esclarecer como as normas costumeiras que evoluíram ao longo do tempo, independentemente da Carta da ONU, desempenham um papel crítico na interpretação das obrigações dos Estados em relação ao uso da força.

A importância desse caso transcendeu o conflito entre Estados Unidos e Nicarágua. Ele destacou como as normas internacionais relevantes ao uso da força são moldadas e interpretadas. A interdependência entre tratados, como a Carta da ONU, e as práticas consuetudinárias na regulação do uso da força no âmbito do direito internacional foi evidenciada de forma notável neste caso (GREEN, 2009). De acordo com Gray, no texto The Use of Force and The International Legal Order (2010), o cumprimento das exigências de necessidade e proporcionalidade por parte dos Estados oferece vantagens significativas, especialmente quando se trata de reivindicações de legítima defesa no cenário internacional. Nesse contexto, os Estados podem fundamentar sua posição simplesmente avaliando se a ação em questão foi necessária e proporcional. Isso proporciona a vantagem de evitar discussões sobre questões controversas, como a legítima defesa preventiva e a proteção de nacionais no exterior.

No entanto, esses princípios são ocasionalmente distorcidos para justificar ataques armados que não têm o propósito legítimo de defesa, mas, em vez disso, visam a represália, a realização de interesses políticos e econômicos em uma região estrategicamente importante ou, como é frequentemente o caso, para avançar agendas em conflitos prolongados, como o conflito Israel-Palestina. A distinção estabelecida na Carta das Nações Unidas entre represália e legítima defesa muitas vezes se revela desafiadora, e uma notável disparidade entre a teoria e a prática surge. Isso é particularmente evidente no contexto das respostas de países que são alvos de ataques terroristas patrocinados por outros Estados, como as complexas dinâmicas do conflito Israel-Palestina têm ilustrado ao longo dos anos (GARDAM, 2004).

Qual o impacto do conflito?

O impacto do conflito em Gaza vai além das fronteiras da região, estendendo-se para a arena internacional e desencadeando uma série de questões cruciais que permeiam a discussão sobre o direito de defesa de Israel. As manifestações maciças em apoio à Palestina e contra os ataques israelenses, que se espalharam por diversos países, ilustram a profunda sensibilidade da situação e a preocupação da comunidade global. Essa pressão popular demonstra que os eventos em curso vão além de uma questão local e têm repercussões em escala internacional.

Em relação ao direito de defesa de Israel, é essencial reconhecer que o contexto é complexo e envolve questões políticas, humanitárias e legais. O direito de defesa de um país é um princípio fundamental no direito internacional, reconhecido pela Carta das Nações Unidas. No entanto, a maneira como esse direito é exercido e a proporcionalidade das ações são questões de debate constante.

A comunidade internacional, representada pela ONU, busca encontrar um equilíbrio entre o direito de defesa de Israel e a necessidade de proteger a população civil em Gaza. A resolução de “trégua humanitária imediata” é uma tentativa de abordar essa questão, mas as reações contraditórias destacam a complexidade das relações envolvidas.

Em meio a esse cenário, o professor Reginaldo Nasser, especialista em Relações Internacionais, observa que a pressão popular nos países do Oriente Médio está reconfigurando as relações desses países com Israel. Ainda que os ataques de Israel em Gaza sejam cíclicos, o impacto da atual escalada é evidente, e a intensidade dos eventos está gerando uma reação pública sem precedentes.

Nasser observa que o massacre engendrado na Faixa de Gaza pode ser visto como uma limpeza étnica, envolvendo a eliminação e expulsão de um povo. Essa caracterização levanta questões sobre a assimetria do conflito e se as ações de Israel podem ser consideradas uma forma de guerra colonial.

Além disso, a pressão pública nos países árabes está levando a uma reconfiguração nas alianças com Israel e os Estados Unidos. Isso sugere que os governos árabes estão sendo influenciados pelas manifestações populares em uma extensão não vista em crises anteriores. Embora essa pressão não implique necessariamente em uma intervenção militar, pode influenciar a postura desses países em relação a Israel e ao mercado árabe.

A principal discrepância entre as principais potências no Conselho de Segurança, especialmente entre os Estados Unidos e a Rússia, gira em torno de suas abordagens em relação a Israel e à Palestina. Os Estados Unidos continuam a oferecer apoio inabalável a Israel, enfatizando o direito de Israel à autodefesa, devido a seus interesses estratégicos na região. Em contraste, a Rússia propôs uma resolução que pede um cessar-fogo humanitário imediato e condena a violência contra civis. As posturas contrastantes dessas duas grandes potências destacam a complexidade da situação no Oriente Médio e as dinâmicas de poder em jogo.

Afinal Israel tem o direito de se defender?

O direito de legítima defesa, tal como estabelecido na Carta das Nações Unidas, é um princípio fundamental do direito internacional. Ele concede aos Estados o direito de se defenderem contra ameaças armadas. No entanto, a aplicação desse princípio no conflito Israel-Palestina levanta sérias preocupações.

Uma defesa proporcional?

A falta de proporcionalidade nas ações de defesa de Israel é um ponto de crítica central que merece uma análise mais profunda. As respostas de Israel às ameaças percebidas muitas vezes excedem em muito o critério de uma reação proporcional, devido ao seu potencial bélico e tecnológico avançado. Um exemplo preocupante disso é a ofensiva israelense na Faixa de Gaza, que resultou em um grande número de vítimas palestinas, incluindo civis.

De acordo com informações do jornal Brasil de Fato, os dados são alarmantes: “pelo menos 3 mil crianças em território palestino perderam suas vidas, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. No total, 7.028 pessoas foram mortas e 18.400 ficaram feridas em decorrência dos bombardeios. Do lado israelense, estima-se que o total de vítimas fatais seja de 1.400, com mais de 5.400 pessoas feridas”. Esses números levantam sérias preocupações sobre o cumprimento dos princípios do direito internacional, que exigem que qualquer uso de força seja estritamente necessário e proporcional à ameaça percebida.

A desproporcionalidade nas ações militares lança dúvidas sobre o respeito de Israel pelas normas e regulamentos internacionais que buscam preservar vidas humanas e minimizar danos a civis em conflitos armados. Esse é um aspecto que alimenta críticas contundentes em relação às operações de Israel no massacre contra a Palestina e levanta questões sobre como o direito de defesa está sendo interpretado e aplicado nesse contexto.

Territórios ocupados e o Direito Internacional

Outro aspecto crucial é a questão dos territórios ocupados. Israel controla a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza, territórios reivindicados pelos palestinos para o estabelecimento de um Estado independente. A expansão contínua dos assentamentos israelenses na Cisjordânia tem sido amplamente condenada pela comunidade internacional, incluindo a ONU.

Essa expansão não apenas prejudica as perspectivas de uma solução de dois Estados, mas também gera alegações de que Israel está agindo em violação do direito internacional, algo que faz com frequência. Nesse contexto, o direito de Israel à legítima defesa é questionado, uma vez que o próprio conceito de legítima defesa pressupõe a existência de um Estado soberano e um território reconhecido, direito que é negado ao povo palestino a décadas.

Uso de espionagem contra a Palestina e o Direito Internacional

É interessante levantar também que Israel é criadora e detentora de tecnologias de Spyware, como a ferramenta Pegasus, desenvolvida pela empresa israelense NSO Group, que possui a capacidade de infectar dispositivos iOS e Android e, a partir daí, permite ao usuário o acesso a localização geográfica do dispositivo, a leitura e cópia de mensagens recebidas, o acesso às câmeras e microfones sem o conhecimento da vítima. De acordo com a NSO, a tecnologia tem como objetivo o combate ao terrorismo e organizações criminosas, mas, conforme denúncias da Anistia Internacional, é utilizada para espionar ativistas e jornalistas. A utilização de spywares na população da Palestina por parte de Israel já é denunciada por ativistas e jornalistas desde 2021, sendo usada para monitorar a população e minar qualquer tentativa de retaliação à ocupação israelense na região ao longo dos anos.

A controvérsia da legalidade do uso de Spyware contra palestinos no Direito Internacional se inicia ao analisar elementos da Carta das Nações Unidas, em especial ao artigo II, que discute deveres e direitos dos países-membros: “Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, ART. II, PAR. 4).

Existem contra-argumentos que alegariam o uso de legítima defesa antecipada, uma vez que Israel estaria utilizando esses mecanismos para analisar e neutralizar possíveis contra-ataques à sua população. Conforme reconhecido no caso Estados Unidos v. Nicarágua: “A legítima defesa quer seja individual ou coletiva só pode ocorrer na sequência de uma agressão armada (CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, 1986)”. Contudo, é importante pontuar que a Alta Comissária da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Michelle Bachelet, levantou grande preocupação com o uso de Spyware pelo governo de Israel, apontando que “as medidas de vigilância só podem ser justificadas em circunstâncias estritamente definidas, com um objetivo legítimo. Esses alvos devem ser necessários e proporcionais a tal objetivo (BACHELET, 2021)”. Assim, é possível reafirmar novamente a instância do princípio de proporcionalidade no caso.

Pressão internacional e desafios para a paz

A pressão internacional tem se intensificado sobre Israel, especialmente por parte de países e organizações que apoiam a causa palestina, devido às décadas de ataques e massacres sanguinários. A ampla condenação das ações de Israel levanta questões sobre o papel das potências globais na busca de uma solução equitativa para o conflito.

Apesar das resoluções da ONU instando as partes a negociar um acordo abrangente, a busca por uma solução justa e duradoura permanece esquiva. O impasse no processo de paz, a violência recorrente e as crescentes tensões na região continuam a desafiar os esforços para uma resolução pacífica.

Repensando o direito de Defesa

O direito de Israel de se defender é motivo de questionamento, e requer uma análise crítica, especialmente à luz das complexas circunstâncias do conflito Israel-Palestina. A afirmação de legítima defesa deve ser cuidadosamente examinada com base na proporção das ações, na adesão às normas do direito internacional e na consideração dos territórios ocupados. É inegável que as ações de Israel na Faixa de Gaza, sob o comando de Benjamin Netanyahu, têm suscitado preocupações devido à magnitude dos ataques e à destruição resultante, causando um grande genocídio ao povo palestino, o que levanta sérias questões sobre o respeito pela vida humana.

Conforme o conflito persiste, afetando profundamente a vida de palestinos e israelenses, é imperativo manter a busca por soluções justas e sustentáveis como prioridade. Abordar de maneira crítica o direito de defesa de Israel é um passo crucial em direção a uma compreensão mais aprofundada do conflito e ao estabelecimento de esforços contínuos para promover a paz na região, sempre com respeito aos direitos e aspirações de todas as partes envolvidas.

Referências Bibliográficas:

CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. Military and Paramilitary Activities in and Against Nicaragua. Merits. Judgement. ICJ Reports, 1986. Disponível em: <https://www.icj-cij.org/sites/default/files/case-related/70/9615.pdf>

ARDAM, J. Necessity, Proportionality and the Use of Force by States. 1 ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2004.

GRAY, C. The Use of Force and The International Legal Order. In: EVANS, M.D. (Ed). International Law. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 618-648.

GREEN, J. The International Court of Justice and Self-Defense in International Law. Portland: Hart Publishing, 2009.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Carta das Nações Unidas, 1945. Disponível em: <https://brasil.un.org/pt-br/91220-carta-das-na%C3%A7%C3%B5es-unidas>

SCHWEBEL, Stephen M.. Justice in International Law: Selected Writings. Cambridge University Press, 1994.