Por Miguel Urbán
Eurodeputado pelos Anticapitalistas do Estado Espanhol e membro do Conselho Consultivo de Viento Sur.
Tradução: André Freire
No dia 4 de fevereiro, Nayib Bukele proclamou-se vencedor das eleições presidenciais de El Salvador, anunciando sua reeleição sem sequer esperar que a contagem oficial de votos terminasse em meio a um processo eleitoral questionável, para dizer o mínimo[1]. Mesmo assim, ele voltará a governar o país centro-americano por mais cinco anos, e seu partido, “Novas Ideias”, também vai controlar a Assembleia Legislativa, com 58 dos 60 deputados, o que significa mais cinco anos de controle absoluto sobre todas as instituições e poderes do Estado.
Bukele foi apoiado nas urnas apesar de ter contornado a proibição constitucional que o impedia de revalidar sua candidatura e seu polêmico estado de emergência, que suspendeu um bom número de direitos civis no país e prendeu mais de setenta mil pessoas sem o devido processo legal. Uma situação duramente criticada pela oposição, que há muito acusa Bukele de ser um perigo para a democracia no país.
De fato, diante das críticas sobre as restrições democráticas em El Salvador, por parte da imprensa e de organizações não-governamentais (ONGs) de direitos humanos, o vice-presidente Félix Ulloa declarou ao jornal The Times que ambos (em referência a Bukele) estavam "eliminando um sistema democrático que só beneficiou os corruptos e deixou o país com dezenas de milhares de pessoas assassinadas (...) A essas pessoas que dizem que a democracia está sendo desmantelada, minha resposta é sim. Não estamos desmontando, estamos eliminando, estamos substituindo por algo novo."
Pouco depois de Bukele ser proclamado vencedor, os ministérios das Relações Exteriores ocidentais, tão inclinados a denunciar as restrições democráticas na região, neste caso se apressaram em parabenizar o presidente reeleito. Nos últimos anos, Bukele se tornou uma das principais referências latino-americanas da onda reacionária global, participando em 2024 junto com Trump, Milei, Abascal e outros líderes da extrema direita internacional na Conferência de Ação Política Conservadora, um dos principais eventos internacionais da extrema direita e pontapé inicial da campanha presidencial de Trump.
Mas quem é Bukele?
Nayib Bukele é marqueteiro, literalmente. Ele é um empresário do setor de comunicação cuja família é dona da empresa de publicidade Obermert, sendo famoso em todo o mundo por sua obsessão pelo X (antigo Twitter): desde sua chegada à presidência, ele contrata, demite e dá ordens através da rede social, o que lhe rendeu o apelido de presidente millennial. Um elemento que soube se promover para mostrar-se como um rosto irreverente contra o bipartidarismo que foi a espinha dorsal do sistema político salvadorenho no período posterior aos Acordos de Paz (1992) e que ele acusa de ser corrupto e acabado. Aliás, o próprio Bukele chegou a afirmar durante a conferência de imprensa da votação das últimas eleições presidenciais que: "El Salvador nunca teve democracia". E acrescentou: "Esta é a primeira vez na história que El Salvador tem uma democracia".
O início da carreira política de Bukele começou como prefeito do município de Nuevo Cuscatlán, em 2012, sob a bandeira da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). Sua popularidade facilitou que ele se tornasse prefeito de San Salvador, capital do país, em 2015. Um passo que tradicionalmente antecede a candidatura presidencial em El Salvador. Mas uma série de divergências com a FMLN levou à sua expulsão do partido e à fundação do “Novas Ideias” (2017), partido político de Bukele. Naquele momento, sua liderança inconteste guiava-se por ideias neoliberais na esfera econômica e certo bem-estar na esfera social, embora que no discurso se posicionasse como uma força sem ideologia, favorecendo eixos como o combate à corrupção e a segurança.
Nas eleições presidenciais de janeiro de 2019, Bukele teve que se apresentar como candidato pelo partido GANA (Grande Aliança Nacional), uma cisão de direita da ARENA (Aliança Republicana Nacionalista) e envolvido em casos de corrupção. Esta foi a única alternativa para concorrer às eleições devido a todos os impedimentos que os órgãos estatais colocaram em prática para registrar o “Novas Ideias”, apesar de cumprir todos os requisitos devido à ofensiva aberta que a FMLN desencadeou contra Bukele e seu partido, que no final apenas acelerou a crescente popularidade do agora presidente. No final, Bukele venceu as eleições confortavelmente com 53,10% dos votos, deixando muito atrás da FMLN (20%, com mais de um milhão de votos transferidos para Bukele) e da ARENA (22% dos votos).
O fenômeno Bukele surgiu após os fracassos de quase trinta anos de sucessivos governos onde se alternavam os principais partidos. Algumas décadas que resultaram em três presidentes perseguidos pela Justiça por casos de corrupção, aumento das desigualdades sociais, aumento da migração/expulsão dos setores mais empobrecidos, promessas não cumpridas da direita e da esquerda e, claro, a expansão e fortalecimento incontroláveis da violência de gangues em todo o país. El Salvador passou a ser reconhecido como um dos países mais perigosos do mundo. O fenômeno Bukele é resultado desse contexto de miséria, desigualdade, corrupção e violência.
O Messias Evangélico
Bukele e seu novo partido, construíram sua primeira vitória presidencial com base em um discurso de hostilidade ao status quo (a dualidade partidária, política, corrupção) e um voto de protesto. Mas seu verdadeiro ponto de apoio social e base eleitoral têm sido as igrejas evangélicas, construindo desde então uma autêntica aliança e devoção partidária, ao mesmo tempo em que atuam como referências de legitimidade social e progressivamente, a ideologia e a política foram substituídas pela retórica cristã evangélica e pela interpretação da Bíblia. Não podemos perder de vista que El Salvador é um dos países da América Latina com o maior número de igrejas evangélicas, que têm uma importante implantação entre as classes populares devido às suas obras de caridade, ao combate à violência estrutural e à corrupção.
Um bom exemplo das tentativas de Bukele de atrair igrejas evangélicas desde o início de sua campanha presidencial foi o convite a um grupo significativo de pastores evangélicos para compor, caso vencesse, uma Secretaria de Valores. Uma instituição que acompanharia os esforços das igrejas evangélicas no terreno. Assim, Bukele recebeu a unção de um grupo de pastores evangélicos, entre eles, Romel Guadrón, pastor da Igreja Espírito de Vida, o mesmo que na época ungiu o ex-presidente Elías Antonio Saca, o primeiro presidente a quebrar a tradição de que o líder da Igreja Católica era o único a abençoar o novo governo. incluindo um pastor evangélico. No evento, o pastor Romel tomou a palavra para afirmar que veio em nome de Jesus para aclamar o novo presidente da República de El Salvador. "Quero dizer-lhe que você é o homem que Deus buscou para este país (...) Acredite, é assim, que eu não ungi mais ninguém, que esse caso é diferente; Senti isso no meu coração”[2]. Com esse ato, ajoelhado no chão, Bukele confirmou o apoio das igrejas evangélicas à sua candidatura à presidência de El Salvador em 2019.
Em julho de 2019, Franklin Cerrato, um proeminente pastor evangélico entre a comunidade migrante salvadorenha nos Estados Unidos, organizou um encontro de líderes evangélicos entre o Movimento Pastores por El Salvador e a Coalizão Latina por Israel (LCI). Entre os principais organizadores do evento com líderes evangélicos estava Mario Bramnick, um dos pastores próximos e influentes do círculo do então presidente Donald Trump. Bramnick é cubano-americano e fundador da LCI, uma organização sionista cristã com sede em Miami que mobiliza líderes políticos e religiosos latino-americanos para apoiar o reconhecimento de Jerusalém como o centro da atividade política e religiosa de Israel. Além disso, é ativista antiaborto, contra a educação sexual e o reconhecimento e garantia do respeito aos direitos das minorias sexuais.
No encontro com Bukele, Bramnick tomou a palavra para afirmar que: "Estamos em um estágio de cumprimento da profecia dos 70 anos. O tempo de cativeiro de El Salvador acabou, o Senhor está levantando Cyros não só nos Estados Unidos, mas na América Latina. Bolsonaro é um Ciro, o presidente Bukele é um Ciro para esse tempo, a mão de Deus está sobre ele"[3], disse, aludindo a Ciro, o Grande, rei persa que, segundo a Bíblia, conquistou a Babilônia e libertou os judeus.
Pouco depois de vencer as eleições presidenciais de 2019, Bukele viajou para Washington, onde deu uma palestra para o “think tank” de extrema direita Heritage Foundation, e na qual prometeu rever a relação entre El Salvador e a China. Lá, ele assumiu a responsabilidade de reduzir a migração sem documentos, prometeu um pequeno Estado e novas liberdades para a iniciativa privada. Ao final do evento, ele também disse que Daniel Ortega e Nicolás Maduro "podem se despedir de seus aliados em El Salvador". Tudo para agradar ao governo Trump. Até o próprio Bukele usou seus contatos com a comunidade evangélica americana e pessoas próximas aos círculos de poder na Casa Branca para fortalecer suas relações com o governo Trump, que ameaçou retirar a ajuda econômica a El Salvador. É importante lembrar que o ex-vice-presidente dos EUA, Mike Pence, e o ex-secretário de Estado, Mike Pompeo, ambos cristãos evangélicos, mantiveram laços estreitos com os ministérios do Capitólio. Trata-se de uma organização religiosa que os dois ex-altos funcionários do governo Trump patrocinaram a partir da Casa Branca e que se dedica a evangelizar "líderes políticos do mundo" para legislar de acordo com seus princípios bíblicos[4].
Em 2014, durante a campanha para prefeito de San Salvador, Bukele se reuniu com líderes da comunidade LGBTI para prometer se tornar um político "do lado certo da história" para fortalecer os direitos da população, em uma clara referência, entre outras questões, à igualdade no casamento. Quatro anos depois, tanto na campanha presidencial quanto como presidente, ele deu passos decisivos que fizeram o movimento evangélico saber que sua agenda moral era compatível com seu pensamento em questões centrais como o apoio ao casamento heterossexual e sua rejeição ao aborto, demonstrando que o ungido pelos evangélicos sabe pagar suas dívidas. O pastor Franklin Cerrato tem sido um dos lobistas mais insistentes para garantir que o presidente esteja comprometido com os valores evangélicos pró-família e pró-vida. Após a unção dos evangélicos, e uma vez eleito presidente, ele convidou o pastor da Igreja River, Dante Gebel, um rockstar entre os evangélicos, para dividir o palco com o arcebispo de San Salvador, durante a transferência de poder para abençoar seu governo.
De fato, o próprio Bukele alcançou ressonância internacional pouco depois de entrar em seu primeiro mandato presidencial, quando, em fevereiro de 2020, invadiu o Palácio Legislativo com policiais e militares, para forçar os resultados da sessão plenária, uma decisão tomada após "ouvir a Deus". Após um show de um televangelista, ele saiu, declarando que: "se quiséssemos apertar o botão, apenas apertaríamos o botão. Mas eu pedi a Deus e Deus disse 'paciência'. Paciência, paciência".
Referências e acenos a igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais têm sido uma constante ao longo de sua gestão. No mesmo discurso de celebração de sua reeleição presidencial, Bukele voltou a oferecer sua imagem mais messiânica, com constantes referências a Deus como redentor de El Salvador e, evidentemente, a ele como instrumento divino para essa redenção. "Deus quis curar o nosso país e curou-o (...) Vamos dar a glória (a Deus) se quisermos. Como isso os afeta, como os incomoda? (...) Talvez eles sejam afetados pelo exemplo, porque talvez as populações de seus países, que foram introduzidas ao ateísmo, acreditem em Deus novamente." As referências divinas não são novas; Eles o acompanharam durante toda a sua presidência, onde as poderosas igrejas evangélicas do país se tornaram um pilar fundamental de seu sucesso e apoio popular. Bukele estabeleceu uma relação simbiótica com o fundamentalismo evangélico, que se consolidou em seus anos de mandato e que, longe de ser simplesmente discursiva, é uma aliança que dá às igrejas cotas de poder e tratamento especial do governo em troca de sustentar o apoio popular e simbólico do presidente. Nessa aliança reacionária, quem perde são os direitos das mulheres, as diversidades sexuais, o meio ambiente e as classes empobrecidas que são regidas pela Bíblia. Na prática, a interpretação da Bíblia tem mais peso do que as leis do país ou a própria Constituição, como pode ser visto em deputados e governantes que governam e legislam com discursos religiosos e justificam com isso qualquer decisão, mesmo que isso signifique tomar medidas contra os direitos, mas em nome de Deus.
Assim, o neofundamentalismo evangélico, como ocorreu com Bolsonaro, forneceu uma base social, discursiva e eleitoral ao fenômeno Bukele. A importância política dos evangélicos não reside apenas no seu crescimento exponencial ou na sua densa rede de meios de comunicação, mas sobretudo na sua inserção popular e na capacidade de atrair votos, o que está permitindo dar um novo impulso e, sobretudo, novos eleitores aos partidos conservadores em todo o continente.
A ausência ou a presença muito fraca do Estado nos bairros populares da América Latina tem facilitado o estabelecimento de igrejas evangélicas com a prática do chamado cristianismo da tigela de arroz, ao mesmo tempo em que presta assistência de diferentes tipos, desde cuidados de saúde ou cuidados infantis até a busca de emprego, projetos para o desenvolvimento e/ou construção de igrejas. gerando redes comunitárias de apoio que de outra forma não existiriam. Dessa forma, as igrejas evangélicas implantaram estratégias para conter as forças progressistas, deslocando-se habilmente nos setores populares e marginais onde essas forças foram perdendo presença e disputando o terreno tradicional de implantação dos movimentos de esquerda como nenhuma organização conservadora havia feito antes.
Da mesma forma, a popularidade dos templos e o alto número deles nos bairros latino-americanos é propiciada pelo fato de que os fiéis podem abrir suas próprias igrejas mesmo como franqueados de um templo pai. Essa estratégia de expansão permite que permeiem diferentes realidades sociais que podem ser hierarquizadas de acordo com os países-contexto e as características de classe dentro deles. Devido ao profundo classismo que existe nessas sociedades, os setores mais marginalizados (indígenas, favelas, membros de gangues) não terão acesso a um determinado tipo de igreja evangélica (devido à sua localização, classe social e quantidade do dízimo exigido), a não ser a de seu bairro ou favela, o que facilita a geração de um deus de bolso, adaptado às classes subalternas. Ou seja, há uma adaptação na prática da teologia da prosperidade em relação às classes sociais, possibilitando que as elites vejam seus interesses salvaguardados no nível macro, enquanto as classes empobrecidas e desesperadas encontram salvo-condutos e respostas imediatas. Tudo sob o guarda-chuva comum da religião.
Por exemplo, na América Central, essa implantação de bairro permite que eles apliquem sua teologia da prosperidade com o propósito de conversão com o resgate de membros de gangues (o ministério da restauração, como missão específica dessas igrejas em contextos sociais marginalizados) e outras podridão, qualificadas como inimigas públicas. Assim, em países como El Salvador, Guatemala e Honduras, as igrejas evangélicas e o evangelicalismo também se apresentam como uma resposta eficaz à violência social, um dos problemas mais sufocantes para a maioria. Da mesma forma, para responder a esses contextos de violência social, as implicações dessa prática de fé incluem o renascimento da militarização e do controle social, que acompanha o ressurgimento do autoritarismo na região. Isso se conecta perfeitamente e fornece uma base popular ao populismo punitivo de Bukele e suas derivas autoritárias.
O Justiceiro salvadorenho
Bukele vendeu-se como uma figura nova, longe do passado político salvadorenho e, por um momento muito fugaz poderia ter sido, mas quaisquer dúvidas neste sentido foram sanadas desde que assumiu o cargo, iniciando a consolidação de uma personalidade messiânica e, pior ainda, de aspirações autoritárias. Desde sua posse como presidente, seu gabinete mais próximo é formado por amigos, sócios, ex-funcionários e até familiares, recaindo no clientelismo servil que o Estado salvadorenho sofre há tanto tempo. De fato, uma investigação do jornal El Faro trouxe à tona como, apesar de não ocuparem publicamente cargos formais, dez venezuelanos compõem um círculo de poder em El Salvador que só está abaixo do presidente, seus irmãos e outros parentes. Vindos da oposição de extrema-direita venezuelana, eles estão acima do gabinete de ministros e responsáveis por alguns dos planos mais decisivos que estão sendo executados no governo salvadorenho. Um verdadeiro gabinete paralelo que funciona como uma ligação entre o clã da família Bukele, o governo e o partido Novas Ideias.
El Salvador foi um dos países com o maior número de homicídios no mundo – em média, 9 salvadorenhos são assassinados diariamente – durante décadas os diferentes governos buscaram com políticas repressivas a solução para a violência causada principalmente pelas maras ou gangues, mas só conseguiram piorar a situação. Bukele, como o resto dos presidentes do país que o antecederam, fez da luta contra a violência de gangues um de seus principais elementos programáticos. O próprio GANA, formado por ex-deputados da ARENA, e que Bukele usou como veículo legal para concorrer às eleições, é um partido ultraconservador cujo deputado mais ilustre, Guillermo Gallegos, chegou a defender grupos paramilitares de extermínio como o Sombra Negra e propôs armar a população civil para fazer justiça com as próprias mãos contra membros de gangues.
O populismo punitivo tem sido um tema comum nos diferentes governos de El Salvador, independentemente de sua tonalidade política. A diferença é que Bukele a usa, impulsionada por sua popularidade e apoio social ligado às igrejas evangélicas, como forma de reforçar o autoritarismo e o personalismo de seu governo e, ao mesmo tempo, acabar com a autonomia dos diferentes poderes.
Durante a pandemia e protegido pelo álibi do confinamento e das medidas anti-covid-19, em uma de suas redes de rádio e televisão, Bukele pediu aos agentes da lei que dobrassem os braços ou pulsos daqueles que não cumprissem a quarentena e saíssem às ruas. Mas foram as fotografias de centenas de prisioneiros salvadorenhos tatuados vestindo apenas suas roupas íntimas, amontoados no chão de cimento, em um abraço forçado um após o outro, que deram a volta ao mundo como uma imagem angustiante do autoritarismo de Bukele. Diante da óbvia ameaça de contágio viral, sem falar na clara violação dos direitos humanos dos presos, as imagens pareciam ter sido divulgadas sem autorização. Mas não, eles foram liberados pelo gabinete do presidente Bukele quando ele anunciou o estado de emergência nas prisões, em sua luta contra as gangues. Um exemplo paradigmático do populismo punitivo do governo de El Salvador, mesmo sabendo que tais imagens trariam críticas do exterior, mas seriam muito bem recebidas dentro de um país devastado pela violência de gangues.
O presidente decretou emergência prisional, embora o procedimento indique que ela deve ser solicitada pela direção de cada estabelecimento. Apesar disso, vários presídios do país começaram a fechar as portas das celas onde membros de gangues são mantidos com placas de metal. O próprio Bukele anunciou em sua conta no Twitter desta forma: "A partir de agora, todas as celas de gangues em nosso país permanecerão lacradas. Você não poderá mais ver fora das celas. Isso impedirá que eles consigam entrar no corredor. Eles estarão lá dentro, no escuro, com seus amigos da outra gangue”[5].
A chave do populismo punitivo é criar um sentimento de emergência e alarme social para convencer a maioria da população da necessidade de medidas excepcionais e incomuns para combater a insegurança dos cidadãos. Uma tentativa de introduzir na sociedade uma mentalidade bélica para resolver conflitos com base nos conceitos de inimigo interno e inimigo externo. Dessa forma, o populismo punitivo configura-se como a demanda, presumivelmente popular, dirigida ao poder público com mão mais forte, com maior eficiência diante da criminalidade, da qual emerge a contínua ação repressiva contra os diferentes, estigmatizando os pobres e a pobreza.
A demagogia punitiva de Bukele simplifica a solução para a insegurança com mais violência estatal, chegando a fazer apologia ao assassinato, garantindo a impunidade das forças de segurança e do Exército no exercício da violência, transmitindo a ideia de que a repressão e a prisão porão fim ao crime e à corrupção. Assim, o fenômeno das maras e gangues é abordado a partir da promoção de uma visão de que: "o problema do crime são os indivíduos violentos e não o que o sociólogo Randall Collins chamou de 'situações violentas' [6]. Uma visão individualizada da criminalidade e dos problemas sociais, que ignora raízes intimamente ligadas ao empobrecimento da população, após décadas de ajustes estruturais neoliberais que geraram um contexto de violência estrutural.
Na verdade, as políticas punitivas do governo salvadorenho não são dirigidas nem contra as elites nem contra as classes médias, mas têm um claro corte de classe e estão focadas nas pessoas empobrecidas e nos bairros populares. As mesmas pessoas que durante trinta anos estiveram sob o controle das gangues, e hoje são marcadas pela repressão do governo e de seus habitantes, são as que lotam cemitérios e presídios. Porque, não nos enganemos, o populismo punitivo de Bukele significou mais do que uma guerra contra as maras, uma guerra contra os pobres, que são aqueles que sofreram na própria carne suas políticas de cerceamento de direitos, prisão e morte.
O estado de emergência e a deriva iliberal de El Salvador
O primeiro a cunhar o conceito de iliberalismo foi o cientista político americano Fareed Zakaria, no final dos anos 1990. Zakaria definiu-o como uma forma de governo no meio caminho entre a democracia liberal tradicional e um regime autoritário, um sistema em que certos aspectos formais da prática democrática são respeitados, como as eleições, mas outros igualmente fundamentais são ignorados, como a separação de poderes, enquanto os direitos civis são violados. Nos últimos tempos, em que a extrema-direita conseguiu conquistar o poder em diferentes democracias liberais, vimos como está a se desenvolver o caminho iliberal: ataca a independência dos juízes e dos meios de comunicação social, despreza os direitos das minorias e mina a separação de poderes.
O ataque ao Estado de Direito e às liberdades das minorias tem sido uma constante nos diferentes governos da extrema-direita, de Trump a Bolsonaro, passando por Modi, Duterte, Bukele, Erdogan, Orbán ou Putin, todos eles líderes que fizeram dos ataques à democracia o leitmotiv da sua ação governativa. Dessa forma, durante os primeiros anos do governo Bukele, ele eliminou os freios e contrapesos institucionais que poderiam existir. Em 2021, conseguiu fazer com que a Assembleia Legislativa fosse composta majoritariamente por membros de seu partido, Novas Ideias, que aproveitou para substituir os principais ministros do STF, permitindo-lhe, poucos meses depois, reinterpretar a Constituição para legalizar a possibilidade de disputar novamente a presidência.
Nesse sentido, a escassa resistência às pretensões autoritárias de Bukele mostra o relativo fracasso da consolidação da democracia salvadorenha mais de três décadas após a assinatura dos Acordos de Paz. Quando Bukele criou sua "fórmula mágica" para reprimir gangues, a palavra democracia significava pouco ou nada para a maioria. Nesse vácuo, formas autoritárias e repressivas tiveram um impacto concreto e tangível na vida de grande parte dos salvadorenhos: a redução da violência e o aumento da qualidade de vida cotidiana de muitas pessoas. El Salvador fechou 2023 com uma taxa de homicídios de 2,4 por 100 mil habitantes. Isso é muito mais do que o que eles receberam nos últimos trinta anos e, diante disso, para essa maioria, os custos que a democracia está pagando não parecem muito altos. [7]
O elemento-chave na suposta guerra às gangues foi o estado de emergência que Bukele decretou em março de 2022, dando poderes à polícia e aos militares para processar e prender qualquer suspeito de fazer parte das gangues. Um verdadeiro colapso do Estado de direito salvadorenho que resultou na detenção de mais de 71.000 pessoas em um ano e meio, o que representa 1,6% da população que foi privada de liberdade sem o devido processo legal ou o respeito aos direitos humanos mais básicos. Na verdade, o próprio governo salvadorenho reconheceu oficialmente que pelo menos 6.000 pessoas foram detidas injustamente. Milhares e milhares de detenções arbitrárias em que se destacam dois perfis: a pobreza e a condição de classe dos detidos, por um lado, e o perfil de ativistas e defensores dos direitos humanos, por outro. Uma verdadeira guerra contra os pobres e o tecido social salvadorenho. Soma-se a essa situação o aumento nos últimos anos de pessoas desaparecidas, a grande maioria delas jovens e mulheres, que só entre 2020 e 2022, foram registrados em 4060 casos[8].
Na deriva iliberal de Bukele, ele destacou sua guerra particular contra a liberdade de imprensa, recusando-se a aturar qualquer voz crítica de suas políticas. Para isso, o presidente usou três estratégias para silenciar a liberdade de informação no país: assédio, espionagem e perseguição à imprensa, que não se curvou aos seus desígnios. Assim, tem sido comum ouvir Bukele acusar a mídia independente de ter fontes falsas, enganar a população e cometer ilegalidades como sonegação fiscal e lavagem de dinheiro.
Uma reportagem da agência Reuters revelou, em novembro de 2022, que havia uma "fazenda de trolls" a serviço do presidente. "uma poderosa operação de comunicação que permitiu a Bukele influenciar o que os salvadorenhos leem, veem e ouvem sobre seu governo como nenhum líder anterior de El Salvador[9]." Da mesma forma, o governo de Bukele, como outros na região, também foi acusado de usar o spyware israelense Pegasus para espionar jornalistas. De acordo com um relatório da organização canadense CitizenLab, foram confirmados 35 casos de jornalistas e membros da sociedade civil cujos telefones foram infectados com sucesso com o spyware Pegasus da NSO, entre julho de 2020 e novembro de 2021. Uma situação que se agravou desde a aprovação do Regime de Emergência, em março de 2022, que permitiu ao Governo limitar as garantias constitucionais para, entre outras coisas, acabar com o sigilo da correspondência privada.
Além disso, o governo de Bukele criminalizou a ação da imprensa, por meio de visitas de agentes policiais a escritórios de veículos de comunicação independentes com um objetivo puramente intimidatório, a abertura de processos legais contra alguns meios de comunicação. Assim como a promoção de leis que limitem o exercício da liberdade de expressão, como a que estabelece penas de prisão de 10 a 15 anos para quem, por meio do uso de tecnologias de informação e dos meios de comunicação, veicular mensagens originárias ou supostamente oriundas de grupos criminosos que possam gerar pânico na população. Vinculando explicitamente a mídia às gangues, estigmatizando-as, criminalizando-as e apontando-as à população como parte de seus objetivos na suposta guerra contra as gangues.
O caso mais emblemático da perseguição de Bukele à mídia é o da mídia digital El Faro, referência na região, que revelou inúmeros casos de corrupção que afetam a administração salvadorenha ou que o próprio Bukele negociou com as gangues, apesar de o presidente ter garantido que nunca o faria. Isso levou a todo tipo de assédio a seus trabalhadores e criminalização, com a abertura de uma investigação de lavagem de dinheiro contra El Faro. Devido a esta situação, este meio de comunicação teve de transferir a sua estrutura jurídica e logística para a Costa Rica e alguns dos seus jornalistas foram para o exílio, embora continuem trabalhando no terreno em El Salvador.
O Efeito de Imitação no Continente
A narrativa usada pelo próprio Bukele, que se vangloria de uma "vitória eleitoral esmagadora" em sua reeleição como presidente de El Salvador, somada a uma verdadeira pandemia de violência que o continente latino-americano está sofrendo, fortaleceu uma espécie de efeito de contágio e imitação de suas políticas de populismo punitivo e cerceamento de liberdades. A recém-nomeada ministra da Segurança da Argentina, Patricia Bullrich, disse poucos dias antes das eleições em El Salvador que seu governo está "interessado em adaptar o modelo de Bukele". Mas não é o único: o prefeito do distrito de La Florida, em Santiago, Rodolfo Carter, encontrou no populismo punitivo contra o crime de drogas um nicho político a partir do qual lança sua candidatura presidencial. Assim, propôs demolir as supostas casas dos traficantes de drogas em seu município, iniciativa que não tem amparo legal e que é totalmente arbitrária, mas que tem contado com o apoio entusiástico da televisão. Isso fez com que ele aparecesse aos olhos do público como uma das figuras na luta contra o crime no Chile. A este respeito, o prefeito de Lima disse: "Bukele conseguiu um milagre em El Salvador", elogio ao qual o primeiro-ministro peruano e os juízes do tribunal de justiça se juntaram.
Mas estes não são casos isolados, mas uma tendência geral que está a ganhar cada vez mais adeptos de forma preocupante. Em países vizinhos a El Salvador, como Guatemala e Honduras, houve marchas de cidadãos a favor de Bukele. A ex-candidata presidencial na Guatemala, Zury Ríos, filha do ditador Ríos Montt, disse na última campanha que "El Salvador é um modelo a imitar"; enquanto o ministro do Interior de Honduras disse que "há coisas a aprender com El Salvador", um país que, apesar de ter um governo de esquerda, está sendo acusado por ONGs de direitos humanos de aplicar uma política prisional semelhante à de Bukele. Bem como pela aprovação dos chamados "estados parciais de exceção" para combater o crime nas áreas mais inseguras das cidades hondurenhas. O modelo de Bukele foi implementado em 120 comunidades, onde as garantias constitucionais também foram suspensas e os militares foram mobilizados para estabelecer a ordem. A este respeito, o ministro da Segurança de El Salvador afirmou, em 2022, que eles se reuniram com seus homólogos guatemalteco e hondurenho para explicar como o plano de Bukele funcionava, dizendo: "O que conseguimos em El Salvador está disponível para todos os países".
Um dos países latino-americanos mais afetados pelo fenômeno do crime organizado é o Equador, conhecido por ser tradicionalmente um dos países mais seguros do continente, que se tornou um dos mais perigosos desde a pandemia do coronavírus. Uma situação que chegou a ser descrita pelo seu presidente, Daniel Noboa, como um "estado de guerra interna", que o levou a declarar estado de emergência, permitindo que os militares saíssem às ruas para vigiar cidadãos e infraestruturas estratégicas nas principais cidades do país. Entre as medidas anunciadas pelo governo está a construção de dois presídios de segurança máxima, com o próprio Noboa afirmando que eles serão: "os mesmos (de El Salvador) porque é a mesma empresa, o mesmo projeto que fez (para) as prisões do México e de El Salvador. Para todos os bukelelovers, é uma prisão igual. Se você quiser ir, passear, conhecê-la, ficar uma noite, cometer um crime."
Tanto que, diante da orfandade de líderes da direita colombiana após a derrota eleitoral das últimas eleições presidenciais, Bukele substituiu o ultradireitista Álvaro Uribe como inspiração para os setores mais extremistas da direita colombiana, como a senadora María Fernanda Cabal, que se declarou admiradora do presidente. O semanário colombiano Semana chegou a afirmar em uma reportagem especial sobre o fenômeno Bukele que: "o presidente de El Salvador é hoje o líder político mais popular do continente e especialistas o classificam como uma figura de classe mundial. Ele tem apenas 41 anos e o que fez em seu país é considerado quase milagroso."
A extensão do fenômeno Bukele do populismo punitivo não está apenas permeando governos ou partidos conservadores, mas também está afetando cada vez mais setores populares e as classes médias que, diante do dilema de escolher entre uma democracia esvaziada de conteúdo, após décadas de choque neoliberal, e autoritarismo securitário, escolhem a ficção de uma tal segurança. A noção de que somente com medidas emergenciais e cerceamento de liberdades o crime organizado e a violência podem ser enfrentados está se expandindo perigosamente. Isso significa introduzir na sociedade uma mentalidade de guerra para resolver conflitos baseada no conceito de inimigo, palavra-chave no pensamento de um dos grandes ideólogos do regime nazista, Carl Schmidt. Foi sobre esse conceito que todo o direito penal da ditadura hitlerista foi construído: o inimigo não é readaptado, nem reintegrado, nem ressocializado, ele é simplesmente morto, derrotado, destruído. Dessa forma, o populismo punitivo configura-se como a demanda, presumivelmente popular, dirigida ao poder público com mão mais forte, maior eficiência diante da criminalidade e ação repressiva contínua contra os diferentes.
Nessa lógica punitiva, a pobreza é construída como inimiga, mas o objetivo não é tanto acabar com a pobreza, mas acabar com os pobres. Nesse sentido, passamos da abordagem da pobreza da extensão do Estado social para a substituição por um Estado policial. Diante da impossibilidade de resolver a insegurança derivada das políticas de ajuste e austeridade, problematizam-se fenômenos sociais como a migração ou a pobreza. Problemas que se propõem resolver com mão de ferro, mais polícia, mais câmaras ou com mais presidiários. A chamada guerra contra a delinquência e o crime organizado é, na verdade, uma guerra contra os pobres. Não podemos assumir a lógica da guerra interna que só traz mais violência, seguranças fictícias, cerceamento de liberdades, criminalização e estigmatização da pobreza e dos pobres.
Disputar o conceito de segurança a partir de uma perspectiva que rompa com a lógica punitiva, que se opõe a um horizonte de direitos sociais, é fundamental para poder responder, numa perspectiva de classe, às inseguranças e violências geradas pelas políticas neoliberais. É fundamental evitar que políticas punitivas se insiram na medula das classes populares, estigmatizando a migração e a pobreza e favorecendo a guerra do penúltimo contra o último. Estamos realmente diante de uma crise de direitos que levanta uma questão fundamental: quem tem direito a ter direitos? Dependendo de como respondermos a essa pergunta, podemos lutar ou abrir caminho para a extrema direita.
Mas também não podemos negar que o aumento da violência, que obviamente está enraizado nas fortes desigualdades e destruição das economias locais pelo neoliberalismo, se transformando, cada vez mais, em um grave problema, em muitos países. O neoliberalismo expulsou amplas camadas das classes populares da sociedade, alimentando maras, gangues e, em última instância, o crime organizado, com um número infinito de homens e mulheres que não conheciam outras opções. Essa situação sequestrou qualquer possibilidade de democracia e favoreceu a disseminação do populismo punitivo, onde o exemplo de Bukele é paradigmático.
Nesse sentido, o discurso da distribuição da riqueza, da eliminação das desigualdades e do aumento do Estado social é essencial para encontrar qualquer solução no médio prazo. Mas, no curto prazo, pode parecer muito irrealista lidar com os problemas de violência que a comunidade realmente sofre no dia a dia. A esquerda tem o desafio de apresentar à sociedade alternativas credíveis para enfrentar a violência estrutural que mostrem um caminho diferente do fenômeno do populismo punitivo de Bukele. Uma solução que passa por pôr em prática modelos comunitários de segurança, como vem acontecendo, por exemplo, em algumas regiões do México ou do Equador. Diante da crescente violência estrutural, pensar em modelos de segurança comunitária torna-se um elemento central, não só para combater a violência, mas também para reconstruir os laços comunitários. Só conseguiremos derrotar o fenómeno Bukele tornando-nos uma alternativa credível às suas propostas autoritárias.
Notas
[1]A recontagem foi controversa. Quando as mesas de voto começaram a registar os resultados na noite das eleições, a plataforma caiu. Com 70% dos votos presidenciais e 5% dos resultados legislativos, o Tribunal Superior Eleitoral declarou a contagem preliminar um fracasso. As denúncias de fraude aumentaram exponencialmente, sem contar a falta de garantias em procedimentos online no exterior ou a possibilidade de votar com documentação vencida, dentro e fora do país.
[2]https://elfaro.net/es/201812/ef_foto/22762/El-ungido.htm
[3] https://www.lamalafe.lat/los-pastores-de-trump-tambien-tientan-a-nayib-bukele/
[4]https://elfaro.net/es/201908/internacionales/23554/L%C3%ADderes-evang%C3%A9licos-amparados-por-la-Casa-Blanca-exportan-agenda-fundamentalista-a-Am%C3%A9rica-Latina.htm
[5]https://mundo.sputniknews.com/america-latina/202004281091253956-pandilleros-presos-en-el-salvador-permaneceran-en-celdas-selladas-y-junto-a-rivales--fotos/
[6] "A Armadilha Neoliberal: Indivíduos Violentos ou Situações Violentas?", O Farol Acadêmico, 15 de junho de 2023, p. https://elfaro.net/es/201503/academico/16717/La-trampa-neoliberal-%C2%BFIndividuos-violentos-o-situaciones-violentas.htm
[7]https://elpais.com/america/2024-02-05/bukele-reelecto-la-victoria-de-la-violencia.html
[8] Fonte: Observatório Universitário de Direitos Humanos (OUDH) da Universidade Centro-Americana (UCA). De acordo com a OUDH, os indicadores do aumento do desaparecimento de jovens coincidem com o mandato presidencial de Bukele.
[9]https://expansion.mx/mundo/2024/02/01/nayib-bukele-verdugo-libertad-de-prensa-el-salvador