O governo peruano está massacrando manifestantes

Os protestos no Peru desde a destituição de Castillo não dão sinais de arrefecer. Enfrentando uma repressão letal, os manifestantes exigem não apenas novas eleições, mas a demissão da presidenta Dina Boluarte e uma nova Constituição.

Oscar Apaza*

 

No último 17 de dezembro, o Congresso do Peru votou a destituição do presidente Pedro Castillo. Não era a primeira vez. Foi a terceira tentativa de destituição, um dos vários meios usados pelo Congresso, as elites e a imprensa para retirar Castillo do poder. Nesse mesmo dia, Castillo criou comoção no país com sua resposta: uma declaração à nação em que decretava a dissolução do Congresso. 

A manobra desesperada de Castillo não encontrou apoio. As Forças Armadas e a Polícia Federal rapidamente deram as costas ao presidente, que foi detido e levado à Procuradoria Geral, enquanto o Congresso se apressava para empossar sua vice-presidenta, Dina Boluarte, que já havia rompido relações com Castillo semanas antes. Dirigindo-se ao Congresso – a instituição mais desprestigiada e desprezada do país – e ignorando quem havia saído às ruas para pedir novas eleições, Dina Boluarte anunciou que seu governo concluiria seu mandato em 2026. 

Nos dias seguintes, Boluarte esteve reunida com a oposição política a Castillo, inclusive aqueles que nunca haviam aceitado a vitória eleitoral do ex-presidente. Diante do vertiginoso dos acontecimentos, a população respondeu com rapidez. Se organizaram manifestações na maioria das regiões do país rechaçando Boluarte, exigindo eleições imediatas e o fechamento do Congresso, inclusive exigindo a redação de uma nova Constituição. O governo reagiu militarizando as ruas: se declarou estado de emergência, o que levou o exército a várias regiões. Rapidamente ficou demonstrado que o governo inflamado não estava disposto a conter os protestos civis de forma moderada. 

 

Um chamado à paz cheio de hipocrisia 

Ainda que o Congresso tenha aprovado a celebração de eleições para 2024, essa data estava longe da exigência de eleições imediatas e a onda de protestos cresceu ainda mais. A reação da polícia e do governo foi desproporcional e violenta. Em 21 de dezembro o número de mortos subia a 27, muitos deles por ferimentos de bala na cabeça e no corpo. 

Mesmo com esse nível de violência, Boluarte decidiu outorgar o cargo de primeiro ministro a Alberto Otárola, que até então havia exercido o cargo de ministro da Defesa (a cargo das Forças Armadas e responsável pelas mortes de civis que estas causavam). Nessas condições desfavoráveis, os manifestantes, sem recuar em suas reivindicações, suspenderam temporariamente os protestos nas festas em honra a seus mortos e permitir a retomada da atividade econômica em suas cidades e vilarejos. 

Mas as operações policiais não se limitaram aos protestos. Dirigentes populares e membros da oposição política se converteram em alvos da repressão, com ações em várias localidades e detenções sem a presença de um representante legal do distrito. Inclusive fizeram uma visita ameaçadora à casa de um membro do Congresso. 

O governo Boluarte, agora reconhecido por muitos como um regime cívico-militar, tentou ao mesmo tempo deslegitimar os protestos, uma iniciativa que contou com o apoio dos principais meios de comunicação, propriedade da elite peruana. Em suas declarações, Boluarte afirmou que os protestos eram dirigidos por terroristas ou delinquentes que defendiam atividades econômicas ilícitas. 

Entre as acusações e o assassinato dos manifestantes, os militares e a polícia – as instituições responsáveis pelas mortes – apelaram a contra-argumentos “pela paz” para reforçar sua narrativa que assegura a existência de um inimigo violento. À medida que passavam os dias, iam se acumulando vídeos e fotos de acusações que incriminavam as forças da ordem: se fabricavam provas contra os manifestantes e se infiltravam nas marchas para incitar a violência. Tudo isso sacudiu ainda mais a legitimidade da polícia e da própria Boluarte, que, apesar das várias provas que circulavam, nunca condenou a violenta e exagerada reação da polícia. 

 

O massacre de Puno 

Na quarta-feira, 4 de janeiro de 2023, foram retomados os protestos na capital e outras regiões, com grandes mobilizações, paralisações e barricadas nas estradas. As reivindicações se mantiveram firmes, pedindo a demissão de Boluarte e enviando uma mensagem contundente: os cidadãos que saíram à rua não reconheciam a legitimidade de um governo que consideravam manchado de sangue, um governo que lhes acusava de terroristas e que preferia enviar soldados a disparar contra o povo em vez de enviar membros do governo para dialogar. 

Na segunda-feira seguinte, a tragédia voltou a se repetir. A violenta repressão das manifestações em Puno, no sudeste do Peru, causou a morte de 18 pessoas. Entre os mortos, um médico que sequer participava dos atos. Os vídeos confirmaram a brutalidade da polícia no que então se converteu no segundo massacre – depois do de Ayacucho, onde morreram 10 pessoas em um único dia – levado a cabo pelo atual governo. 

 

Sem final à vista 

A revolta que começou em dezembro que já soma 47 mortos e mais de 500 feridos não mostra um final à vista, apesar dos esforços do governo em apresentar o fim das manifestações durante as férias como uma “volta à calma” propiciada por seus próprios esforços. 

O regime cívico-militar de Boluarte se aliou com os segmentos da população que perderam as eleições de 2021. Seus representantes governamentais vão aos meios de comunicação da elite para fazer chamados à paz que soam tão cínicos quanto vazios. A “paz” de que fala Boluarte consiste em uma anistia para seu governo, apesar de seus abusos e assassinatos, e a volta a uma estabilidade que nunca beneficiou a maioria. 

Boluarte parece ignorar que a dor pelos mortos – e o desejo de justiça que produz – se converteu em mais um motivo para se mobilizar. Os protestos já não são apenas para pedir novas eleições, mas para exigir sua demissão imediata e uma nova Constituição. As circunstâncias no Peru parecem gritar que, parafraseando Emiliano Zapata, se o povo não tem justiça, o governo Boluarte não conseguirá a paz que deseja.

 

 

*Oscar Apaza é arquiteto e ativista urbano peruano