LOREN BALHORN
Tradução: Equipe Radar Internacional
Via Jacobin AL
Uma explosão de entusiasmo entre a militância deu ao partido socialista alemão Die Linke o que poderia ser sua última oportunidade de renovação. Mas converter-se em um partido da classe trabalhadora requer muito mais do que um giro de última hora nas urnas.
Quando a antiga liderança do Die Linke, Sahra Wagenknecht, e seus partidários renunciaram para formar seu próprio partido em outubro de 2023, ambas as partes da divisão pareciam seguras de que seriam os principais beneficiários. A Aliança Sahra Wagenknecht (BSW) esperava que, finalmente libertados do “esquerdismo como estilo de vida”, de seus antigos camaradas, poderiam chegar a ampla classe média da sociedade e recuperar os eleitores desiludidos que haviam ido para a extrema-direita com o Alternativa para a Alemanha (AfD). As lideranças do Die Linke, por sua vez, afirmavam que agora poderiam recuperar aqueles que haviam abandonado o partido pela suposta xenofobia de Wagenknecht e escapar finalmente da espiral descendente que tinha feito sua votação cair a 3%, muito abaixo do limite de 5% requerido para permanecer no parlamento.
No começo, o BSW parecia ter estimado de maneira mais realista seu potencial eleitoral. Pegou centenas de milhares de votos de seus antigos camaradas nas eleições europeias e estaduais de 2024 e alcançou 10% nas pesquisas nacionais, enquanto o Die Linke enfrentava seus piores resultados. Enquanto isso, o Die Linke impulsionou seu relançamento a partir de uma nova estética, elegeu uma nova direção (incluindo uma antiga editora da Jacobin) e melhorou notavelmente seu alcance digital, mas seguiu estancado nos 3% e cada vez mais desprezado pelos meios de comunicação.
Todavia, as últimas semanas sugerem que a onda pode ter mudado. Reiteradas pesquisas situam o Die Linke entre 5% ou 6% pela primeira vez em anos e o partido recebeu milhares de novos filiados (11 mil apenas em janeiro). Duas semanas antes das eleições de 2025, o BSW e o Die Linke aparecem de repente nas pesquisas do início ao fim e os principais meios de comunicação começam a falar com cautela do “retorno” de um partido sobre o qual, há apenas alguns meses, apenas se falava em termos de declínio e extinção inevitável.
O que está alimentando esse novo espírito de luta? Contrariamente às afirmações (compreensíveis) dos dirigentes de que reina a harmonia interna depois da saída do BSW, as profundas divisões estratégicas e políticas dentro do partido foram apenas cicatrizadas. Isso é particularmente visível no caso de Gaza, onde uma minoria pequena mas persistente dos parlamentares segue apoiando abertamente Israel, desafiando a posição oficial do partido, mas também a esquerda internacional e a maioria dos estudiosos do direito internacional.
Os fiéis do partido tampouco se uniram em torno a uma estratégia coerente: enquanto um dos lemas da campanha do Die Linke proclama “Todos querem governar, nós queremos transformar”, no estado oriental da Saxônia, seu pequeno grupo de parlamentares, dizimado depois de seu pior resultado eleitoral da história em setembro, decidiu tolerar um governo minoritário liderado pelos democratas cristaos (CDU).
Parece que a mudança de rumo do partido não se deve tanto a um novo sentido de propósito político, quanto a um desejo compartilhado de sobreviver, e a uma conjuntura política relativamente favorável. O partido se beneficiou do giro à direita da política migratória de todo o espectro político, incluindo o BSW, assim como da decisão deste partido de participar de dois governos estaduais menos de um ano depois da sua fundação. Com o apoio da AfD crescendo a cada dia, o Die Linke está recebendo um impulso inesperado por parte de eleitores (e novos militantes) horrorizados diante da perspectiva de perder uma oposição parlamentar de esquerda.
É uma pequena ironia da história que um auge da extrema-direita possa acabar sendo a salvação da esquerda, mas não se pode pedir mais. Se o Die Linke consegue um êxito inesperado no dia 23 de fevereiro, poderia dar ao partido a oportunidade de repensar e se reconstruir. Mas isso apenas vai acontecer se se evitar voltar ao padrão de espera da última década.
Embriagados de êxito
Como muitos de seus irmãos entre os partidos europeus da “nova esquerda”, o Die Linke foi fundado sob uma plataforma que consistia principalmente na oposição às reformas do mercado de trabalho do governo de centro-esquerda, a economia neoliberal e as guerras destrutivas e ilegais travadas contra o Iraque e o Afeganistão. O que defendia na sua campanha - para não falar de como conseguiria isso - seguia sendo consideravelmente mais vago.
Os dois partidos que se fundiram para formar o Die Linke em 2007 provinham de contextos muito diferentes. O Partido do Trabalho e da Justiça Social (WASG) se separou do Partido Social-Democrata (SPD) no poder, o qual havia abandonado devido a sua trajetória no governo sob a direção de Gerhard Schroder. Para eles, qualquer nova formação teria que se distanciar de seus antigos camaradas. Os ex-comunistas do Partido Social-democratico (PDS), pelo contrário, haviam passado quinze anos tentando se distanciar da história da Alemanha Oriental, e provavelmente muitos deles teriam se unido ao SPD depois da reunificação alemã se lhes fosse permitido. Governar junto com o SPD, como fizeram em Berlim e Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental na década de 2000, converteu-se no horizonte das suas ambições políticas, senão na teoria, pelo menos na prática.
Fechar essa brecha foi, inevitavelmente, difícil. Todavia, em um primeiro momento, a questão de como o Die Linke deveria se posicionar em relação à centro-esquerda foi resolvida na prática pela negativa do SPD e dos Verdes em considerar qualquer tipo de cooperação com eles. O então líder do Die Linke, Oskar Lafontaine, antigo membro do SPD, tentou formular uma resposta política na forma do que chamou de “linhas vermelhas”, um conjunto de exigências mínimas para se unir ao governo.
Não é casualidade que o Die Linke alcançou sua maior influência durante esse período, ao ser a única oposição política significativa ao fervor neoliberal que dominava a política naquele momento. O partido conseguiu ingressar em uma legislatura estadual atrás da outra e, em poucos anos, consolidou uma presença institucional que tinha pouca relação com o seu peso real ou a sua capacidade organizativa.
Mas essa constelação não duraria, como simbolizou a inesperada renúncia de Lafontaine à direção do partido em 2010. Os avanços eleitorais do Die Linke estancaram e logo se transformaram em uma longa e lenta retirada. Enquanto isso, o partido foi incapaz de encontrar uma resposta para a situação. Nenhum dos sucessores de Lafontaine e do co-presidente Gregor Gysi puderam unir o partido ao redor de uma estratégia comum.
Em alguns estados, o Die Linke uniu-se ou inclusive liderou governos regionais cujas políticas eram praticamente indistinguíveis das do PSD. Em outros, manteve uma presença parlamentar marginal, restringida em grande medida a agitação e a propaganda. Enquanto o Syriza na Grécia ou o Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn subiram a fama, o Die Linke foi desaparecendo ao longo da década de 2010 em uma série de alianças mutáveis entre frações rivais com ideias políticas às vezes muito diferentes, cada vez mais unidas pelas rotinas e pelos recursos financeiros do próprio parlamento, até que sua derrota quase total em 2021 deixou claro que algo havia ido profundamente mal.
Bastidores
É inevitável se perguntar se o êxito inicial do Die Linke não foi algo como um presente envenenado: justamente quando o jovem partido necessitava de líderes de base capazes e entusiastas para construir estruturas e desenvolver uma cultura política viva, muitos de seus melhores e mais brilhantes membros foram atraídos pelo aparato parlamentar, muitas vezes em detrimento da construção do partido sobre o terreno. Embora o Die Linke tenha sido por um breve período o terceiro maior partido do país em número de filiados, um número desproporcionalmente alto desses membros já estava aposentado. Estava claro desde o início que perderia impulso rapidamente sem uma base sólida.
O parlamento é um cenário fundamental de conflito político em qualquer democracia capitalista, mas também está estruturalmente enviesado contra aquelas forças que buscam promover os interesses da maioria trabalhadora acima dos interesses das elites proprietárias. Por isso, historicamente, os partidos socialistas sempre combinaram as campanhas eleitorais com a organização no lugar de trabalho e na comunidade para reforçar suas forças tanto dentro como fora do parlamento. Os governos podem facilmente escapar de uma votação parlamentar ou inclusive um referendo, como demonstrou há alguns anos a campanha de Berlim para expropriar as empresas imobiliárias privadas. Mas uma organização permanente que ameaça com greves e mobilizações massivas não pode ser ignorada tão facilmente.
O Die Linke nunca se colocou seriamente diante desse tipo de estratégia dual, pelo menos não de forma coerente, nem surgiu nunca uma visão unificada para a construção do partido. Provavelmente, muitos de seus representantes eleitos tinham pouco interesse nessa estratégia desde o início, mas também tinham um argumento convincente do seu lado: unir-se a coalizões governamentais era uma perspectiva muito mais imediata e tangível que a proposta abstrata de construir o poder de classe fora do Estado. De fato, como seria isso na Alemanha, um país onde os partidos à esquerda do SPD eram marginalizados desde a década de 1950?
Nem todos no partido aceitaram esse giro parlamentar sem restrições. Mas os gestos organizativos para uma estratégia mais intervencionista, como o “conectivo” ou o “partido de membros ativos” (apenas para citar dois slogans da década de 2010), seguiram sendo pouco entusiásticos e paralisados por um aparato do partido herdado do PDS, estruturado em grande medida em torno de imperativos parlamentares.
“Linksaktiv”, a primeira tentativo do Die Linke de construir um partido exemplificou este dilema: enquanto uma equipe de funcionários, bolsistas e voluntários realizava dezenas de cursos de formação desenhados para utilizar a campanha eleitoral de 2009 como ferramenta de recrutamento, outra seção do aparato do partido lançou uma estranha rede social com a mesma etiqueta: uma imitação barata do Facebook para os militantes do partido que logo caiu no esquecimento. As iniciativas do antigo grupo da Wagenknecht, sobretudo a infame campanha “Aufstehen”, que afirmava representar uma mobilização multipartidária pela justiça social, trata de abordar esse mesmo dilema imitando modelos exitosos do exterior.
O desenvolvimento do partido nos últimos quinze anos não é tanto um “aburguesamento”, como poderiam afirmar alguns críticos de esquerda, mas sim uma domesticação gradual, causada em grande medida pela inércia institucional. No papel, as posições do partido não se deslocaram para a direita, mas a brecha entre a retórica e a prática se ampliaram. Na ausência de uma alternativa tangível, domina o pragmatismo parlamentar, junto com o radicalismo verbal abstrato e a política de guerra cultural que está na moda, um reflexo da composição variável de seus militantes.
Esse movimento, por sua vez, enfraqueceu sucessivamente a reivindicação do Die Linke do voto de protesto e, portanto, sua sorte eleitoral. Não é casualidade que, quando esse círculo vicioso parecia estar chegando ao fim, vários membros destacados da chamada ala “reformista” anunciaram sua demissão ou aposentadoria antecipada no fim do ano passado. Simplesmente, já não tinham nada que ganhar em um partido que se aproximava do esquecimento eleitoral.
Política da aparência
Retrospectivamente, é justo dizer que a desproporcional presença institucional do Die Linke serviu para dissimular sua frágil estrutura e atrasar a compreensão de que era necessário uma mudança mais radical. Nunca saberemos se então poderia ter se transformado em um partido operário, mas agora, quando a organização parece estar saindo do atoleiro, pode ser que tenha pelo menos a oportunidade de tentá-lo.
Inclusive antes da mudança de sorte das últimas semanas, havia-se pedido ao Die Linke que aprendesse com os êxitos de partidos irmaos como o Partido de Trabalhadores da Bélgica (PTB) e que se centrasse em se implantar nas comunidades da classe trabalhadora e apoiar as lutas trabalhistas. Essas vozes receberam um grande impulso no recente congresso do partido em outubro, embora seguem sendo apenas uma parte de uma liderança muito mais ampla. Seu êxito é bem-vindo, mas os inovadores ainda têm um longo caminho a percorrer; depois de tudo isso, a distância entre o Die Linke e a classe trabalhadora da Alemanha nunca foi maior.
Em um recente estudo para a Fundação Rosa Luxemburgo, alinhada com o partido, o sociólogo Carsten Braband mostra como o apoio eleitoral do Die Linke entre os trabalhadores manuais e os trabalhadores do setor de serviços tem caído continuamente desde a sua fundação, de quase 20% em 2009 para 3% ou 4% na atualidade. Embora não disponhamos de dados comparáveis sobre a composição dos membros, podemos imaginar que vai na mesma direção. Como poderia ser diferente? O ativismo político nas democracias capitalistas desenvolvidas foi durante muito tempo domínio da classe média, uma tendência a qual as organizações de esquerda não são de todo imunes.
O número de sindicalistas entre os membros e eleitores do Die Linke também tem diminuído quase continuamente. Isso reflete tanto a falta de uma estratégia trabalhista por parte dos dirigentes como a relevância cada vez menor do Die Linke para os sindicatos à medida que diminui seu peso parlamentar. Seu lugar é ocupado por novos membros e funcionários de tempo integral, a maioria dos quais provém da classe média profissional, que Braband chama de “especialistas socioculturais”. Devido a sua socialização, os membros desse meio tendem ao tipo de política que se tornou comum nas democracias capitalistas em geral: “fazer campanha”, ativismo nas redes sociais, flashmobs e, em última instância, parlamentarismo. Sua estética pode diferir da dos tradicionalistas, mas é esse mesmo modelo de baixa mobilização.
Pouco a pouco, parece que se está começando a compreender que o status quo já não é sustentável. Todavia, reverter a tendência atual requer um impulso acordado em todo o partido, o que também se refletiria na mudança de prioridades na organização e na formação de seus membros. O exemplo citado frequentemente do PTB da Bélgica, que deixou de ser um micro partido de poucas centenas de pessoas para se tornar um pequeno “partido de massas” com 25 mil membros desde a década de 2000, sugere que a transformação é ao menos possível.
Todavia, provavelmente a lição mais importante da experiência belga é que a construção de um partido leva tempo. Durante décadas, o PTB lutou a margem da vida política, identificando e organizando estrategicamente enérgicas campanhas em torno de temas polêmicos e formando sistematicamente quadros do partido de uma maneira que simplesmente não existe tradição no Die Linke. Os recentes êxitos eleitorais dos camaradas belgas não foram o catalisador de uma organização mais ampla, mas sim o resultado dela.
Para o Die Linke, tal mudança de rumo significaria essencialmente começar do zero, sem a disciplina política e a coerência ideológica que caracterizam os partidos pequenos como o PTB da geração anterior. Significaria uma considerável redistribuição de recursos e funcionários sem garantia de benefícios a curto prazo e, portanto, provavelmente enfrentaria um considerável rechaço interno. Voltar a entrar no parlamento daria ao partido alguns anos de respiro para começar essa empreitada. Também significaria que alguns dos elementos mais resistentes à mudança do partido permaneceriam no lugar. Isso faz com que seja especialmente importante que a nova liderança se mantenha tenaz e resista a tentação de transigir a primeira oportunidade disponível, para evitar que o ciclo volte a se repetir depois das eleições.
Caminho de pedras
As últimas semanas de campanha e o impressionante aumento de militantes do Die Linke são, a pesar de tudo, motivo de um otimismo cauteloso. Os novos desafios seguem sendo acrescidos as contradições existentes: é pouco provável que os dois governos estaduais que ainda incluem o Die Linke sobrevoam as próximas eleições e é provável que a força institucional da velha guarda siga diminuindo, deslocada pela afluência massiva de membros jovens nos últimos meses. Ademais, a força atual do BSW nos antigos bastiões orientais do Die Linke significa que será impossível voltar ao status quo. O partido não terá outro remédio que não seja explorar novas estratégias.
Nenhum desses desenvolvimentos garante que o Die Linke esteja a caminho de se converter em um partido socialista enraizado na classe trabalhadora. Todavia, há razões para acreditar que uma estratégia de esquerda centrada na construção partidária e na campanha sobre questões da classe trabalhadora pode ter êxito hoje em dia. O BSW pode representar uma ameaça existencial para o Die Linke nessas eleições, mas seu enfoque político, altamente midiático, não contempla de todo a construção de uma organização de classe, nem de uma política por fora do parlamento. Ademais, sua aliança estratégica com setores de pequenos e médios empresários faria com que uma orientação desse tipo para fora fosse, para dizer o mínimo, impraticável.
Nesse sentido, o campo está aberto de par em par. Embora o terreno político não seja o ideal, na Alemanha não faltam temas em torno dos quais um partido socialista possa organizar gente. A explosão dos aluguéis - o único tema no qual o Die Linke teve algum êxito significativo nos últimos anos - é a opção mais óbvia, mas há outras. A cumplicidade alemã na guerra de Israel em Gaza, que todos os partidos, desde a AfD até o SPD e os Verdes, apoiam sem reservas, seria outro tema em que uma esquerda combativa poderia deixar sua marca em um campo político cada vez mais concorrido.
Dado o histórico pouco impressionante do Die Linke, um pessimista poderia concluir que a política socialista é impossível na Alemanha, e alguns dias efetivamente pode parecer assim. Uma visão um pouco mais otimista seria que o Die Linke, apesar de todos os seus defeitos, tem demonstrado que as ideias socialistas atraem a uma proporção considerável da população alemã, mas as estruturas institucionais que herdou tornaram-se insuficientes para traduzir esse atrativo em uma organização significativa.
Dada a falta de alternativas, o Die Linke seguirá sendo um ponto de referência central para a política socialista na Alemanha, independentemente do que suceda no dia 23 de fevereiro. No melhor dos casos, contará com uma oposição parlamentar pequena, mas barulhenta, e com dezenas de milhares de novos militantes altamente motivados para começar a trabalhar.
Todavia, tudo isso apenas importará se aproveitar seu recente golpe de sorte não para se limitar a copiar os slogans dos seus vizinhos mais exitosos enquanto continua com suas atividades habituais, mas sim para finalmente aclarar suas prioridades políticas e desenvolver uma estratégia real para persegui-las.
LOREN BALHORN
Editor da Jacobin Magazin (Alemanha) e co-editor, junto com Bhaskar Sunkara, de Jacobin: Die Anthologie (Suhrkamp, 2018).