O plano de Trump para restaurar o domínio financeiro dos Estados Unidos

Via Jacobin AL
Tradução: Equipe Radar Internacional

Por trás do aparente caos da política tarifária de Trump, existe um plano coerente para reiniciar o que Peter Gowan denominou de “regime do dólar-Wall Street”. Seu objetivo é fortalecer o poder dos Estados Unidos em torno dos oligarcas digitais de alta tecnologia.


Deixando de lado a política cultural, o MAGA (Make America Great Again) é um projeto conservador-nacionalista coerente em todos os sentidos. Seu objetivo principal é restaurar algumas variáveis interconectadas que se estabeleceram depois do fim do sistema de Bretton Woods em 1971.


O MAGA busca manter a centralidade do Poder Executivo estadunidense na política mundial através de acordos de tipo “hub and spoke” (modelo de centro e rádios) junto com a primazia indiscutível do dólar e da Reserva Federal nos mercados de divisas e no sistema monetário internacional, reciclando os excedentes globais até o próprio Estados Unidos através de títulos do Tesouro.


O projeto também visa manter o poder offshore de Wall Street, garantindo operações financeiras transfronteiriças ilimitadas e subordinando os setores produtivos dos Estados vassalos aos Estados Unidos. Este conjunto integrado e o que o defunto Peter Gowan, no seu premiado livro de 1999 The Global Gamble, denominou de regime do dólar-Wall Street (DWSR, na sigla em inglês).


Todavia, as forças históricas estruturais, somadas à incompetência dos atores liberais e neoconservadores, provocaram a desintegração do DWSR, especialmente a partir da crise financeira mundial de 2007-2008. Ao examinar mais detidamente as razões que subjazem essa desintegração, podemos ter uma ideia mais clara do êxito que pode ter o projeto MAGA.


Perda de terreno


A crise financeira mundial obrigou a Reserva Federal a introduzir importantes programas de resgate para salvar os bancos de investimento de Wall Street e obscuros serviços financeiros do colapso total. Ao mesmo tempo, reduziu as taxas de juros a zero, o que enfraqueceu o poder do dólar e encareceu as importações. Na mesma linha, o Tesouro dos Estados Unidos injetou posteriormente bilhões de dólares em programas de resgate, créditos fiscais e outras ajudas para limitar os danos econômicos e sociais causados pela pandemia de COVID-19. Isso significou uma festa para as empresas estadunidenses, mas também alimentou a inflação.


A implacável competitividade da China a escala mundial reforçou as tendências desintegradoras da primazia estadunidense. A China foi ganhando terreno desde 2007-2008, com o lançamento da Iniciativa do Cinturão e a Rota e o início de uma onda de aquisições de ativos e construção de infra-estruturas na Ásia, Europa e África. Ao mesmo tempo, converteu-se em um elo crucial das redes de produção híbridas e das cadeias de fornecimento, e suas empresas se associaram com as principais corporações ocidentais, para depois superá-las.


Em geral, a China não é “o principal servente dos Estados Unidos”, como costumavam comentar alguns analistas. Embora as empresas transnacionais estadunidenses (ETN) ainda podem repatriar os lucros de suas operações na costa leste da China, as empresas estatais chinesas competem diretamente com essas empresas à escala mundial, especialmente em campos como os semicondutores, a biotecnologia, a produção de veículos elétricos e a inteligência artificial.


Desde 2003, as corporações chinesas, tanto financeiras como não financeiras, vem aumentando de maneira contínua em quantidade como empresas que cotam na bolsa, enquanto que o registro dos Estados Unidos mostra uma queda prolongada. O Banco Industrial e Comercial da China ocupou o primeiro lugar na lista Forbes Global 2000 durante sete anos consecutivos, de 2013 a 2019. Dados tomados do índice Shanghai Shenzhen CSI 300 mostram o peso significativo das corporações chinesas na capitalização dos mercados globais.


Se deduzirmos dos cálculos o regime fiscal relativamente baixo dos Estados Unidos, as empresas chinesas estão quase a par com as multinacionais estadunidenses. Em relação a alta tecnologia, os semicondutores, os veículos elétricos e as matérias-primas relacionadas com a energia verde, os membros do círculo de Donald Trump (especialmente nesta ocasião) acreditam que a ascensão da China se baseia em última instância nas vastas reservas de elementos e minerais raros (REEM, na sigla em inglês) que controla. Esses materiais são abundantes na China, onde são extraídos e refinados, assim como na África, onde a China já interveio com importantes projetos de investimento e relações comerciais.


A descuidada gestão dos assuntos globais e nacionais pelos governos Obama e Biden piorou a situação. O círculo de Trump sustenta que as medidas regulatórias impostas a Wall Street criaram um entorno empresarial rígido que minou os benefícios e a cultura empreendedora. Também não funcionou a guerra proxy na Ucrânia, impulsionada com a esperança de provocar a derrota da Rússia e restaurar a unidade transatlântica mediante a repartição do despojo, já que tanto Ucrânia quanto Rússia são países muito ricos em REEM e hidrocarbonetos.


Na prática, a guerra acabou enfraquecendo a Europa e fortalecendo o bloco chino-russo, sobretudo pela influência desse bloco no Sul Global, tanto dentro quanto fora das Nações Unidas. O aumento dos custos energéticos teve um impacto devastador na indústria alemã depois da ruptura dos vínculos energéticos do país com a Rússia, o que provocou a migração das empresas para a China ou para os Estados Unidos. Em conjunto, a Europa está em recessão, enquanto que a economia russa resistiu aos estragos da guerra e as sanções.


Parece que a expansão da OTAN em direção ao oriente e os resultados positivos que isso pode aportar ao capitalismo euro atlântico e ao DWSR já chegaram ao seu limite. A economia e as infraestruturas da Ucrânia estão destroçadas. O segundo governo Trump está tentando mudar o curso catastrófico do neo-imperialismo estadunidense antes que seja tarde demais.


MAGA significa reconstruir o poder estadunidense servindo, antes de tudo, aos interesses da nova classe dominante estadunidense de Wall Street, e não ao resto. No coração do projeto MAGA encontra-se a restauração do domínio do dólar e dos negócios de alta tecnologia de Wall Street.


Contra-ataque


A nova gestão se propôs a desmantelar o aparato estatal bipartidario construído durante décadas. Isso inclui demissões de funcionários administrativos, especialmente daqueles que estão em desacordo com o projeto MAGA, e uma reorganização do sistema sanitário. As medidas adotadas representam uma radicalização verdadeiramente conservadora da política estadunidense com o objetivo de fortalecer o Executivo e reduzir os déficits orçamentários a nível estatal e federal, ao mesmo tempo em que promove uma massiva redistribuição da riqueza para cima.


Os cortes em saúde e cupons de alimentos superam 1 bilhão de dólares. As contribuições de Washington às organizações internacionais estão sendo reduzidas ou eliminadas completamente, ao mesmo tempo que os Estados Unidos se retira de organismos como a Organização Mundial da Saúde. O novo Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) de Elon Musk mostra a verdadeira intenção do Governo Trump, que busca fortalecer os laços entre o poder executivo em Washington, por um lado, e as empresas digitais de alta tecnologia estadunidenses com suas redes que dominam Wall Street, por outro.


O decreto executivo de Trump que cria o DOGE estabelece que o objetivo, embora temporal, é levar a cabo cortes de gastos e modernizar a tecnologia e o software federais, ao mesmo tempo em que maximiza a eficiência e a produtividade governamentais. Segundo Trump, isso vai erradicar as regulações desnecessárias e improdutivas impostas por Barack Obama e Joe Biden em Wall Street.


Quando Trump promulgou a emblemática Lei de Cortes Fiscais e Emprego em dezembro de 2017, todo Wall Street se uniu à sua administração. Durante o primeiro mandato de Trump, o Dow Jones Industrial Average, o S&P 500 e o Nasdaq Composite dispararam 57%, 70% e 142%, respectivamente. Hoje em dia, todos os investidores de Wall Street esperam que se repita o mesmo resultado. Não é casualidade que muitos operadores de Wall Street, entre eles os titãs das finanças Bill Ackman, Scott Bessant e Stephen Schwarzman, respaldam e patrocinaram o retorno de Trump ao poder muito antes das eleições de novembro de 2024.


A partir de uma perspectiva da economia política, no centro desses processos encontra-se a questão do domínio do dólar nos mercados monetários mundiais, no comércio e nos investimentos internacionais, isto e, a capacidade do Executivo estadunidense e da Reserva Federal para determinar seu preço e suas flutuações tanto a nível nacional como mundial. Os dados do ano passado do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a composição monetária das reservas oficiais de divisas apontavam para uma diminuição gradual e contínua da cotação do dólar nas reservas de divisas atribuídas. As moedas rivais, como o euro, o iene e a libra esterlina, não conseguiram avanços significativos, embora o yuan chines, o won sul-coreano e inclusive as criptomoedas ganharam terreno de forma notável.


O Estado chines impulsionou políticas que promovem a internacionalização do yuan, incluindo o estabelecimento de um sistema de pagamentos transfronteiriços, ao mesmo tempo em que põe à prova uma moeda digital do banco central. Barry Eichengreen e seus colegas advertiram em um informe patrocinado pelo FMI publicado no ano passado que os lucros da cota de mercado do yuan equivalem à quarta parte da diminuição da cota do dólar. Isso é significativo, sobretudo tendo-se em conta que a China segue mantendo controles de capital, o que limita a capacidade da sua moeda para decolar nas condições do mercado capitalista mundial.


A equipe de Trump tem uma visão depreciativa dos projetos de “transição verde” e de “energia verde”, que considera como exercícios simulados que sacrificam milhares de milhões, senão bilhões, de dólares no interesse de uma ideologia “progressista” sem sentido. Para eles, o importante é o tangível: o petróleo, o gás e outros hidrocarbonetos. Não é casualidade que a capital saudita, Riad, tenha sido eleita como sede das negociações entre os emissários russos e estadunidenses sobre a Ucrânia.


A Rússia já não pode ser excluída da arquitetura de segurança europeia. Mas a Arabia Saudita também é importante. O círculo de Trump vê como uma ameaça o abraço da oligarquia saudita com a Rússia e a China, porque existe um grave risco subjacente. O país com as maiores reservas de petróleo do mundo e “produtor oscilante” da OPEP poderia deixar de investir o excedente de dólares obtido do comércio do petróleo em títulos do Tesouro.


A reciclagem dos petrodólares foi um princípio fundamental do DWSR desde o início da década de 1970, depois de um acordo entre Henry Kissinger e os sauditas. As tarifas anunciadas por Trump, se não forem utilizadas como ameaça, farão subir o valor do dólar, o que reforça o DWSR. A estrutura dos rendimentos das plataformas do mercado de Wall Street pode compensar as possíveis tendências inflacionárias, já que o preço dos títulos, especialmente de vencimento a curto prazo, subirá.


Se houver mais incertezas e risco geopolítico, podemos esperar que o DWSR se beneficie, já que os investidores vão se apressar em investir de forma segura em dólares garantidos pelo poder do Estado estadunidense. O argumento liberal de que as estruturas de capital de Wall Street seriam prejudicadas não tem sentido, como demonstrou a experiência das tarifas de Trump em 2018-2019: o impacto negativo foi passageiro e as tarifas não afetaram negativamente o rendimento dos mercados de capitais.


As tarifas seletivas também contribuíram para reduzir o déficit comercial dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que impulsionaram alguns setores da indústria manufatureira nacional. Ao fim e ao cabo, Biden não modificou o regime tarifário imposto por seu antecessor. Tudo o que foi colocado anteriormente, portanto, é uma má notícia para os trabalhadores. As tarifas não são mais que um imposto para a classe trabalhadora, que permite novos cortes fiscais às empresas tecnológicas estadunidenses sem aumentar a dívida nacional.


Definitivamente, o principal esforço de Trump é o fortalecimento do DWSR sob os auspícios dos novos oligarcas digitais de alta tecnologia. A projeção global de poder dos Estados Unidos será consequência desse esforço.


Enigmas futuros

Obviamente, Trump não é um bolchevique. É verdade que radicalizou o Estado estadunidense, mas essa radicalização se baseia inteiramente em princípios de oferta que servem a nova oligarquia. O vínculo econômico e de segurança transatlântico é demasiadamente forte e está profundamente institucionalizado, junto com os acordos de tipo radial que não podem ser erradicados tão facilmente.


O plano de Trump para a Ucrânia tem muitos obstáculos para superar, como o regime de sanções a Rússia e o futuro das relações entre Ucrânia, OTAN e União Europeia. O governo estadunidense não pode ordenar que os Estados europeus derrubem as sanções, que são as que mais prejudicaram a Rússia. A médio ou longo prazo, poderia surgir uma nova versão de Yalta, em que a Rússia participa como sócia em igualdade de condições, enquanto a China seria reconhecida como uma potência tecnológica em expansão que deve ser contida. Mas isso não pode acontecer imediatamente.


O período intermediário estará cheio de conflitos e instabilidade. A Europa poderia reter os 220 bilhões de dólares russos congelados em bancos europeus e manter as sanções inclusive se os Estados Unidos as suavizasse. Washington poderia deixar de comprometer tropas e material para a defesa da Europa, simplesmente porque o teatro idopacifico e a China representam os principais objetivos para a hegemonia geopolítica e militar dos Estados Unidos.


A Rússia está muito familiarizada com a guerra e os orçamentos de defesa massivos, mas a Europa não. Na atualidade, existem fortes pressões para que a Europa desmantele seus sistemas de bem-estar com o objetivo de redirecionar o dinheiro para os orçamentos de defesa. Não será uma tarefa fácil, mas se supormos que será levada a cabo nos próximos anos, isso suporia formas de “equilíbrio offshore” para os Estados Unidos, uma posição que defendem alguns teóricos realistas dos Estados Unidos como John Mearsheimer.


A passagem dos acordos onshore de tipo “hub and spoke” ao “equilíbrio offshore” será um processo árduo e longo, sem garantias de paz. A Europa pode incluir a Rússia na sua arquitetura de segurança sem prejudicar os interesses estadunidenses na Europa, mas isso levará tempo, se é que vai chegar a se materializar, sobretudo devido às limitações burocráticas, ideológicas e institucionais criadas por décadas de neoimperialismo transatlântico. Neste momento, a Europa e o grupo belicista que demoniza a Rússia da mesma maneira que os Estados Unidos demonizaram a União Soviética durante a Guerra Fria.

VASSILIS FOUSKAS

Professor de História Internacional, Política e Economia na Universidade de East London e autor, junto com Bülent Gökay, de The Fall of the US Empire: Global Fault-Lines and the Shifting Imperial Order e de The Disintegration of Euro-Atlanticism and New Authoritarianism: Global Power-Shift.