Franklin Ramírez Gallegos
Via Nueva Sociedad
A possibilidade de julgamentopolítico que paira sobre Guillermo Lasso é uma das manifestações da crise múltipla que vive o país sul-americano. Em apenas dois anos de mandato, o presidente equatoriano encontra-se cada vez mais isolado e seu projeto de centro-direita ameaça ser naufragado.
No dia 04 de março de 2023, oplenário da Assembleia Nacional aprovou com 104 votos o informe da Comissão Especializada que recomenda julgar politicamente o presidente Guillermo Lasso. Essa comissão se constituiu a meados de janeiro, logo depois do escândalo provocado por revelações jornalísticas que apontam sérios indícios, tanto de corrupção nas empresas públicas a cargo de funcionários de plena confiança do primeiro mandatário, como de vinculação de altas esferas governamentais com a denominada “máfia albanesa”. Ambos os casos estão conectados pelas redes de influência política de Danilo Carrera, mentor e cunhado de Lasso e integrante do diretório do Banco de Guayaquil, presidido até 2012 pelo atual presidente e do qual ele e sua família são grandes acionistas: trata-se do caso “Gran Padrino”, como conhece a opinião pública, em alusão a Carrera, o affaire em curso.
Tanto a votação parlamentar – abase governista ficou completamente isolada no pleno – como as revelações da grande mídia e a intervenção da Fiscalia [equivalente ao Ministério Público no Brasil], dois setores que até pouco tempo operavam com lealdade ao governo, evidenciam que, mais além de uma eventual destituição presidencial, está em curso uma transição que desfigura os alinhamentos e fatores de poder que habilitaram, há cinco anos, o domínio das elites e da direita sobre o aparato estatal.
Mais que aos escândalos em curso,todavia, a fragilidade presidencial responde a crise estrutural do pais, comparável com aquela que levou a dolarização da economia (1999-2000), a escassa capacidade de gestão dos novatos quadros de direita libertaria que acompanham Lasso e a sua nula disposição democrática para reconhecer aliados e adversários. Os resultados das eleições locais e do referendo do dia 05 de fevereiro passado (que incluía um conjunto muito variado de reformas) reforçaram essas tendências e sepultaram as afirmações de Lasso de recuperar oxigênio diante das incertezas da segunda metade do seu mandato.
Contornos da crise
Equador é um dos poucos paísessul-americanos (junto com Venezuela e Suriname) que, até 2022, não haviam recuperado os ritmos de crescimento anteriores à pandemia. Houve inclusive certo decrescimento em relação a 2019 (de 101, 7 bilhões de dólares a 97,75 em 2021, segundo dados do Banco Mundial). Depois de dois anos do chamado “efeito rebote” , após a trepidante queda do PIB em 2020 (7,8%), as cifras de desemprego apenas se estabilizaram (3,8% para janeiro de 2023, embora essa porcentagem suba a 5,1% para as mulheres). No mesmo período, ainda, houve uma piora do subemprego (de 57,4% a 65,2%) e do emprego pleno (de 38,8% a 34,8%), segundo o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos. Em tais condições, a pobreza está estagnada em 25% desde 2019 e a extrema pobreza cresceu de 8,9% a 10,7% entre esse ano e junho de 2022. Do mesmo modo, enquanto 60% dos lares não cobrem o valor da cesta básica, as desigualdades se acentuam e o índice de Gini passou de 0,456 em 2019 a 0,48 em 2021.
Neste cenário, logo após areabertura das fronteiras depois da pandemia, entre 2021 e 2022 o país assiste a uma espécie de segunda grande onda migratória – mais de 190 mil pessoas saíram do Equador nesses anos – que começa a ser comparada a debandada provocada na virada de século pela crise financeira e o socorro estatal ao setor bancário.
Se naqueles anos o destinoprivilegiado pelos e pelas migrantes era a Europa (por via aérea e sem necessidade de visto até 2003), hoje em dia se reativam as rotas em direção aos Estados Unidos atravessando por terra a América Central e o México. Nos últimos meses, multiplicou-se o número de migrantes provenientes do Equador no Tampão de Darien, o perigoso caminho entre Colômbia e Panamá, que superou os deslocamentos de venezuelanos e haitianos por essa via. Apesar das múltiplas ameaças, famílias inteiras usam essa rota como forma de evitar a exigência de visto imposto pela Guatemala e pelo México (em tempos de Andres Manuel Lopez Obrador), logo após detectarem inusitados movimentos migratórios de equatorianos entre 2017 e 2019.
A opção migratória por viasaltamente arriscadas não é apenas uma resposta desesperada diante da sufocante crise, mas sim uma medida racional da população diante do brutal incremento da violência e da insegurança. Assim, enquanto os crimes assolam as cidades, pequenos e médios negócios enfrentam diariamente as extorsões (“vacinas”) da criminalidade em troca de suposta proteção. Aqueles que se negam a pagar são ameaçados ou mortos. Quão mais perigoso que isso pode ser o deslocamento por Darien?
Equador encerrou 2022 como o anomais violento da sua história. A Polícia Nacional registrou 4.450 assassinatos e mais de 332 feminicídios (189 deles pelas mãos do crime organizado). A taxa de homicídios por cada 100 mil habitantes já chega a 25,5, o que faz do Equador o sexto país mais violento da região, estando inclusive à frente do México. Se em anos anteriores os assassinatos em centros penitenciários tornaram-se
usuais, agora contam-se diariamente assassinatos realizados por pistoleiros contratados, a plena luz do dia. Guayaquil registrou 1.537 desses casos em 2022, o que a converte em uma das cidades mais violentas do mundo. Ainda mais desolador é o panorama em Esmeraldas (63 assassinatos por cada 100 mil habitantes em 2022), província que contém a maior taxa de população negra/afrodescendente do país e que, não por acaso, tem sido historicamente excluída dos “benefícios” do desenvolvimento.
Nessas e em outras cidades, ogoverno tem recorrido sucessivamente a declaratória de estados de exceção e a implantação conjunta de forças militares e policiais. Nada disso tem detido, contudo, a violência do narcotráfico que, articulado com grupos criminosos locais, não apenas controla as prisões como também extensas zonas associadas ao transporte de cocaína. Hoje em dia, mais de um terço da produção colombiana chegaria aos Estados Unidos e à Europa através do Equador. O embaixador
estadunidense em Quito falou de “narcogerais”, enquanto crescem as denúncias de conluio criminoso entre a Marinha equatoriana e o narcotráfico. Nesse entorno, os indícios de vinculação entre a “máfia albanesa” e o entorno presidencial poderiam apenas amplificar o repúdio à figura de Lasso. Para o início de fevereiro de 2023, segundo levantamento da Perfilesde Opinion, apenas 10% da população ainda acredita no chefe de Estado.
Os massacres carcerários, aguerra entre organizações criminais, a presença regular do narcotráfico no território, enfim, a capacidade da violência para corroer o tecido social e instituir ordens alternativas aparece como a dimensão mais sinistra e inédita da nova crise que enfrenta o Equador depois de mais de duas décadas de dolarização.
O compromisso para sustentar essesistema monetário – supostamente ameaçado pelo excessivo gasto em tempos do governo de Rafael Correa – tem estado no coração do sistema político de Lasso e de seu antecessor Lenin Moreno (2017-2021) e contribui para justificar a enorme acumulação de reservas internacionais no Banco Central e no conjunto da política econômica vigente. Em janeiro de 2023 as reservas internacionais
alcançaram 9,353 bilhões de dólares, uma cifra recorde neste século e que Lasso exibe como o maior êxito da sua gestão. Embora em um sistema dolarizado não se requerem reservas para respaldar a moeda, o governo e seus entornos celebram o baixo risco de iliquidez do sistema monetário e, portanto, a impossibilidade da desdolarização. Essa “conquista” macroeconômica contrasta com o estancamento do ritmo de crescimento da economia e a deterioração dos serviços públicos, em um contexto de redução draconiana do investimento público.
Se em 2018 Moreno aprovou, nomarco do acordo (ainda vigente) com o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Lei de Fomento Produtivo, que impede a mobilização do crédito interno para controlar a liquidez ou que o setor público cresça mais de 3% anualmente, nos últimos dois anos Lasso estacionou o investimento público em 2,1% do PIB em 2021 e em 1,8% para 2022, o menor investimento em duas décadas.
Além da fixação ideológica com acontração do gasto, semelhante política governamental é entendida como parte das condições que os credores da dívida impuseram ao país para assegurar o cumprimento dos pagamentos de capital e juros. Em meio aos altos preços de petróleo e o incremento das remessas, a acumulação permanente das reservas internacionais oferece essas garantias aos mercados financeiros e só é possível com um programa de austeridade radical, indiferente ao padecimento geral da sociedade pela recessão e pelo desmantelamento de direitos básicos.
Quando em 2020 o Ministério da Economiade Moreno antecipou pagamentos da dívida externa a bancos estrangeiros (2 bilhões de dólares) no pior momento da pandemia – com hospitais desabastecidos, médicos não pagos e mortos nas ruas – ficou delineada a nova fase de subordinação da economia nacional ao capital financeiro que Lasso representa. Enquanto cresce o endividamento (74,03 bilhões a junho de 2022) e as taxas de juros permanecem altas – pela própria negativa (dogmática) de empréstimo do Banco Central ao fisco – os credores privados de títulos emitidos pelo governo incrementam exponencialmente seus rendimentos a custo a paralisia do Estado e da destruição da riqueza social. Por isso, a ainda distante possibilidade de destituição de Lasso tem elevado ainda mais o risco país. Este deveria ser o indicador predileto do presidente, mas seu afundamento político, sua desastrosa performance na administração pública e a falta de crescimento econômico real, inclusive apesar das enormes reservas, não tranquilizam os mercados já faz tempo.
Sob a lupa
Nem em seu pior pesadelo poderiaimaginar Lasso que, a poucos dias da sua derrota eleitoral do dia 5 de fevereiro, o Ministério Público invadisse o escritório do palácio presidencial de Carandolet, concretamente, os escritórios do subsecretário jurídico da
Presidência, frente ao próprio despacho do primeiro mandatário. O caso remitia a denúncias de corrupção em Petroecuador. Todo o setor de empresas públicas está sob a lupa da justiça e da opinião pública, pois Lasso concentrou poder sobre elas em um de seus antigos CEOs do Banco de Guayaquil, Hernan Luque, foragido depois dos vazamentos da imprensa.
Tanto a fiscal Diana Salazar comoo portal multimídia La Posta –principal difusor do escândalo em curso – tem operado, desde a virada de Moreno, como braços de ferro do bloco dominante na deslegitimação e perseguição, primeiro do correismo e seu legado estatal e, depois das paralisações nacionais de 2019 e 2022, do conjunto do campo popular encabeçado pelo movimento indígena e pelo presidente da Confederação das Nações Indígenas do Equador (CONAIE) Leonidas Iza.
Nesse entorno, o virtualdistanciamento desses atores do governo desacomodou o tabuleiro. Ainda mais quando um dos parlamentares mais próximos do poder, Fernando Villavicencio, ratificou que Lasso conhecia o expediente "Leão de Troia” – que implica o entorno de seu cunhado com a “máfia albanesa” – e que facilitou, junto com mandos policiais, o arquivo da investigação antinarcóticos (apoiada por Europol
e a Administraçao do Controle de Drogas dos Estados Unidos [DEA na sigla em
inglês]). Algo parecia se quebrar por “cima”.
As lições de ética jornalísticada mídia governista aos rebeldes do LaPosta, que certamente jogaram a lógica do algoritmo para dosificar suasentregas e acumular likes, são umapeça no compêndio de estratégias para administrar a verdade, mais que
documentá-la. Em todo caso, é claro que nos últimos tempos a política equatoriana é cozinhada mais em triângulos opacos entre justiça, polícia e mídia do que nas arenas do conflito democrático. O episódio vigente não é exceção. Dois grandes vazamentos do LaPosta fazem ranger as instituições: a primeira contém uma série de áudiosque colocam Carrera como responsável pelos trâmites de nomeações e contratos públicos através de seu amigo Ruben Cherres. O segundo é o vazamento de um informe policial (2021) sobre o papel de tais personagens em uma rede albanesa de narcotráfico.
Ainda enfrentando as denúnciasprovenientes de seu campo, Lasso reiterou o script de desqualificar seus críticos e insinuar uma desestabilização em curso. Em um duríssimo discurso transmitido em rede nacional, desta vez arremeteu contra a imprensa, as instituições oficiais e o Ministério Público sem oferecer, ainda, explicações sobre os escândalos que o rodeiam. Justificou sua intervenção em nome da honra manchada da sua família, não de seu dever democrático de prestar contas, e foi indulgente com seu cunhado, de quem apenas reprovou sua “pouca desconfiança” ao “se deixar utilizar” por gente desonesta. Ao insinuar a proximidade de La Posta com “quem controla os presídios”, o presidente retomou o discurso contra quem impulsionou o “não” às
perguntas do referendo, incluindo a que abria a possibilidade de extraditar
narcotraficantes aos Estados Unidos, a quem denominou "narco políticos".
O desconhecimento da legitimidadede seus opositores – qualificados de acordo com a conjuntura de golpistas, terroristas ou criminosos – tem sido transversal ao mandato de Lasso e explica, além da crise social provocada pelo seu programa de governo, a estreiteza de suas alianças políticas. Ainda pior, enquanto o presidente invoca regularmente a qualificação de “narcos” a seus adversários, 61 politicos e politicas foram objeto de atentados durante a recente campanha: as eleições mais cruéis da historia. Quando desde “cima” se banaliza a violência, grupos sociais e máfias sentem-se autorizados a exercê-la. As pessoas que investigam o “Grande Padrinho” foram ameaçadas recentemente.
Seja como for, no vigenteexercício de controle da Assembleia Nacional, Lasso ratificou seu menosprezo democrático: apesar da gravidade das denúncias, não compareceu para dar sua versão ante o chamado do Poder Legislativo. Anteriormente, já havia procedido da mesma forma em três conjunturas críticas: as sessões de controle (outubro de 2021) em relação a suas empresas offshore(caso Pandora Papers); as deliberações pela “morte cruzad”a (ameaça de dissolução do Congresso e adiantamento das eleições legislativas e presidenciais) ativada depois da repressão à paralisação nacional de junho de 2022; e a investigação parlamentar (outubro de 2022) sobre o feminicídio de Maria Belen Bernal dentro da Escola de Polícia.
O presidente se esquivasistematicamente dos procedimentos de controle popular. Foge assim da sua própria palavra e do debate aberto de que depende, na democracia, todo processo substantivo de prestação de contas. Um poder que não se justifica publicamente diante da sociedade assume formas despóticas. O alto mando policial implicado no arquivo da investigação sobre a “máfia albanesa” também não acudiu à
Assembleia. Deliberativa ou obediente? Em meio ao desmembramento de seu bloco
político, Lasso não está para exigir nada a uma polícia que se sobressai como
sua última grande peça.
Julgamento político?
Em meio ao silêncio presidencial,o informe da Comissão multipartidária fala de “presuntos delitos contra a administração pública e a seguridade do Estado” como elementos centrais do julgamento político do presidente. Múltiplas organizações sociais exigem, por sua parte, sua renúncia. A CONAIE sugeriu isso enquanto adverte que o presidente não tem legitimidade para dissolver a Assembleia (através da morte
cruzada) e governar sozinho até que sejam realizadas as eleições antecipadas.
Esta última é a única via institucionalque restaria a Lasso se a Corte Constitucional – último filtro do procedimento – confirma o julgamento político. Seria um cenário explosivo. A Corte, no entanto, tende a sustentar a ordem política vigente. Antes de seu pronunciamento, os interpelantes devem enviar sua solicitação expressa para o
julgamento. A redação final desta solicitação reabriu tensões intrapartidárias:
não há acordo sobre as causas a invocar. Além disso, o protagonismo da Revolução Cidadã (RC), o partido de Correa, na comissão e na condução política da causa – impulsionada pelo seu êxito nas eleições locais, depois das vitórias em Quito e Guayaquil – exaspera os ânimos do movimento Pachakutik (PK), que tem dado sinais de destacar-se da sua votação do dia 4 de março. Não seria a primeira vez, durante o mandato de Lasso, que a CONAIE não é escutada pelo PK, que um dia foi o braço eleitoral do movimento indígena. Iza já censurou o PK por sua ambivalência. Ironicamente, a sorte presidencial pode depender de como se resolve a tensão indígena entre movimento e partido.
Seja como for, a conjuntura desafia a capacidade da política para traçar saídas democráticas para a crise. Se a destituição de Lasso se conecta com as aspirações das maiorias e pode enfraquecer a rigidez de certas elites sombrias e parasitárias nas instituições, não é claro que o resto da classe política esteja em melhor disposição para dirigir de modo amplo e crível qualquer transição estatal. No colapso de seu projeto, o bloco de poder irradiou sua decomposição ao conjunto da representação política. A vigente crise orgânica do Estado abarca essa questão. Não estão ativas ainda as novas forças sociais que podem decifrá-la.