Os Estados Unidos dizem que não podem fazer nada para deter a guerra em Gaza, mas mentem

Por Adam Johnson

Depois das crescentes críticas por sua falta de ação, o governo Biden afirma que é impotente para deter a investida militar israelense contra Gaza. Trata-se de uma desculpa vazia, dado o grande apoio militar e diplomático que os Estados Unidos proporcionam inquestionavelmente a Israel.

Mais de 10 mil palestinos, entre eles 4.200 crianças, morreram na operação militar de Israel na Faixa de Gaza que começou há mais de um mês em resposta ao ataque surpresa do Hamas que matou 1.400 israelenses. A medida que aumentam a crise humanitária e as mortes massivas em Gaza – e enquanto 237 israelenses seguem sequestrados pelo Hamas – o presidente Joe Biden enfrenta uma grande pressão por milhões de manifestantes em todo o mundo, 80% do eleitorado democrata, mais de 500 antigos membros da sua campanha, organizações como Oxfam, Anistia Internacional, Médicos Sem Fronteiras, 25 grupos pacifistas árabes e judeus de Israel e 18 órgãos da ONU para que demande um cessar-fogo.

Biden rechaçou explicitamente esses chamados há alguns dias, afirmando que “não há possibilidade” de um cessar-fogo, enquanto segue pressionando o Congresso para conseguir 14,3 bilhões de dólares adicionais em novas armas e financiamento militar para Israel. Tratando de manter sua marca de defensor de direitos humanos e do progresso, o governo Biden tenta em troca uma série de medidas de compromisso para conciliar o círculo da sua auto imagem ilustrada com o apoio a um assédio violento sem precedentes e uma campanha de bombardeios.

Até o momento, a Casa Branca tentou impulsionar algumas medidas para salvar sua imagem. A principal delas é a chamada pausa humanitária, um termo indefinido que poderia significar qualquer coisa, desde um cessar indefinido da violência até uma mera interrupção momentânea dos bombardeios. Isso não acalmou os ativistas que pedem um cessar-fogo.

Na semana passada, soubemos como serão essas “pausas humanitárias”: Israel planeja deter as operações militares no norte de Gaza durante 4 horas por dia, em horários aleatórios, nominalmente para que os residentes possam fugir para um local seguro, mas isso também poderá ser descrito como um plano de expulsão dos palestinos de seus lares. Ao que parece, a administração estadunidense também pressionou para que se utilizem “bombas menores” e mais “bombas de precisão”, mas dadas as provas cada vez mais numerosas de que Israel está atacando deliberadamente a infraestrutura civil e aplicando punição coletiva, não está claro no que isso pode ajudar.

Enfrentando uma enorme crise de relações públicas, a Casa Branca está experimentando agora uma nova abordagem: alimentar os repórteres complacentes com uma narrativa segundo a qual os chamados para que Biden pressione a favor de um cessar-fogo são discutíveis, porque o Poder Executivo dos Estados Unidos é relativamente incapaz de influir em Israel, mesmo se quisesse.

é parte de uma tática mais ampla da Casa Branca de Biden: quando quer fazer algo conservador ou não tomar medidas em relação a políticas progressistas populares, finge impotência para evitar o conflito ideológico.

No caso de políticas como o aumento do salário mínimo ou a regulamentação das empresas poluentes, o governo de Biden declarou-se impotente antes de se preocupar em exercer a influência que tem.

O primeiro meio que impulsionou essa narrativa foi o Washington Post, cuja repórter Yasmeen Abutaleb publicou um artigo em que oferecia a imagem de uma Casa Branca inepta, impotente e encurralada politicamente. “A Casa Branca, frustrada pela investida militar israelense, mas vê poucas opções”, lamenta o artigo, com o coração encolhido.

“A medida que se intensifica a invasão terrestre israelense de Gaza – diz a nota – a administração Biden encontra-se em uma posição precária: os funcionários da gestão dizem que o contra-ataque de Israel contra Hamas foi muito severo, muito custoso em vítimas civis e carente de um final coerente, mas são incapazes de exercer uma influência significativa sobre o aliado mais próximo dos Estados Unidos no Oriente Médio para que mude seu andamento”.

Trata-se de uma afirmação extraordinária. A noção de que os Estados Unidos – que proporcionam a Israel um veto automático na ONU; apoio de inteligência; apoio do exército no Mediterraneo e no Golfo Pérsico; presença militar na Síria, Turquia e Iraque; e bilhões em armas de última geração e suprimentos militares – é “incapaz de exercer uma influência significativa” sobre Israel seria, sem dúvida, uma surpresa para a maioria dos observadores políticos. Que provas o [Washington] Post fornece para sustentar essa afirmação? Os que dizem isso são assessores de Biden que se recusam a serem nomeados.

O artigo procede quase na sua totalidade com funcionários anônimos de Biden e outras pessoas “familiarizadas com as ideias da administração”. Lamentam-se, pedem desculpas e fazem o leitor acreditar que se sentem vagamente mal pelo crescente número de mortos, mas insistem, com poucas explicações, que não podem fazer muito a respeito.

Abutaleb tem o mérito de incluir um parágrafo em que cita Bruce Riedel, pesquisador da Brookings Institution, explicando que, de fato, o governo Biden tem uma grande influência na venda de armas e na cobertura diplomática. Mas essa obviedade é rapidamente rebatida, sem explicação alguma, por outra fonte anônima:

“Estão vendo um choque de trens e não podem fazer nada a respeito, e os trens estão acelerando”, disse uma pessoa familiarizada com o pensamento da gestão, que falou sob condição de anonimato para discutir a dinâmica interna. “O choque de trens está em Gaza, mas a explosão está na região. Sabem que inclusive se fizessem algo, como condicionar a ajuda a Israel, na realidade não impediriam os israelenses do que estão fazendo”.

Mas por que condicionar a ajuda não limitaria os ataques israelenses? Como os funcionários de Biden poderiam saber disso sem que tivessem tentado? Abutaleb deixa passar a afirmação e simplesmente segue adiante. Mas a ideia de que a ameaça dos Estados Unidos de retirar seu apoio diplomático, de inteligência e militar “não impedirá realmente os israelenses do que estão fazendo” – absolutamente – é difícil de acreditar.

O seguinte no gênero da “impotente Casa Branca” é o New York Times. O repórter veterano David Sanger, colocando a Ucrânia no redil, diz no seu título e subtítulo: “Biden enfrenta os limites da influência dos Estados Unidos em dois conflitos: A influência do presidente Biden sobre Israel e Ucrânia parece muito mais limitada do que o esperado, dado seu papel central como provedor de armas e inteligência”.

“Durante 10 dias, o governo Biden instou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a permitir ‘pausas humanitárias’ no bombardeio de Gaza”, conta Sanger ao leitor, “esperando que os 3,8 milhões de dólares anuais em ajuda a segurança estadunidense levassem consigo influência suficiente sobre as táticas do líder israelense. Não foi assim. O Sr. Netanyahu rechaçou a pressão do Sr. Biden para que fossem realizados maiores esforços para evitar vítimas civis em uma chamada telefônica na segunda-feira”.

Esse artigo, como o do Washington Post, se baseia em assessores anônimos para retratar um Biden bem intencionado, embora trêmulo, que tenta desesperadamente reduzir as mortes de civis, mas que é ignorado por um Netanyahu impulsivo e canalha.

O artigo nunca se preocupa em explorar a opção de que a Casa Branca de Biden pudesse ameaçar retirar o apoio material; simplesmente presume que esta opção está descartada como uma alavanca. Os Estados Unidos são descritos como um observador passivo de crimes de guerra com escasso controle.

“Quando não falam oficialmente, alguns dos ajudantes de Biden dizem que o presidente foi surpreendido com a falta de vontade de Netanyahu para ceder na questão dos ataques a zonas urbanas densamente povoadas”, informa Sanger. Bom, lançou o tema e parece que é tudo o que pode fazer. Sanger parece totalmente desinteressado se Biden tem outras opções para reduzir as mortes de civis, como não financiar e armar o exército israelense. Esta possibilidade simplesmente não é apresentada como uma opção.

Por último, temos um artigo publicado em Politico por Nahal Toosi, Alexander Ward e Lara Seligman. Procedente em grande parte de – quem, se não – “funcionários” anônimos de Biden, insiste em que Israel simplesmente ignoraria Biden se ele tentasse deter a guerra, mas nunca explica por que. Escrevem:

Inclusive em tempos mais normais, o governo israelense nem sempre escutou Washington. Por exemplo, durante anos os funcionários estadunidenses apelaram infrutuosamente para que Israel parasse a construção de assentamentos no território da Cisjordânia demandado por palestinos. Quando Biden era vice-presidente, o governo israelense inclusive anunciou novos assentamentos enquanto o líder estadunidense visitava Israel.

Seguindo, o artigo continua sem explicar em nenhum momento por que não funcionaria ameaçar deixar de defender Israel na ONU ou cortar a troca de inteligência ou o envio de armas. Limita-se a dizer ao leitor que os Estados Unidos nunca tentaram fazer essas ameaças e passa para o ponto seguinte. Como sabemos que Israel ignoraria essas ameaças materiais ao seu aparato militar se nenhuma Casa Branca recente tentou fazer isso?

O artigo deixa claro que a Casa Branca não quer parar a guerra e que a apoia tanto por razões ideológicas como estratégicas, mas só tem objeções sobre a tática. Não leva em conta que isso poderia motivar a afirmação interessada de assessores anônimos de que não têm poder para conseguir um cessar-fogo mesmo se quisessem isso.

No mês passado, nos primeiros dias da guerra, o Ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, foi pressionado pelos críticos sobre por que o governo permitiu uma ajuda humanitária a Gaza antes de devolverem os reféns. Disse: “Os estadunidenses insistiram e não estamos em condições de negar. Dependemos deles para aviões e equipamento militar. O que podemos fazer? Dizer não a eles?”

Se os Estados Unidos não tem influência real sobre Israel, alguém deveria dizê-lo ao Ministro de Defesa israelense.

Em um livro recente sobre Biden, The Last Politician (O último político), o escritor Franklin Foer detalha como Biden colocou fim aos bombardeios israelenses de Gaza em 2021 com uma chamada telefônica.

Depois que Netanyahu “se esforçou para justificar sua petição [de mais bombardeios] porque não podia apontar novos objetivos que deveriam ser atacados”, disse Biden, segundo Foer: “Olha, acabou a pista de aterrissagem. Acabou. E então – continuou Foer – foi assim. Quando terminou a chamada, Netanyahu aceitou a contragosto um cessar-fogo negociado pelos egípcios”.

Poderia se argumentar que 2023 é diferente de 2021, dada a natureza singularmente horrível do ataque do Hamas de 7 de outubro, mas a mesma lógica segue sendo aplicável. Um Netanyahu muito motivado e enfurecido – e o establishment de segurança israelense fronteiriço – ainda não pode impulsionar uma guerra maior sem o apoio dos Estados Unidos. Pelo menos, os Estados Unidos poderiam tentar retirar ou reduzir esse apoio, no lugar de ignorar preventivamente sua influência e insistir que não importaria.

As informações anônimas de impotência estadunidense não estão respaldadas por provas históricas. Não tem nenhum sentido e, naturalmente, não se supõe que deveriam ter. O objetivo dessas peças é transmitir uma narrativa mais ampla do que a que a Casa Branca está tentando popularizar: que é impotente e se encontra atordoada e incapaz de controlar os horrores que o público está vendo chegar através de suas redes sociais a cada hora.

Quando alguém não pode explicar ou proporcionar nenhuma justificativa moral crível para as imagens ininterruptas dos corpos inertes de crianças que são retiradas dos escombros a cada dia, fica apenas uma opção para os que apoiam: atuar como se não fossem participantes, mas sim observadores passivos e esperar que o público não se dê conta de que esta afirmação não tem sentido.