Por ENRIQUE VENEGAS
Via Viento Sur
Tradução: Radar Internacional
A primeira coisa que caberia dizer é quão oportuna é a publicação deste livro pela Editora Catarata (2023), algumas semanas antes de o governo israelense iniciar o que já se considera uma nova Nakba (em árabe, catástrofe) com maior violência, se é que se pode dizer isso, que as de 1948 ou de 1967. Embora suponha-se que a limpeza étnica que aconteceu entre 1947 e 1948 tenha expulsado pelo menos 750.000 pessoas palestinas de seus lares, mais de 75 anos depois as proporções do genocídio superam todos os limites imagináveis. Nove meses após o início da resposta israelense aos ataques coordenados pelo Hamas, os bombardeios massivos e indiscriminados realizados pelo exército israelense já superam as 38 mil vítimas mortais e mais de 88 mil pessoas feridas. Soma-se a isso os 2 milhões de palestinas e palestinos que sofreram deslocamentos forçados, que têm sofrido as consequências da destruição massiva da infraestrutura ou o bloqueio da ajuda humanitária.
Em meio a esse massacre tem voltado a aparecer a proposta de dois Estados como solução para um dos casos de colonização mais enraizados no tempo. Daí a pertinência da publicação de José Abu-Tarbush e Isaías Barrenada, quando alguns presidentes de governos europeus, entre os quais se destaca Pedro Sanchez, apressaram-se a tirar da gaveta o reconhecimento do Estado Palestino.
Embora a solução de dois Estados na Palestina tenha sido apresentada pela primeira vez antes de 1948, durante o Mandato Britânico da Palestina, foram os Acordos de Oslo que insuflaram novas esperanças sobre a inauguração de uma etapa de convivência e paz que incluía a solução de dois Estados.
Como bem e explicado já no primeiro capítulo do livro, esses Acordos nascem em uma situação de desigualdade, que se traduziu nos compromissos contraídos por cada parte. Enquanto Israel se limitava a aceitar a OLP como representante do povo palestino, sem nenhuma obrigaçao de reconhecer seu direito a autodeterimnaçao e independencia, a OLP renunciava aos artigos da sua carta constitucional contrarios ao reconhecimento do direito a existencia de Israel.
Além de analisar essa assimetria de poderes, os autores comparam as trajetórias de ambos os atores. Por um lado, Israel ajustava a sua estratégia para se adaptar ao novo contexto internacional derivado do fim da Guerra Fria, sem que isso significasse, em hipótese nenhuma, sua retirada dos territórios ocupados em 1967. Por outro lado, a OLP sofria uma evolução pragmática derivada de uma importante crise e fragilidade interna. Entre outros fatores, devido a marginalização política e diplomática no âmbito regional e internacional, pela sua posição ambígua na Guerra do Golfo. Mas também, por uma desorientação política agravada pelas dificuldades para tomar decisões estratégicas, diante do temor das divisões internas, somada ao enfraquecimento dos vínculos com as bases sociais e políticas depois dos deslocamentos da resistência palestina aos territórios ocupados.
E nesse contexto que foram assinados os Acordos de Oslo (1993-1995), que nasceram condicionados não apenas pela citada disparidade de forças entre Israel e a OLP, como também pela sua “indefinição sobre o resultado final”, a qual se referem os autores do livro. Além de terem ignorado as resoluções da ONU a respeito da questão Palestina, também não foi estabelecida a necessidade de pôr fim à ocupação, nem se reconheceu o direito a autodeterminaçao do povo palestino.
Essa assimetria permitiu a Israel, como potência ocupante, impor um status quo que, enquanto mantinha a ficção do processo de paz, lhe permitia avançar na política de fatos consumados para acabar tornando inviável a opção de dois Estados. No lugar da tão sonhada existência de dois Estados, cuja concretização seria postergada nos Acordos de Oslo para a fase final do período interino de cinco anos, foi criada a Autoridade Palestina (AP), que começou a funcionar em maio de 1994. Para dar viabilidade a essa espécie de pseudo-Estado, a OLP transferiu grande parte de seus quadros políticos e militares para as novas instituições, convertendo-os em funcionários, para cuja manutenção a AP passou a depender da ajuda internacional, depois do incumprimento dos compromissos de Israel em matéria de transferências fiscais.
No marco da frustração gerada pelo fracasso dos Acordos de Oslo, cresceu a crítica à solução de dois Estados, reavivando o interesse pelo projeto de um único Estado democratico ou binacional. Um único Estado secular na Palestina histórica em que convivam tanto árabes como judeus. Proposta que já nos anos sessenta do século passado defendiam grupos militantes antissionistas em Israel e que tem gozado de certo prestígio em vários momentos ao longo do conflito palestino-israelense.
Passados os primeiros três capítulos, o livro adentra na análise da deriva ultranacionalista de Israel, assim como na origem e desenvolvimento histórico do projeto de colonização sionista, cujo objetivo de invisibilizaçao do povo palestino ficava bem claro no seu slogam original: “Una terra sem povo para um povo sem terra”. O dito processo de colonização contou com dois ingredientes fundamentais. Em primeiro lugar, a violência, tanto através das distintas campanhas militares, como mediante o expansionismo territorial através dos assentamentos de colonos. E, em segundo lugar, o regime de apartheid, que permite a Israel desenvolver sua política de discriminação e segregação, assim como as restriçoes as liberdades basicas e as direitos fundamentais da populaçao palestina.
O sétimo e último capítulo é dedicado a repassar as alianças que, a nível internacional, foi tecendo Israel ao longo dos anos e que lhe permitiram gozar de uma impunidade impressionante pese os reiterados descumprimentos e violações da legalidade internacional. Do respaldo internacional do Reino Unido ao projeto sionista, substituido no inicio da Primeira Guerra Mundial e continuado ate os nossos dias pelos Estados Unidos, ate a passividade, o silencio cumplice e a trajetoria cheia de contradiçoes da Uniao Europeia. Os autores também não se esquecem de incluir uma referência ao papel das potências emergentes, as conhecidas BRICS, e seu comportamento mais determinado por razões pragmáticas do que por ideais políticos e ideológicos.
O capítulo finaliza tratando sobre o papel jogado pelos países árabes no conflito palestino-isralense. A partir do percurso pelos acontecimentos que deram lugar ao que se denomina no livro “o reajuste estratégico do campo arabe”, chegamos aos Acordos de Abraham (2020). Uma tentativa de normalizar as relações de Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Sudão e Marrocos com Israel, obtendo de cada um deles as correspondentes contrapartidas. Aliança de interesses estimulada pelas revoltas anti autoritárias árabes de 2010-2011 e os temores que despertaram nas elites governamentais desses países a perda do monopólio do poder diante das demandas democráticas de seus povos. Por sua parte, Israel adotaria a função de principal potência na zona, suprindo o recuo estratégico dos Estados Unidos. Estratégia compartilhada pelas diferentes administrações da Casa Branca, desde Obama a Biden, passando por Trump.
Como afirmam os autores no epílogo do livro, a situação humana e política dos territórios é manifestamente pior do que quando os Acordos de Oslo foram assinados, há mais de 30 anos. Durante esse tempo, Israel manteve e incrementou o colonialismo de assentamentos, alinhado com o projeto inicial do movimento sionista. Mediante a política de fatos consumados, multiplicou a construção de assentamentos de colonos nos territórios palestinos, perpetuando a ocupação. Enquanto isso, a nível internacional lavou sua imagem e melhorou suas relações exteriores graças ao processo de Oslo. O predomínio que dito processo outorgou a Israel lhe permitiu ir socavando a viabilidade de um Estado palestino. Assim, a solução de dois Estados se tornou letra morta, em primeiro lugar pela falta de vontade política para resolver o conflito por parte de Israel na sua qualidade de potência ocupante. Ao que deve-se acrescentar a descontinuidade territorial imposta ou as restrições de mobilidade a que está submetida a população palestina. Questões que, somadas a inviabilidade econômica, acabaram obstaculizando a possibilidade de um minimo Estado palestino. Apesar de tudo isso, nesse trânsito desde os Acordos de Oslo ao apartheid que institucionaliza a opressao e a segregaçao racial do povo palestino, sua resistencia tem permitido que siga viva a confiança em alcançar a libertação.
Enrique Venegas é membro do Conselho Assessor da Viento Sur.