Valério Arcary: Venezuela em cinco notas

Valério Arcary

Colunista do Radar Internacional

 

 

1. A Venezuela é um país fraturado, social e politicamente, há décadas. As chaves, em perspectiva histórica, para uma compreensão da situação, telegraficamente, são dez: (a) a repressão impiedosamente, assassina do Caracazo de 1989; (b) o surgimento de um movimento nacionalista de esquerda na média oficialidade da Forças Armadas, e a sublevação militar derrotada, liderada por Chávez em 1992, que o levou à prisão, porque assumiu toda a responsabilidade; (c) o impeachment de Carlos Andrés Pérez por corrupção em 1993, sob a acusação de corrupção; (d) a eleição de Chávez em 1998, e a aprovação de uma nova Constituição em 1999; (e) a derrota da tentativa de golpe militar que emprisionou Chávez, apoiado e reconhecido pelos EUA em 2002, que precipitou uma situação revolucionária; (f) o cerco econômico imperialista, durante vinte anos, que se apropriou até das reservas da Venezuela depositadas em bancos no exterior; (g) a morte precoce de Chávez em 2013, uma liderança insubstituível porque ganhou autoridade messiânica; (h) a posse de Maduro em 2013, nas primeiras eleições sem Chávez, reeleito em 2018 para mais seis anos de mandato, e o desgaste político do domínio monolítico do PSUV sobre o Estado e, em consequência, o enrijecimento de tipo bonapartista do regime, nas mãos de uma casta político-militar privilegiada; (i) o sistemática apoio norte-americano às táticas golpistas de uma oposição burguesa que se radicalizou como neofascista, boicotou as eleições e até sustentou a auto proclamação de Juan Guaidó como presidente, em 2019, reconhecida pelos EUA e aliados; (j) a imigração de, pelo menos, 20% da população desde 2015, algo em torno 5,5 milhões de pessoas, talvez, até 7 milhões, meio milhão no Brasil, a maioria pobre, mas, também, uma parcela imensa das camadas médias mais instruídas, engenheiros e profissionais especializados que fugiram do país.

2. A questão central da situação na Venezuela foi e permanece sendo a apropriação da renda petroleira. A Venezuela tem as maiores reservas mundiais de petróleo e gás: é o seu privilégio e sua maldição. Os EUA querem acesso estratégico irrestrito, o que é incompatível com um Estado independente. O cerco imperialista do bloqueio é a explicação principal para a crise econômica de superinflação, desabastecimento, contração do PIB, desemprego e redução da produção de petróleo e migração em massa. Venezuela está sob boicote. Cuba aguenta o bloqueio yankee desde os anos sessenta. Nenhum país dependente poderia atravessar tanto tempo em condições tão terríveis sem uma crise crônica. Durante a primeira década do século XXI, até 2013, o país se beneficiou, nas trocas internacionais, pela elevação do preço das commodities, que favoreceram variadas políticas públicas de transferência de renda que reduziram a pobreza, mas não a desigualdade social. A diferença entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres é ainda de quase 35 vezes. Os últimos dez anos foram terríveis. A queda de 70% no PIB, entre 2013 e 2019, foi devastadora. Aproximadamente 50% da população do país estava na pobreza em 2023. É necessário manter a mente lúcida e reconhecer, também, que: (a) a classe capitalista foi, durante gerações, uma burguesia compradora, nunca abraçou qualquer projeto de desenvolvimento e intermediava o acesso dos centros capitalistas ao petróleo que responde pelo menos por 30% do PIB e 80% das exportações; (b) apesar do discurso nacionalista bolivariano, expressão da radicalização de um setor da média oficialidade contra a pobreza e a corrupção que arrastou grandes massas populares, a Venezuela mantém uma economia capitalista com forte regulação estatal pelo controle da PDVSA e o país não esteve nunca em transição ao socialismo; (c) depois de duas décadas se formou uma casta burocrática civil e militar, a boliburguesia, que, pelas relações com o Estado, sobretudo depois da morte de Chávez, enriqueceu através da formação de empresas; (d) as Forças Armadas são um dos pilares do regime e não há fissuras na alta oficialidade, depois da derrota do golpe de 2002, o que garantiu a repressão, inclusive, de lutas populares e o silêncio ou invisibilidade da esquerda crítica; (e) as pesquisas de opinião para a eleição de domingo 28 de julho são enviesadas e não merecem credibilidade, mas o regime tem base social real. Pelo menos quatro milhões de pessoas estão organizadas e mobilizadas e, em 2018, apesar de uma abstenção de 54%, Maduro foi eleito por 6,2 milhões. O desfecho parece imprevisível e, possivelmente, o resultado será apertado, muito em função do comparecimento, se for maior ou menor do que 50%. Há 20 milhões de eleitores aptos para votar.

3. A oposição liderada por Maria Corina que apresentou a candidatura de Edmundo Gonzalez é um movimento de extrema-direita neofascista, mas com uma narrativa “épica” de luta contra uma ditadura. A campanha para normalizá-la como candidatura em defesa da democracia é falsa e desonesta. Financiada pela burguesia “histórica” se apoiam na mobilização da classe média, na sua maioria brancos eurodescendentes, em um país em que a maioria é mestiça, mas arrastam setores populares desesperados, porque apropriaram-se da bandeira da esperança de “mudança”. Defendem a privatização de tudo, a começar pela PDVSA e a prisão de Maduro. Prometem, se vencerem, que os emigrados voltarão. E são muitas milhões de famílias com parentes no exterior. A gravidade da situação é tal que grupos com origem na esquerda moderada, como Hector Navarro, ex-ministro de Chávez, e a Plataforma de defesa da Constituição, entre outros, decidiram chamar ao voto em Edmundo Gonzalez. Numa eleição plebiscitária entre Nicolás Maduro e Edmundo González, mesmo com uma avaliação, radicalmente, crítica do autoritarismo bonapartista, a neutralidade é cumplicidade com o imperialismo e a extrema-direita.

4. Maduro está à frente de um governo independente e de um regime bonapartista sui generis (ou especial, porque em um país dependente na periferia), como foi o de Péron na Argentina. Não é um vassalo semicolonial como o governo de Milei no poder em Buenos Aires. Governos são definidos como de esquerda, centro, direita ou extrema-direita, mas estas caracterizações são ligeiras. Têm sentido limitado, quase instrumental. Porque são didáticos. Em linguagem marxista devem ser definidos a partir do lugar que ocupam no sistema internacional de Estados, considerando uma análise de classe do bloco político-social que sustenta o seu projeto e a forma institucional do regime em que estão inseridos. O conceito de “governo independente”, em um sistema internacional de Estados imperialista, tem utilidade para compreender o tipo de relação que mantém com os centros de poder no mundo. Governos independentes são raros, excepcionais e, portanto, instáveis. O governo de Maduro é um governo burguês, apoiado no Exército e numa fração capitalista em formação, a “boliburguesia”. Mas o que está em jogo na Venezuela não é a luta pela democracia, é o controle do petróleo e do país. Se a oposição de extrema-direita vencer não haverá liberdades democráticas. Haverá um revanchismo contrarrevolucionário implacável. O que está em disputa é o controle da PDVSA.

5. A queda do governo por uma vitória eleitoral da oposição de ultradireita seria uma catástrofe política e social para os trabalhadores e o povo da Venezuela. Maior que a permanência de Maduro? Sim, exatamente. Muito maior. Uma vitória da contrarrevolução exigiria, provavelmente, o intervalo de pelo menos uma geração para se poder voltar a pensar em uma revolução na Venezuela. Mudaria de forma muitos desfavorável a relação de forças na América do Sul, fortalecendo o neofascismo através das fronteiras, inclusive no Brasil. Há boas razões para pensar que o que viria depois de uma vitória de Edmundo Gonzalez, em comparação com a tragédia que foi o governo Bolsonaro, seria muito pior.