Por José Soeiro, Via Esquerda.net
Foto: Reprodução Bloco de Esquerda
O deputado José Soeiro, que conduziu a intervenção do Bloco no processo de alteração às leis do trabalho, apresenta dez notas para um balanço desta reforma laboral.
1. A primeira crítica a fazer a esta reforma laboral parte daquilo que ela não tem. Isto é, do facto de o PS, agora em maioria absoluta, ter optado por manter o quadro de desequilíbrio nas relações de trabalho que vem do Código do Trabalho de 2003, da versão do Código de 2009 e das alterações feitas na sequência da intervenção da troika em 2012 e 2013. Particularmente significativa nesta orientação é a conservação das regras sobre caducidade (isto é, a não reposição do princípio de que a uma convenção coletiva de trabalho sucede sempre outra convenção coletiva, e nunca um vazio) e a não recuperação integral do princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador (que impediria negociar regras piores que a lei geral). Estas questões são um pilar do desequilíbrio a favor do patronato. Além disso, o valor das compensações por despedimento coletivo, que era de 30 dias por cada ano trabalhado até 2012, mantém-se praticamente intocado: dos 12 dias por ano, que a direita estabeleceu em 2013, passa-se agora para 14. Permanecem ainda no Código do Trabalho, por não terem sido revertidos, vários cortes da troika: nos dias de férias (22 dias, quando eram 25 até 2012), no valor das horas extra e no descanso compensatório. Também se mantêm, por exemplo, os fundamentos que existem na lei para a celebração de contratos a prazo. O único caso da reposição do valor pré-troika com esta reforma laboral é nas compensações por caducidade dos contratos a prazo, que voltam aos 24 dias que estavam na lei até 2012. Por outro lado, a chamada “Agenda do Trabalho Digno” é marcada por grandes ausências, designadamente no que diz respeito aos trabalhadores por turnos ou ao facto de o PS se ter juntado à direita para rejeitar a redução do período normal de trabalho para as 35 horas semanais.
2. Um dos casos emblemáticos da manutenção de regras humilhantes é a que estabelece que um trabalhador que receba a compensação por despedimento fica impedido de contestar a licitude desse despedimento. É uma norma que permite aos patrões “comprarem” o silêncio do trabalhador, aproveitando a sua situação de fragilidade e amordaçando-o no exercício dos seus direitos, num contexto em que ele dificilmente pode prescindir de receber o que é dele para poder ir contestar no tribunal a decisão do patrão. Ao contrário do que li, e como sabe qualquer dirigente sindical ou qualquer trabalhador que tenha passado por um processo de despedimento, esta não é uma novidade desta “Agenda”. É uma regra que está na lei desde 1989. Só entre 1999 e 2003, durante o governo Guterres, ela foi suprimida. Mas em 2003 voltou ao Código do Trabalho, onde vigora até hoje. Em 2018, o Bloco chegou a ver aprovado na generalidade um projeto de lei para eliminá-la. Mas, passados uns meses, o PS deu uma das suas cambalhotas e acabou por chumbar essa alteração. Esta norma, que há 30 anos persegue os trabalhadores, é um exemplo daquilo em que esta reforma não toca.
3. No processo de discussão da proposta do governo e das centenas de propostas apresentadas pelos partidos, dois temas tiveram particular destaque no espaço público: a regulação do trabalho em plataformas digitais e a questão dos créditos laborais dos trabalhadores quando um contrato chega ao fim. No debate sobre as plataformas e os algoritmos, que está ao rubro em toda a Europa, o Bloco colocou-se na ofensiva, com propostas próprias e dando a devida importância a um conflito que é central para a relação de forças e para o futuro do trabalho. Com esta estratégia, houve um embate público entre o Bloco e o lobby das multinacionais. O PS teve, sobre esta questão, nada menos que quatro propostas diferentes. Primeiro, cedeu em toda linha à pressão das plataformas e das multinacionais. Depois, perante as propostas do Bloco, a crítica pública dos coordenadores do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho e da Autoridade para as Condições do Trabalho e a flagrante contradição com a próxima diretiva europeia (aprovada com os votos dos grupos da esquerda e socialista no Parlamento Europeu), o PS teve de recuar. Numa primeira fase, de forma tímida. No final do processo, com uma alteração relevante das suas posições iniciais. Várias propostas do Bloco acabaram aprovadas, com o voto contra da direita. Se a “presunção de laboralidade” para reconhecer contratos de trabalho aos trabalhadores das plataformas (que se estima serem já mais de 100 mil em Portugal) for levada a sério, estas passarão a ser, como titulava um jornal, o “maior empregador privado nacional", obrigadas a reconhecer todos os direitos relacionados com “acidentes de trabalho, cessação de contrato, proibição de despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período de trabalho e igualdade e não discriminação”, tal como o Bloco propôs. A inclusão dos trabalhadores das plataformas na lei do trabalho é uma vitória contra o liberalismo.
4. Num processo que parecia de cartas marcadas, o Bloco introduziu um outro conflito público com os patrões, a propósito dos créditos laborais - os direitos que os trabalhadores têm no fim do contrato, que hoje são extorquidos através de uma declaração imposta pelo patronato em que os trabalhadores dão como “extintos” esses valores em falta (de salários, subsídios, etc.). O Bloco apresentou uma proposta que nunca havia sido feita: proibir pela lei esta prática, chamada de “remissão abdicativa”. A proposta do Bloco foi aprovada (por PS e PCP, com voto contra da direita), suscitando a indignação do presidente da CIP e, depois, sucessivas cambalhotas do PS ao sabor das pressões patronais. Mas a manobra de última hora dos patrões, com expressão no PSD e no PS, para reverter a medida do Bloco que já tinha sido aprovada, foi derrotada. O fim da possibilidade de extinguir os créditos do trabalhador no final dos contratos é uma medida com impacto material e simbólico relevante.
5. Houve outras alterações aprovadas, umas por unanimidade, outras com os votos favoráveis do Bloco e do PCP e o voto contra do PSD, que trazem progressos em determinadas matérias. É o caso da proibição da sucessão de contratos a termo; das exigências relativas ao trabalho temporário; da proibição de recurso à externalização (outsourcing) por empresas que despedem; de alguns direitos de parentalidade e alargamento de faltas justificadas; da clarificação de regras sobre teletrabalho e pagamento de despesas; do direito dos sindicatos intervirem em empresas onde não há sindicalizados; do reforço de alguns instrumentos e poderes da inspeção do trabalho; ou da igualização de direitos de estagiários. Várias destas propostas correspondem a normas apresentadas no passado pelo Bloco (por exemplo, relativamente ao outsourcing) ou resultam de propostas do Bloco neste processo de especialidade. De entre as propostas do Bloco aprovadas destacam-se, além da dos créditos laborais e das plataformas, as questões do teletrabalho e da transparência dos algoritmos.
6. Os direitos de trabalhadores-cuidadores e das trabalhadoras do serviço doméstico têm tido, historicamente, muito pouca atenção. A lei discriminatória do serviço doméstico é a expressão do apoucamento e da desvalorização social deste trabalho, a que corresponde uma segregação legislativa e uma invisibilização política. A esquerda e o movimento sindical devem fazer uma retrospetiva crítica da sua escassa intervenção neste domínio. O fim de algumas discriminações inaceitáveis na lei do serviço doméstico, agora aprovadas, dizem respeito a cerca de 110 mil pessoas em Portugal que fazem este trabalho assalariado. O reconhecimento de direitos de faltas ou de organização do tempo de trabalho a cuidadores informais com emprego, embora sejam medidas limitadas, concernem cerca de 180 mil pessoas que, tendo um emprego, o acumulam com a sobrecarga de cuidar de algum familiar ou pessoa próxima dependente. Mesmo sabendo que, neste campo, muito ficou por fazer e várias propostas foram chumbadas, estes temas não devem ser subalternizados como questões irrelevantes ou menores para o direito do trabalho ou para a esquerda.
7. No âmbito das relações coletivas de trabalho, será importante avaliar o impacto da obrigatoriedade da fundamentação das denúncias de convenções e da sua sindicância pelo novo mecanismo arbitral. Sendo errada uma substituição da negociação coletiva por uma generalização da arbitragem, terá de ser acompanhado o resultado do recurso à arbitragem como instrumento de incentivo à continuação da negociação entre as partes e de combate aos vazios no âmbito da contratação coletiva. A inclusão de trabalhadores a recibo verde e dos trabalhadores em outsourcing na contratação coletiva abre um campo de ação sindical relevante e pode ser um instrumento para combater estas estratégias de esvaziamento do poder dos sindicatos e de imposição da desigualdade entre trabalhadores.
8. A eficácia de muitas destas normas aprovadas depende grandemente da força da inspeção do trabalho, da efetividade da lei, da intervenção dos tribunais, da capacidade organizada do mundo do trabalho. Ou seja, elas são um instrumento e um desafio.
9. Num contexto de maioria absoluta - em que, por definição, não há lugar a negociações -, o PS foi forçado a introduzir alterações progressivas nalguns temas. Nenhuma das alterações aprovadas nesta reforma é regressiva, nem há qualquer medida que retire direitos a quem trabalha. Mas isso não basta para inverter o quadro estrutural de desequilíbrio das relações de trabalho em Portugal. A atual reforma é criticável por tudo o que deixa intocado.
10. A esquerda não deve desistir de uma transformação estrutural das relações de trabalho e da reversão do desequilíbrio que hoje é a marca da legislação laboral, que tem vindo a individualizar as relações de trabalho e a permitir a instalação da precariedade. Só essa transformação estrutural, que esta reforma não iniciou, poderá dar conteúdo e garantia à promessa de dignidade feita a quem trabalha.