Protestos de massas no Irã cantam: “Nem Mullahs, Nem Xá: Democracia” 

 

Foto: Gerry Poppostone

Entrevista com Parandeh[1] 

Entrevistador: Sayeh Javadi

A morte de Jina Mahsa Amini, uma mulher de 22 anos detida pela polícia da moral no dia 13 de setembro no Teerã, marcou o começo de uma onda de protestos massivos. As autoridades iranianas sustentam que Amini morreu de um ataque do coração e não assumem nenhuma responsabilidade por sua morte, apesar de que a jovem gozava de uma saúde excelente e de que há testemunhas que declaram que ela foi espancada e abusada. Os manifestantes pedem que acabem as leis de obrigatoriedade do roosari - o hijab -, denunciam a desigualdade econômica e ainda exigem a substituição completa do governo teocrático.

Nas últimas semanas milhares de manifestantes foram detidos e o governo fez apagões de internet para dissuadir a organização e evitar a circulação de informação. As autoridades informam que há pelo menos quarenta mortos, ainda que fontes independentes sustentem que são muitos mais. As cenas são comoventes: jovens que lutam contra os Corpos da Guarda Revolucionária Islâmica (IRGC), manifestantes que tomam cidades inteiras e mulheres raspando a cabeça, incendiando os seus roosari egritando “Abaixo a república islâmica!”.

Ainda que a mobilização tenha começado a perder força nos últimos dias, os trabalhadores estão paralizados: os estudantes e os docentes estão em greve, e os sindicatos e as organizações trabalhadoras, incluindo o valioso setor petroleiro do Irã, estão pedindo para que não se compareçam aos locais de trabalho.

O governo teocrático do Irã tomou o poder em 1979. Logo após de uma revolução contra Reza Shah, brutal ditador respaldado pelos Estados Unidos, que estava a frente ded um governo definido pela intensa exploração dos trabalhadores, a repressão de todo conflito e o controle estrangeiro do petróleo iraniano. Os trabalhadores e as forças de esquerda tiverem um papel central tiveram um papel central em sua queda, porém o líder supremo Ruhollah Khomeini e o clero tomaram o controle do processo e impuseram um governo islâmico autoritário que terminou perseguindo os elementos progressistas que haviam feito cair o regime anterior.

O ciclo de protestos maisrecente no Irã foi em novembro de 2019. O povo de alçou contra os elevados aumentos no preço do gás, a má gestão do governo e a corrupção generalizada do líder supremo Alí Jamenei e do presidente Hasán Rohaní. A Guarda Revolucionária reprimiu violentamente esses “protestos do petróleo”, matou milhares de manifestantes e encarcerou outros milhares. Porém, apesar da repressão, os iranianos estão novamente nas ruas.

Parandeh tem vinte e dois anos. É artista e escritora azerbaijana de ascendência iraniana, milita na esquerda e participa de organizações sindical há três anos. Nessa longa entrevista ela discute a morte espantosa de Amini, compartilha suas perspectivas sobre o futuro do país e explica por que a intervenção do Ocidente e dos Estados Unidos prejudica o movimento e não contribui com a causa da democracia no Irã. Por sua segurança omitimos todos os detalhes sobre sua vida e sobre seu trabalho político.

 

SJ – Qual foi sua primeira reação amorte de Jina? 

P – Descobri sobre o ataque enquanto eleestava acontecendo. Me comuniquei com seu irmão enquanto ela estava no hospital e ainda não havia morrido. Eu tinha oito anos quando mataram a Neda Agha-Soltan [ativista fuzilada pela Guarda Revolucionárias durante os protestos do movimento verde de 2009]. Ainda que todos os adultos em minha vida tivessem tentado impedir que eu visse o vido que circulava por todas as partes, foi inevitável e deixou uma marca profunda em mim. Mesmo assim, recordo que logo depois de ver o vídeo tive que esconder minha tristeza ante meu pai.

O tempo passou e desde então muita gente se foi assassinada nas ruas durante distintas manifestações, muitas filhas e esposas sofreram assassinatos de honra e decapitações, enquanto seus executores receberam apenas penas leves. Creio que todos nós iranianos temos certa insensibilidade e desafeição pela morte. Assim quando espancaram Jina até a morte eu me enojei, porém não foi uma surpresa.

 

SJ – Os protestos posteriores foram espontâneos? 

P – No Irã sempre houve organização e mobilização contra o governo. Porém, creio que esses protestos são mais espontâneos, especialmente no Curdistão iraniano. Creio que ninguém poderia ter visto o que aconteceu com Jina sem sentir o impulso de sair as ruas.

Quando a política começou a matar os manifestantes e disparar brutalmente contra uma criança curda de dez anos, o incentivo a protestar sem um plano definido cresceu muito mais. As pessoas estão insatisfeitas já faz muito tempo.

 

SJ – Qual a natureza de classe dos protestos? 

P – Durante os protestos do petróleo de 2019 vi uma entrevista com um bazaari [comerciante pobre] que esteve nas ruas durante o movimento verde [que surgiu dos protestos logo após as eleições de 2009]. O jornalista perguntou-lhe qual era a diferença entre os protestos do petróleo e o movimento verde e o que havia mudado nos dez anos que separavam ambos os acontecimentos. A resposta do bazaari foi simples: os protestos do moimento verde foram protestos das classes altas e médias, e os protestos do petróleo foram protestos da classe operária.

Depois dos protestos do petróleo, vimos outra série demobilizações dirigidas pela classe operária de Khuzistão, onde os trabalhadores entraram em greve. Qualquer um que tenha estudado os movimentos revolucionários ao longo da história sabe que a classe operária desempenha um papel central nas conquistas das demandas de qualquer revolução.

Os protestos que vemos hoje começaram como um movimento de trabalhadores. Amini era curda e era de Saqez; Saqez é uma comunidade de classe operária e minoria étnica dos curdos, o que a coloca em uma posição ainda mais desvantajosa.

Porém os protestos cresceram para além da comunidade curda e atravessaram muitas cidades diferentes do país e muitas classes sociais. Outras vezes vimos protestos contra a obrigatoriedade do hiyab dirigidas pelos cidadãos de classe média e alta do norte de Teerã e de outras áreas metropolitanas e naturalmente esses setores formam parte dos protestos atuais. Porém essa é uma das primeiras vezes que participam distintas classes sociais do Irã e que distintos grupos étnicos, os religiosos e os seculares, se unem contra um inimigo em comum.

 

SJ – Os estudantes e os docentes estão em greve, e muitos sindicatos, entre eles o do petróleo, estão ameaçando seguir o mesmo caminho. Quanta influência e quanto poder tem o movimento de trabalhadores no Irã? 

P – É um processo incrível e alimentará a moral de todos os iranianos que põem em dúvida o caráter genuíno deste movimento. Vi uma imagem incrível dos protestos do Khuzistão, que mostra mãos operárias com a seguinte legenda: “Os trabalhadores sustentam a vida”. Me parece que isso se aplica a todas as sociedades em que a classe trabalhadora é oprimida, porém é especialmente pertinente no caso do Irã. Sem nossos agricultores, nossos mineiros, nossos trabalhadores siderúrgicos e nossos professores, o Irã não funcionaria.

Eu gosto de citar as palavras de Sadegh Kargar, um militante operário iraniano:

Os oprimidos não chegaram a governar [depois da revolução],terminaram sendo mais oprimidos. [O governo] eliminou as leis de proteção trabalhista [...]. Apenas um trabalhador protesta, as forças repressivas especiais o reprimem [...]. Hoje os trabalhadores são açoitados, detidos e condenados a dez anos de cárcere por questões sindicais como acontece, por exemplo, por um docente ou um trabalhador que forma um sindicato e defende os direitos dos docentes ou dos trabalhadores de formar um sindicato. O governo defende aos capitalistas que são os mesmos de sempre e trata os oprimidos pior do que antes, com mais violência, com menos piedade e de forma mais inumana. De fato, com a república islâmica os trabalhadores perderam todo o que havia ganhado em cem anos de luta.

Os trabalhadores iranianos sempre realizaram greves, porém os registros mais antigos que temos no Irã contemporâneo são do movimento constitucional de 1905. O período entrer 1953 e 1979 foi marcado por muitas greves operárias (a maior em 1977), e os direitos trabalhistas foram um princípio essencial para os revolucionários de todas as procedências.

Imam Khomeini, que ainda estava exilado em Paris, concedeu uma série de entrevistas a jornalistas ocidentais em que assegurou que seu governo honraria e respeitaria todos os trabalhadores iranianos. Por exemplo, disse que

Os trabalhadores da república islâmica têm o direito de reunirem-se e de defender seus direitos sindicais. Os trabalhadores mais desfavorecidos do Irã, que são em sua maioria campesinos devotos, pobres e famintos, tem direito a lutar de qualquer modo possível e legítimo para conquistar seus direitos.

Quando os revolucionários islâmicos chegaram ao poder, o país estava cheio de cartazes de propaganda que mostravam trabalhadores rezando e uma frase de Imam Khomeini que dizia “O islã é o único defensor do trabalhador”, uma declaração impressionante vinda de um homem que se definia como um reacionário em suas discussões com os esquerdistas e que havia deposto aos trabalhadores do Irã de sua liberdade de reunião e executado a maioria dos militantes operários.

Nada mudou na vida do trabalhador médio iraniano desde a época do Xá, e eu creio que quarenta e três anos são suficientes para o período transicional de uma revolução. O que estamos vendo hoje nas ruas do país, na maioria das cidades e dos povos, aponta para o mesmo sentido. Antes desses protestos, em dezembro de 2021, muitos professores de Teerã fizeram uma greve exigindo salários mais altos e sofreram detenções massivas. Hoje eles lutam por seus salários e em solidariedade com os estudantes que estão protestando. De fato, muitos professores universitários renunciaram aos seus cargos.

O Conselho de Coordenação de Sindicatos e Educadores declarou que os dias 26 e 28 de setembro eram dias de greve nacional e convocaram a participar tanto os professores quanto os estudantes. Os estudantes iranianos das escolas secundaristas estão fazendo suas próprias greves com a intenção de eliminar a obrigatoriedade do véu nas escolas. Esse movimento é dirigido pela organização de Estudantes Mulheres Progressistas do Irã, que agora está convidando aos homens que participem das greves e que a defendam com suas companheiras mulheres. Os estudantes iranianos de quinze universidades também começaram a se mobilizar, com reinvindicações mais amplas que seus companheiros mais jovens, envolvendo a corrupção governamental.

Em todas as cidades do país, muitos iranianos de distintos lugares e profissões estão em greve desde que terminaram os protestos da primeira semana. Esse é o caso especialmente do Curdistão iraniano. Em Rasht e em outras cidades da costa do mar Caspio, a população está retomando as formas mais clássicas de mobilização, distribuindo panfletos que convocam aos trabalhadores a participar das greves. O Conselho Organizador de Protestos de Trabalhadores Contratados do Petróleo também publicou uma declaração e ameaça paralisar as atividades se o governo seguir com a repressão.

O governo tem muito medo porque o petróleo é o nosso principal produto de exportação desde o começo do século XX. Essa ameaça e a preocupação que gera mostram que os trabalhadores têm muito poder apesar de que praticamente não tem direito e nem representação. Estou muito orgulhosa de nossos valentes trabalhadores e de sua perseverança.

Contudo, há um grupo desafortunado de trabalhadores que não é suficientemente definido nem representado: as crianças. Segundo um informe de 2020, existem dez milhões de crianças trabalhadoras no Irã e sete milhões realizam trabalhos de risco. Espero que a medida que se desenvolve esse levantamento, distintos grupos dentro e fora do Irã deem voz as crianças trabalhadoras de nosso país e que eventualmente consigamos por fim ao trabalho infantil no Irã.

Estou convencida de que a participação em massa dos trabalhadoresnessa revolta vai avançar nosso movimento e com o tempo criará um Irã mais ético, justo e poderoso.

A beleza desses protestos é que estão sendo protagonizados porpessoas de todas as idades e gêneros. Há pouco vi dois vídeos muito comoventes, um de uma avó rashiti que tira o véu e diz que se lembra de ter protestado durante a queda do primeiro-ministro Mohammad Mossadegh em 1953, e outro de um ancião firme junto a sua filha que conta que foi arrastada pela SAVAK [a polícia secreta iraniana que torturava e executava esquerdistas e dissidentes] durante a revolução de 1978.

Ambos são exemplos de uma geração que viveu uma mudança política enorme em um breve período de tempo e que agora está lutando de novo pelo futuro a favor de seus filhos. Me parece realmente comovente. É uma mensagem para o governo: nós te demos o poder e nós que te derrubaremos.

 

SJ – Estes protestos vêm depois de anos de inflação e de todo tipo de sanções aplicadas ao Irã. Quais são as reinvindicações econômicas dos protestos? 

P - Qualquer um que tenha vivido épocas de sanções ou que está familiarizado com elas sabe que afetam principalmente as pessoas, não o governo. As sanções são uma forma de guerra e as que os Estados Unidos impõem ao Irã são especialmente perversas. Contudo, as sanções não são a causa principal de nossos infortúnios. O governo corrupto compartilha uma responsabilidade equivalente pela situação econômica do nosso país. As sanções dos Estados Unidos não golpearam Amiti até mata-la e as sanções não dispararam na cabeça daquela criança curda de dez anos.

A metade da população iraniana vive de baixo da linha da pobreza,as famílias não tem carne nem pão porque o custo de vida é cada vez mais alto e as crianças não tem leite para beber de manhã. Isso está expulsando muitas crianças que tem que trabalhar na rua e, segundo um informe da república islâmica, há uma quantidade enorme de iranianos que não tem casa e que buscam refúgio em tumbas abandonadas.

Mesmo a população vivendo nessas condições, os membros do governo dirigem Mercedes Benz, desfrutam de jantares luxuosos e enormes quantidades de azeite vegetal, colocam milhões em bancos suíços e mandam seus filhos para viver no Ocidente. Seus filhos vivem sem véu e gastam seu dinheiro em cocaína e roupas de grife.

Estes protestos não são só contra a obrigatoriedade do véu, são protestos contra o governo e contra a corrupção. Faz pouco tempo li um tweet de uma jovem de Tabriz que escreveu em farsi: “Protesto pela minha mãe, porque [os governantes] não se importaram com a vacina do coronavírus no Irã e hoje é aniversário de sua morte”.

 

SJ – Você encontrou outras pessoas de esquerda no âmbito de sua participação sindical. Existe uma esquerda forte no Irã? 

P - Sob o regime do Xá era ilegal ser de esquerda e muitos esquerdistas foram detidos. O Xá os detinha, Khomeini os matava.

Ainda que existam muitos esquerdistas organizados por baixo, é raro que a esquerda domine a narrativa política iraniana. Não há nenhum líder de esquerda poderoso que se possa seguir, ou ao menos eu não o conheço.

Porém a esquerda iraniana está participando destes processos e tem suas próprias reinvindicações, que são as mesmas que não foram satisfeitas em 1976, 1977, 1978 e 1979. Os direitos trabalhistas são uma das principais preocupações, porém também são o acesso a educação, a eliminação da pobreza, a redistribuição da riqueza do país, a igualdade entre as minorias étnicas e o ativismo climático.

 

SJ – Qual foi a resposta dos conservadores de direita? 

P - Me surpreende para o bem a quantidade de conservadores queestão respaldando o povo. Vi um vídeo interessante de um protestante conservador que dizia que o governo deveria ter empatia com os manifestantes que exigem uma mudança porque eles estiveram na mesma posição quando eram jovens.

Naturalmente, também estou ciente dos chamados de protestos pró-governo. Todos sabem que o governo leva gente das cidades mais pobre e dos povoados para que marchem a favor da república islâmica em troca de um grande montante de dinheiro. Essas manifestações só existem para pessoas que querem apoiar o governo desde fora do Irã, compartilhando vídeos e dizendo “O que a mídia não quer que você veja” ou algo do gênero. [O governo está] desesperado por reaver algo de sua legitimidade.

 

SJ – Vi um vídeo de um manifestante cantando “Shah-e Irán, bargard be Irán” (Xá do Irã, volte ao Irã). Desconheço se era dos protestos atuais ou se era um vídeo antigo porém, em sua opinião, qual é a atitude em relação ao Xá em sua geração ou no seu grupo social e em outros similares.  

P – Há grupos de crianças da diáspora iraniana em minha geração que defendem o Xá mais do que mesmo Reza Pahlavi. Porém, não creio que sejam representativos das massas. Uma boa parte do desejo da época do Xá vem de certa nostalgia pelo sentido cultural de ter uma monarquia. Penso que muita gente compartilha a ilusão da grandeza, como se a vida fosse um conto de fadas. É fácil ver a situação atual, as lutas, e pensar, “Bem, ao menos naqueles dias tínhamos que lidar apenas com x, y ou z”.

Porém não estamos obrigados a eleger entre a teocracia e a monarquia, temos outras opções.

Os iranianos estão cantando: “Nem Mullahs, nem Xá, só democracia”. E eu estou de acordo.

A população iraniana é inteligente; sabemos quando estamos perdendo. Isto não é uma revolta, é uma revolução. Os manifestantes matam basijs [membros de uma das cinco forças dos IRGC], param na frente do exército e gritam “Morte ao ditador, morte a Khamenei, morte a república islâmica”, rompem e queimam imagens de Imam Khomeini, Rahbar [Khameinei, líder supremo] e Qasem Soleimani [comandante da divisão Quds do IRGC, assassinado por um drone estadunidense em 2020]. As mulheres raspam a cabeça, tiram o véu, gritam na cara dos Guardas Revolucionários e da polícia da moral. Param na frente dos tanques, dos carros com jatos d’agua, das metralhadoras e dos gases lacrimogêneos. Nessa luta só contamos com pedras e com nossos punhos. Estou absolutamente convencida de que somos um dos grupos de pessoas mais valentes do planeta. Diria que nesse momento o objetivo do manifestante médio é uma revolução que conduza a uma transição democrática, mas é claro que ela está submetida a revisão na medida em que os protestos continuem. E penso que é o que se sucederá.

A primeira consigna que escutei me fez pesar que este protesto seria diferente de todos os outros, vindo imediatamente depois do enterro de Jina. Em Saqez as pessoas gritavam, “Mataremos aquela que matou minha irmã!”. E claro, as pessoas também entoam consignais típicas, nós adoramos declamar a morte das coisas. “Morte a Khomeini”, “Morte as IRGC”, “Abaixo ao hiyab obrigatório”, etc. Uma boa é “Zan, zendegi, azadi”, que significa “mulheres, vida e liberdade”. É muito simples. Também escutei gente cantando “Não temos medo”, ou simplesmente “Azadi”.

Também cantam canções antifascistas ou esquerdistas da época da revolução. Cantam a canção da época da resistência chilena de Salvador Allende, “O povo unido jamais será vencido” e o clássico antifascista “Bella ciao”.

Ainda que não seja estritamente uma canção também quero mencionar certa mudança que observo no imaginário revolucionário. Essa manhã, um grande grupo de manifestantes carregou o Derafsh Kaviani, o Kaveh – a bandeira dos ferreiros – que no folclore iraniano representa a um importante herói da classe operária que resistiu a um tirano brutal. É a primeira vez na história recente que vejo que os iranianos resgaram heróis revolucionários do folclore e de nossa história.

 

SJ – As forças do governo infiltram manifestantes falsos para desacreditar o movimento? Li algumas notícias dessa prática em outros casos. 

A república islâmica se destaca por enviar manifestantes falsos para causar problemas. No passado queimaram seus próprios bancos e bairros do IRGC para fazer parecer que os manifestantes eram violentos. Há rumores de que o governo pagará para pessoas queimarem o Alcorão no aniversário da morte do profeta Maomé para fazer com que os manifestantes pareçam pagão anti-islâmicos.

Outro dia eu estava pensando na comédia britânica Quatro Leões, que é uma sátira do fundamentalismo e dos aspirantes jihadistas. Na série eles estão buscando um lugar para por uma bomba e um sugere que a ponham em sua mesquita local, para aparentar que foram os islamofóbicos e assim “radicalizar os moderados”. A cena termina com a metáfora de dar um soco no rosto no meio de uma luta para reunir raiva suficiente para responder, com o líder do grupo literalmente se golpeando no nariz. É irônico e espantoso pensar que o governo iraniano usa táticas inventadas por um comediante, porém, por algum motivo pensa que funcionam.

E quanto aos molotov e a violência em geral, no me surpreenderia que estejam pagando alguns grupos para que se comportem dessa maneira. Porém, também é importante notar que a população iraniana está muito zangada. Não me surpreenderia se se comportassem de forma violenta e tão pouco os criticaria.

 

SJ – O governo do Irã passou a atacar os curdos do Iraque com drones e misseis e os acusa de provocar os protestos. O que você pensa que levou a essa escalada que está alcançando a gente de fora das fronteiras do Irã e como pensas que impactará na luta popular? 

Os recentes ataques contra o Curdistão são um ato espantoso para os iranianos de todas as partes e para o movimento. Expõe de modo claro a barbárie de nossos governantes. Castigam uma etnia completa por suas próprias ações inumanas contra uma criança curda e quase dizem que foram os curdos que mataram Jina.

Porém, eu creio que esses ataques se voltaram contra a república islâmica e contra suas forças, porque não fazem com isso outra coisa senão demonstrar seu verdadeiro rosto. Mostraram o medo que tem de perder o poder e o quão inseguros estão quanto sua legitimidade. O comportamento que exibem é covarde. Só os covardes usam bombas para calar o povo inocente.

Esses ataques e o assassinato de Jina provocaram protestos dos curdos de outros países, em especial a reunião de mulheres curdas do norte da Síria na semana passada. Creio que o governo iraniano pensou que podia retornar a seus velhos modos de repressão dos movimentos sociais, respondendo as pedras com drones. Porém, as pessoas perderam o medo.

Em todo caso, esses ataques aprofundaram a fúria do povo e o desejo de lutar. É como provocar uma abelha: eventualmente ela te picará. É uma analogia um pouco ridícula, porém nesse momento o povo do Irã é a abelha. E o povo não está composto só de persas: há curdos, turcos, armênios, árabes e muitos outros irmãos e irmãs. São nossos hamevatan.

 

SJ – Considerando a agressão imperialista dos Estados Unidos e o regime de sanções contra o Irã, que tipo de solidariedade das esquerdas de outros países é preciso? 

É muito complexo. Muitas vezes me queixei dos estudantes estadunidenses que opinam sobre o Irã porque muitas vezes estão desinformados e ainda assim querem ser a principal voz. Não quero que o Irã seja um tema de conversas da moda. Quando se cansarem de nós, passarão a falar da Somália ou da Chechênia, porém nós seguiremos sofrendo.

Porém esta vez me surpreendi de ver tantos estadunidenses compartilhando vídeos, incluindo hashtags em farsi para fazer que o mundo tome consciência desses protestos. Creio que até Bella Hadid publicou um stories no Instagram com a foto de Jina. Não tenho problemas com que os estadunidenses compartilhem nossas vozes e nossas histórias, sempre e quando estudem a história de nosso povo.

Isso vale tanto no caso dos estadunidenses que apoiam os protestos como daqueles que apoiam o governo do Irã (que também vi muitos nas redes). Vi muitos homens estadunidenses que dizem ser “anti-imperialistas” criticando nossos manifestantes como se fossem marionetes do Ocidente e protestando contra os iranianos que compartilham nossos vídeos. Gostaria de sabem em que sentido se pode ser “anti-imperialista” um estadunidense que está dizendo o que pensar sobre seu governo a um iraniano e que crê que conhece o que está passando no Irã melhor que os que viveram a verdadeira face do governo.

Os estadunidenses que apoiaram aos protestos eu gostaria de pedir que estudem com seriedade os distintos grupos iranianos e as reinvindicações do povo iraniano para não ser vítima de oportunistas. Faz pouco tempo o grupo terrorista Mojahedin-e-Khalq [MEK] e seu líder, Maryam Rajavi, adotou o nome de Comitê de Mulheres do Conselho Nacional de Resistência do Irã e tratou de se apresentar enquanto um grupo feminista. Vi muitos iranianos compartilhando suas mensagens e pedir para que os seguidores de suas redes sociais façam doações, pensando ingenuamente que o dinheiro chegaria a mulheres iranianas, sem saber que estavam financiando a sede de poder de Rajavi, que pretende governar o Irã. Também vi muitos estadunidenses compartilhando os conteúdos de Masih Alinejad, a quem considero pessoalmente uma ativista insincera que acabou nas mãos dos EUA e da República Islâmica.

Também, vi os estadunidenses criar “modelos” para ligar e enviar e-mails aos seus deputados pedindo-os para “ajudar” ao Irã. Isso não é de muita ajuda para o Irã e promove a intervenção estrangeira, que não fará mais do que desacreditar o movimento.

A Internacional Progressista fez um excelente trabalho de solidariedade com os grevistas de Haft Tappeeh quando publicou sua lista de reivindicações em sete línguas. A publicação socialista New Politics também mostrou solidariedade com o Irã (e segue mostrando) compartilhando as reinvindicações dos manifestantes em 2019, informações sobre os presos políticos do país e críticas aqueles que mantém um silêncio cumplice com o governo.

A solidariedade internacional nunca deveria piorar uma situação nem castigar a população de um país que precisava de ajuda. Qualquer governo que impõe sanções ou envia tanques em nome da solidariedade tem outros interesses e nenhuma intenção de colaborar. Por outro lado, a solidariedade internacional deveria evitar a propaganda. Por exemplo, no contexto do Irã, incluindo o Afeganistão, compartilhar fotos de minis saias versus hiyab não serve a causa. Ao fazer isso, reduz-se as reinvindicações de um povo a uma peça de roupa, quando sabemos que os protestos têm um sentido muito mais profundo.

 

SJ – Algumas pessoas no Ocidente pensam que críticas as leis islâmicas dos roosaris é uma prática islamofóbica. O que respondemos para isso? 

P – Estou ciente dessa discussão, que é comum sobretudo entre os mulçumanos dos Estados Unidos e do Reino Unido. Ainda que deteste utilizar o gênero como um instrumento de divisão, tenho que dizer que essas preocupações provêm geralmente de homens. Muitas hiyabis e nigabis mostraram solidariedade com as mulheres iranianas, argumentando que a obrigatoriedade atenta contra o propósito do hiyab. Citam a Suratul al-Bagara (Alcorão 256), que diz: “Não há coerção na prática de Adoração, pois fica claro qual é o caminho certo e qual é o desvio”. Creio que é uma citação muito potente e que colabora com a nossa causa.

Antes da revolução era comum ver mulheres com o véu e sem véu (comexceção da breve proibição do hiyab que impôs Reza Khan, pai do último Xá do Irã, em 1936, e que produziu uma brutal repressão policial); se respeitavam os feriados religiosos; Reza Xá frequentava Meca; Farah Diba usava um chador na tumba de Imam Hussein; muita gente frequentava as mesquitas; e as sextas-feiras eram dias de descanso e oração. Destaco todas essas coisas só para reiterar que ninguém está pedindo o fim do islã.

É muito importante notar que muitos dos manifestantes são devotos. É impossível que uma pessoa religiosa não veja os crimes da república islâmica, algo que é contrário ao islã ou qualquer fé. No islamismo dizemos “Bismillah Rahman Rahim”: “Em nome de Allah, o piedoso, o compassivo”. Deus como entidade piedosa e compassiva não pode apoiar que uma mulher seja agredida até a morte, nem que uma menina de dez ano receba um tiro enquanto está no colo de seu pai.

 

SJ – Essa é a mesma geração que protestou contra os preços do gásem 2019 e que foi violentamente reprimida. É incrível e estimulante ver que as pessoas seguem lutando. O que as fez sair a batalha de novo, apesar do perigo? 

P - Fizemos uma revolução que levou esse governo ao poder, agora temos a vontade para muda-lo. E se estivermos discordâncias com o governo que suceda a república islâmica eu não tenho dúvida que também o tiraremos. Sinto que não temos nada a perder. Ou esperamos tranquilos até que um guarda revolucionário dispare contra nós, a polícia da moral nos golpeie até a morte, ou morramos de fome como resultado da má gestão do governo, ou lutamos correndo o mesmo risco de morrer que se não o fazemos.

Também há que se ter em conta o componente religioso. Toda a revolução esteve alimentada pelo conceito de martírio. Tivemos uma guerra brutal em que cada soldado era um shadid [mártir]. E seus filhos eramrecompensados no Concor [exame de entrada na universidade] e apoiados financeiramente pelo governo.

Juntamos coragem durante quarenta e três anos e isso nos permitimos olhar de frente o canhão de uma pistola e ver o paraíso e morrer com um sorriso. Como se surpreender que minha geração não tenha medo? Nascemos preparados para lutar e a morte não é nenhum problema para nós.

 

SJ – Os iranianos ficaram décadas lutando contra a opressão desse governo autoritário. O que falta para cair o regime? 

Nos últimos três anos vimos que o povo se levantou para levar ao poder Luis Arce na Bolívia, Gabriel Boric no Chile e Gustavo Petro na Colômbia, terminando governo bárbaros e opressores. Creio que a América Latina e o Oriente Médio são parecidos no sentido de que são regiões exploradas, tem povos revolucionários, tem um espaço enorme entre as classes ricas e as pobres e não povos religiosos. Quando penso no futuro do Irã, muitas vezes busco inspiração e esperança na América Latina.

Nos últimos três anos vimos que o povo se levantou para levar aopoder Luis Arce na Bolívia, Gabriel Boric no Chile e Gustavo Petro na Colômbia, terminando governo bárbaros e opressores. Creio que a América Latina e o Oriente Médio são parecidos no sentido de que são regiões exploradas, tem povos revolucionários, tem um espaço enorme entre as classes ricas e as pobres e não povos religiosos. Quando penso no futuro do Irã, muitas vezes busco inspiração e esperança na América Latina.

Creio que é importante que os manifestantes estejam dispostos apor um espelho na frente da cara dos governantes. As promessas dos revolucionários islâmicos e de Khomeini nunca foram satisfeitas. As reinvindicações atuais não são muito distintas das de 1978, salvo que aumentamos a lista de algumas liberdades sociais. A maior parte dos governantes atuais eram jovens, ao menos jovens adultos, durante a revolução iraniana de 1979 e é evidente que recordam dos valores da revolução antes do clero dominar o movimento.

Contudo, quando comparamos a queda do Xá de 1979 com o colapso atual da república islâmica, é importante notar que o Xá tinha noção de sua falta de popularidade. Abandonou o país nem dar a batalha, derrotado, triste e doente.

O governo da república islâmica sabe que é impopular e até tem gente em suas fileiras que odeia o atual sistema. O aiatolá Khamenei, o presidente Ebrahim Raisi e seus colaboradores não abandonaram o país pacificamente, como vimos, e estão dispostos a manter-se no poder o tanto quanto puderem. Tudo que posso dizer é que é uma guerra de massas e o governo parece impopular. O melhor cenário é que os militares se voltem contra o governo e se unam ao povo. Desafortunadamente, creio que haverá mais derramamento de sangue das massas, da elite religiosa e do governo, antes de conquistarmos nossos objetivos.

 

SJ – Que tipo de sistema/governo viria depois de outra revoluçãono Irã e como você gostaria que ele fosse? 

P – Sem uma esquerda legitima ou qualquer presença significativada esquerda no Irã, os sonhos de uma esquerdista como eu estão fora do jogo e temos que nos acoplar ao que decidir a maioria. Já me reconciliei com essa ideia. Não obstante, seguiremos defendendo os interesses da classe trabalhadora.

Em termos realistas, temos poucas opções. Ou a república islâmica conserva seu poder com um pouco de ajuda de seus amigos, ou fazemos um referendo e o povo decide entre um sistema verdadeiramente democrático e representativo ou uma monarquia que coloque Reza Xá na antiga posição de seu pai, ou os militares tomam o poder e instauram uma ditadura como no Egito. A melhor opção destas quatro é a que o povo eleja um governo realmente representativo das massas. As opções que mais me assistam são a ditadura ou que tudo siga como está.

Existem grupos minoritários que desejam tomar o poder no Irã e que tem pouco ou nenhum apoio. O mais popular é o Mojahein-e-Khalq, que realiza uma cúpula anual com o título de “Libertar o Irã” e convoca gente como Rudy Giuliani e Mike Pompeo. Rajavi enganou o Ocidente para que pensem que ela será uma líder feminista e justa, apesar das ações do MEK contra o povo cometidas durante a guerra entre Irã e Iraque, na qual tomou partido de Sadam Hussein. A perspectiva de que chegue ao poder é aterradora, especialmente a luz de suas recentes tentativas de tirar proveito dos protestos. Ainda que improvável, devemos ter em mente que é uma possibilidade e temos que evitar que ela se materialize.

Meu desejo para o Irã é simples. Quero que por fim tenhamos voz e voto em nosso governo. Éramos uma monarquia e enfrentamos invasores de distintos impérios. Depois, o Ocidente encontrou petróleo em nossas terras, financiou outra monarquia nova e derrubou nosso primeiro-ministro mediante um golpe de estado em que participaram a Grã-Bretanha e os EUA. Iniciamos uma revolução que foi derrotada para evitar a expansão do comunismo e que está pausada já faz cinquenta anos.

É momento de decidirmos as nossas questões da vida cotidiana sem interferência de nenhum estrangeiro. Estou disposta a aceitar qualquer coisa que decidam as massas iranianas. Como disse antes, a luta da esquerda continuará, aconteça o que acontecer. Seguiremos defendendo a classe operária, os direitos trabalhistas etc. Nós merecemos a prosperidade e a independência.
 

[1] Parandeh é uma militante e escritora irano-azerbaijana. Entrevistaoriginalmente realizada por Sayeh Javadi, militante do Democratic Socialists of
America, e publicada na Jacobin Magazine. Disponível em https://jacobin.com/2022/10/iran-protests-women-islamic-republic-imperialism