Guilerme Arruda
Via Outras Palavras
“A patente é um mecanismo de acumulação de riquezas para acionistas de empresas multinacionais”, define Eloan Pinheiro, ex-diretora do Instituto de Tecnologia de Fármacos da Fiocruz, a Farmanguinhos. Por isso, ela considera que esse mecanismo de propriedade intelectual simplesmente não deveria ser aplicado em medicamentos, já que ele encarece produtos que podem salvar vidas. “Saúde não pode ser comércio, saúde tem que ser um direito que todo mundo tem”, avalia a química.
Porém, à margem de considerações morais, as grandes companhias do setor farmacêutico seguem fazendo negócio com as patentes de medicamentos que possuem. Um dos casos mais célebres dos últimos tempos é o do dolutegravir, remédio para HIV patenteado pela empresa estadunidense ViiV. Como noticiou Outra Saúde, ele já é utilizado no tratamento de quase meio milhão de pessoas no Brasil – mas custa hoje ao Ministério da Saúde, obrigado a fornecê-lo, muito mais do que se o país tivesse a possibilidade de produzir um genérico.
Nesta semana, a Colômbia mostrou que há um caminho para enfrentar os desmandos da Big Pharma. Na segunda-feira, 2/10, o ministro da Saúde do país, o médico Guillermo Alfonso Jaramillo, autorizou o licenciamento compulsório do dolutegravir. A medida é mais conhecida no Brasil como “quebra de patente” – por meio dela, o Estado colombiano poderá produzir e importar o fármaco sem ter que compensar a empresa dona dos direitos patentários. O documento do governo Petro que anuncia a decisão cita como precedente a histórica quebra da patente do efavirenz (outro medicamento utilizado no tratamento da aids) pelo governo brasileiro em 2007.
Eloan, que supervisionou a produção do efavirenz em Farmanguinhos na época, lembra que “em medicamentos como o dolutegravir, o sofosbuvir, o velpatasvir, se você faz a apropriação de custos, vê que nós pagamos 1000%, 2000% a mais” que o preço de custo. Por isso, a quebra de patente é uma medida quase lógica. E mais decisivamente, a movimentação no país vizinho também pode dar novo impulso aos esforços pelo licenciamento compulsório do dolutegravir no Brasil.
As justificativas colombianas
Em junho, uma resolução do Ministério da Saúde da Colômbia – país que segue em luta para montar seu próprio “SUS” – havia anunciado o início de estudos sobre o licenciamento compulsório do dolutegravir. Desde então, como registra a declaração do começo dessa semana, foram muitos os atores que intervieram no debate: da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) às associações patronais do setor farmacêutico, passando pelos Médicos Sem Fronteiras (MSF) e por um conjunto de organizações internacionais que inclui entidades brasileiras como o Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e o Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual (GTPI).
Concluído o período de estudos, prevaleceu a tese do “interesse público” em quebrar a patente do medicamento, com base em leis nacionais e tratados internacionais que garantem o direito à saúde para todos. Notavelmente, a declaração retoma dois exemplos latino-americanos para apresentar os benefícios da licença compulsória: o caso do efavirenz pelo Brasil em 2007 e o caso da combinação lopinavir/ritonavir pelo Equador em 2010. Houve, respectivamente, quedas de 70% e 90% no custo para esses Estados tratarem cada cidadão após a quebra da patente, segundo dados do South Centre.
O documento aponta que todas as alternativas foram tentadas antes do licenciamento compulsório. Mas que, em certos momentos das tratativas com as farmacêuticas, “não se recebia carta ou comunicação alguma da ViiV Healthcare ou da GlaxoSmithKline Colombia S. A.”. Nesse cenário, a decisão foi de “declarar a existência de razões de interesse público para submeter a patente do medicamento Dolutegravir à licença compulsória de modalidade governamental”, isto é, a ser utilizada pelo poder público.
Segundo o documento oficial, depois do início da produção e importação do fármaco, terão prioridade de tratamento as pessoas recém-diagnosticadas com HIV, as com com falha virológica – isto é, que seguem com carga viral detectável mesmo após tratamento – as que precisam de profilaxia pós-exposição (a chamada PEP) e os migrantes venezuelanos.
Para Eloan, em termos políticos, é um avanço que o fármaco fique disponível por meio de licença compulsória, e não pela via de uma licença voluntária acordada com a farmacêutica. “A licença voluntária acaba sendo um mecanismo para as empresas multinacionais continuarem ganhando muito dinheiro”, já que a estrutura do sistema patentário segue em vigor com sua adoção.
O imbróglio no Brasil
Na decisão, o governo colombiano mostrou firmeza no embate com os interesses comerciais das transnacionais. Menos clara é a posição do Estado brasileiro, mesmo depois da ascensão de um governo progressista.
Em 2020, durante o governo Bolsonaro, o Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) concedeu à ViiV a patente do dolutegravir mesmo na ausência de anuência material da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Com isso, a empresa tem buscado de todas as formas coibir a produção de genéricos no Brasil – e tenta impedir até mesmo uma Parceria de Desenvolvimento Produtivo ligada ao Laboratório Farmacêutico Miguel Arraes (Lafepe), firmada e ativa há anos, de vender o fármaco ao Estado por um preço mais barato. Há indícios de irregularidades em todo esse processo.
No início do ano, grupos como o GTPI e a Abia enviaram uma carta ao governo pedindo, frente a essa situação, o licenciamento compulsório do medicamento e se oferecendo para subsidiar tecnicamente a decisão. No mês passado, esses mesmos argumentos foram apresentados ao vice-presidente. Até o momento, não houve resposta clara das autoridades.
Agora, o feito do governo de Gustavo Petro reacende a possibilidade de rediscutir o licenciamento do dolutegravir no país. Mais: retoma a possibilidade de fazê-lo por um caminho que enfrenta os privilégios dos monopólios farmacêuticos, que lucram regateando com a vida e a morte de bilhões de pessoas.
“É um assunto que pouca gente se dá ao trabalho de entender, mas o monopólio tira a vida de muita gente no mundo. E esse é um assunto que deve ser resolvido pelo Estado, porque ele tem poder de intervir nessa questão”, conclui Eloan.