Reforma constitucional no Chile: retorno a uma democracia tutelada?

A derrota do projeto constituinte no Chile deu lugar a um novo processo de reforma constitucional tutelado pelas forças tradicionais. Ainda há tempo dos movimentos sociais e a esquerda radical organizarem uma resposta política à nova situação.

Pablo Abufom Silva*

 

 

Depois da estrepitosa derrota do projeto de nova Constituição no plebiscito de 4 de setembro, ficou definitivamente sepultado o primeiro ensaio constituinte do século XXI no Chile. Foi uma derrota que se vinha incubando desde o Acuerdo por la Paz Social y la Nueva Constitución de novembro de 2019, firmado pela maioria dos atores políticos com representação parlamentar. Este acordo definiu o caminho para um processo constituinte com altos níveis de controle por parte dos poderes constituídos, mas que de toda maneira acabou sendo o órgão mais democrático que o país já teve em seus 213 anos de história republicana.

Outro elemento que contribuiu para essa derrota foi a insuficiente organização da esquerda e dos movimentos sociais para capitalizar o impulso de mudança da revolta de 2019, somada à falta de uma visão ou um projeto de sociedade que englobasse a lista de mudanças constitucionais propostas. Mas talvez a razão mais estrutural da derrota constituinte de 4S foi a situação de crise econômica pandêmica, que reforçou as posições mais defensivas (e inclusive reticentes às mudanças) dos setores populares sem tradição ou experiência organizativa. Esses setores, que há pouco haviam inundado as ruas exigindo a mudança, ao final de dois anos de uma crise que pagaram com suas próprias vidas e economias, se enfrentaram com a maior disputa política do século sem as mediações organizativas ou comunicacionais que a classe trabalhadora teve no passado. Sem partidos, nem sindicatos, nem movimentos sociais que pudessem iluminar coletivamente o momento histórico, houve milhões de trabalhadoras e trabalhadores que foram votar pelo Rechaço sem outra orientação que não a dos meios de comunicação de massa e a sensação de caos e temor que estes transmitiram.

Este não é um resultado espontâneo, mas uma aposta dos setores mais duros da direita e do empresariado chileno. O plebiscito foi o momento em que estes grupos puderam colher os frutos de uma tática política audaz que teve início ao mesmo tempo em que se inaugurava a Convenção Constitucional, em que tinha minoria absoluta. A direita decidiu retirar-se do debate constituinte em si, e se focou durante um ano e meio na disputa do sentido comum (e midiático) em torno ao processo. Mais do que se referir aos temas constitucionais, se referiram ao órgão e seus constituintes, a quem acusaram de amadores, subversivos ou aproveitadores dos cofres públicos.

Mas essa tática exitosa não chega a fechar a questão constitucional no Chile. Em 12 de dezembro de 2022, 98 dias depois do plebiscito, a maioria dos partidos políticos com representação parlamentar firmaram o chamado Acuerdo por Chile, que sentou as bases para um novo processo de mudança constitucional. Nesse segundo acordo, os partidos políticos foram mais longe que no Acordo de 15 de novembro de 2019: não só se definem os termos do órgão redator, mas também se estabelecem doze “bases constitucionais” que definem de antemão o conteúdo da nova Carta. O que se anuncia com esse acordo é a consolidação de um giro tutelar que reedita a chamada “política dos acordos”, que caracterizou o processo político chileno desde o fim da ditadura.

 

Do processo constituinte à mera reforma constitucional

O Acuerdo por Chile, que já foi aprovado no Congresso chileno, contempla um órgão de reforma constitucional em três partes: um Conselho Constitucional com 50 representantes eleitos segundo o sistema eleitoral do Senado, com representação regional; uma Comissão de Especialistas com 24 membros designados pela Câmara dos Deputados e o Senado; e um Comitê Técnico de Admissibilidade com 14 membros também designados pelos mesmos congressistas. A Comissão de Especialistas será convocada inicialmente para redigir um anteprojeto de Constituição criado a partir das mencionadas doze “bases constitucionais”. O Conselho Constitucional terá que redigir o esboço de projeto a partir do insumo dos especialistas, e o Comitê Técnico terá o papel de garantir que se cumpram as “bases” acordadas pelos partidos no Acuerdo por Chile e o marco institucional geral da República.

De sua parte, essas “bases” não são outra coisa que uma amarração que os partidos signatários impõem ao novo processo, e nesse sentido pode-se entender como uma reforma parlamentar da Constituição. Nas 12 bases constitucionais do Acordo se inclui uma reafirmação dos principais nós institucionais que preocuparam a elite política no processo constituinte de 2022: o caráter unitário do Estado, a subordinação dos povos indígenas à “nação chilena, una e indivisível”, a conservação de um parlamento bicameral com um Senado oligárquico e com poder de veto, a assim chamada “liberdade de ensino” que garante um nicho de negócios para a educação privada, a consagração constitucional das Forças Armadas e de Ordem e dos estados de exceção necessários para continuar a política de inimigo interno que caracteriza a relação do Estado do Chile com os povos indígenas e os grupos subalternos rebeldes.

Mas chama a atenção que as 12 bases introduzem ao menos dois elementos novos que adiantam o enquadramento jurídico que os partidos sustentarão ao longo desse processo tutelado. Em primeiro lugar, se estabelece que “a Constituição consagrará que o terrorismo, em qualquer de suas formas, é por essência contrário aos direitos humanos”. Se trata de uma ladainha direitista que viemos escutando há décadas, e que fundamentalmente localiza dentro do marco da “guerra contra o terrorismo” as reivindicações político-territoriais do povo mapuche e as insubordinações sociais de sindicatos e movimentos sociais. Isso evidencia uma disposição ofensiva por parte da direita nos temas de segurança interna.

Em segundo lugar, as “bases constitucionais” agregam que “o Chile é um Estado social e Democrático de Direito, cuja finalidade é promover o bem comum; que reconhece direitos e liberdades fundamentais; e que promove o desenvolvimento progressivo dos direitos sociais, sujeitos ao princípio de responsabilidade fiscal; e através de instituições estatais e privadas”. Se a consagração do Chile como “Estado social e democrático” era parte do projeto constitucional da Convenção Constitucional de 2022, resulta tremendamente preocupante que o exercício dos direitos sociais esteja constrangido ao princípio de responsabilidade fiscal e que contemple tanto instituições estatais como privadas. Ambas especificações são um antecedente muito perigoso para as aspirações da classe trabalhadora chilena, que leva décadas lutando por garantias universais e públicas dos direitos sociais. Considerando que a experiência chilena põe em evidência a falência dos sistemas privados para a provisão de direitos como a previdência, a saúde, a educação e a habitação, estas especificações reforçam a estrutura neoliberal que já temos no Chile: gasto social focalizado (não universal), papel mínimo do Estado na economia, e vantagens para provedores privados e sua lógica baseada no lucro sobre o bem comum.

Todo o anterior põe em evidência que o novo processo constituinte não é mais que uma reforma constitucional encoberta em um simulacro democrático, e reforça com isso um traço forte da democracia chilena do pós-ditadura: a tutela do processo político por parte dos partidos com representação parlamentar, que são os únicos que têm direito a eleger especialistas e propor candidaturas para o Conselho Constitucional. Esses partidos se concentram principalmente no eixo direita (a coalizão Chile Vamos) e centro-esquerda (a ex-Concertación, hoje Socialismo Democrático), mas aos quais se somam novas forças progressistas (Frente Amplio e Partido Comunista, da coalizão Apruebo Dignidad) e reacionárias (Partido Republicano e Partido de la Gente).

No que diz respeito ao momento constituinte que se abriu em 2019, nos encontramos diante de um momento doloroso: o parênteses anti-elitista da revolta se encerrou com o plebiscito de 4 de setembro, e o establishment recuperou a iniciativa.

 

E agora o quê? Cenários e tarefas para a esquerda

Tanto as listas de conselheiros constitucionais como de ambas equipes de especialistas já estão definidas, e excluem os setores que mostraram maior dinamismo na Convenção Constitucional de 2021-2022. Independentes, dirigentes sociais e dos povos indígenas ficaram fora do processo de mudança constitucional de 2023. Os partidos deixaram claro que queriam que os “especialistas” marcassem a pauta desta vez. Ou seja, reafirmaram o roteiro tecnocrático que caracteriza a política chilena desde o começo dos anos noventa, onde não há lugar para o protagonismo direto do povo “não especialista”, apenas a mediação autorizada dos profissionais.

Ainda é cedo para saber se esse giro tutelar no processo de mudança constitucional equivale ao fim do desafio ao regime chileno. Ao menos da parte dos setores que mantiveram de pé as bandeiras das transformações sociais, a resposta ao novo processo de reforma constitucional não se fez esperar. Para a Coordinadora Feminista 8M, por exemplo, esse processo não é outra coisa que a “revanche dos desafiados”, que castigam a insubordinação dos povos na revolta e na Convenção Constitucional. Agregam que o “marco constitucional [necessário para enfrentar a crise política e social no Chile] não virá, já não veio, dos mesmos que durante mais de 30 anos não puderam nem quiseram mudar a atual Constituição ditatorial”.

Outro movimento social que foi chave no processo anterior, o Movimiento por la Defensa del Acceso al Agua, la Tierra y la Protección del Medio Ambiente (MODATIMA), afirma em sua declaração pública que se trata de “um processo ilegítimo e antidemocrático” e inclusive aponta que “mostra a desorientação absoluta do projeto político do Frente Amplio e Apruebo Dignidad no oficialismo, depois do 4 de setembro, que cedeu protagonismo à direita, com suas chantagens, arrogância política e birras populistas”. Da mesma maneira que com o Acordo parlamentar de 2019, a definição elitista dos termos da mudança constitucional evidencia a distância que existe entre os partidos políticos, inclusive os progressistas, e os movimentos sociais. Nos momentos decisivos, os partidos frustraram uma e outra vez a expectativa democratizante e redistributiva que caracterizou os movimentos sociais no Chile do século XXI.

Mas essa distância não responde unicamente à estratégia de aliança de governabilidade com o centro que assumiu a coalizão do presidente Boric (Apruebo Dignidad), mas também à insuficiência política dos movimentos sociais e da esquerda não-oficialista, carentes de sua própria estratégia de disputa nacional do poder, ou de uma alternativa organizativa unitária para os setores populares com disposição de se mobilizar pelas transformações. E ainda que o internacionalismo do movimento feminista (em torno à Greve Feminista) e do movimento ecologista (a partir de conflitos frontais com as indústrias extrativas ou energéticas) lhes tenha permitido uma densidade particularmente relevante para interpretar a crise do capitalismo no Chile, não necessariamente permitiu visualizar um programa de superação dessa crise que se encarne em um novo bloco histórico alternativo ao progressismo do Frente Amplio e ao reformismo tradicional do Partido Comunista.

Então a pergunta é: quais são os caminhos que os movimentos sociais e a esquerda podem percorrer para articular essa estratégia, essa alternativa organizativa e esse programa?

Um cenário possível seria a conservação do status quo atual, um estado de retirada pós-plebiscito, de reforço da divisão de tarefas entre os movimentos dedicados às lutas setoriais e os grupos ou proto-partidos de esquerda dedicados a “fazer política” (a maior parte do tempo reduzida à disputa eleitoral). Essa poderia ser uma maneira de interpretar o resultado do plebiscito: que é um erro que as organizações territoriais ou os movimentos sociais tentem entrar na disputa política, e que devem na realidade se dedicar à mobilização por demandas setoriais; e por outro lado, que os grupos políticos não podem contar com ativistas ou dirigentes sociais para a disputa política, e que o que vem agora é que os quadros políticos assumam essa tarefa. Nada de bom pode sair dessa reafirmação de trajetórias já fracassadas.

Outro cenário, que vem lentamente ganhando força desde antes do plebiscito, é a conformação de múltiplos polos proto-partidários em que confluem movimentos sociais, ex-constituintes, referências políticas como prefeitos ou parlamentares e suas respectivas forças políticas. Esse é o caso da Coordinadora de Movimientos Sociales, onde se encontram a CF8M, Modatima, ex-constituintes de distintas regiões e alguns outros grupos políticos e territoriais menores. Também é o caso do Partido Igualdad, que está em processo de recuperação de sua legalidade como partido, ou do movimento Transformar, do prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, que reúne alguns ex-constituintes no caminho de formar um novo partido. Algo similar poderia se esperar de algumas experiências de poder local lideradas por independentes de esquerda (Pudahuel e a Cisterna na Região Metropolitana, Santa Juana na Região do Bíobio, e vereanças pelo país) que eventualmente poderiam articular uma alternativa política a nível municipal.

O desafio mais imediato que coloca o segundo cenário descrito seria a superação de uma conduta mesquinha e sectária que tem afligido a esquerda chilena há décadas. Essa forma de conduzir-se politicamente da esquerda radical não responde a atitudes interpessoais ou vontades de tais ou quais quadros. Não é um problema de caráter pessoal ou político, ainda que se expresse em personalidades caudilhistas ou grupos que preferem a disputa eterna antes da construção conjunta. Acredito que esse problema é o efeito mais duradouro da dupla derrota estratégica do golpe de 1973 e da transição pactuada em 1989, assim como a ausência de um debate programático sério na esteira das transformações do modo capitalista de organizar a reprodução social. Isso levou a que nossa esquerda careça de uma visão de longo prazo para sua própria ação, e tenda a responder mais com aproximações de curto prazo, localizadas no marco das táticas e do controle dos grupos sobre seus próprios aparatos. Ao carecer de um programa e uma estratégia (de um partido no sentido histórico), a mesquinhez e o sectarismo são simples reflexos para a esquerda.

Hoje no Chile são duas as ameaças que devem mobilizar o processo de articulação de uma alternativa política de mudança no Chile. Em primeiro lugar, a emergência de setores reacionários que não são novos, mas que se apresentam como elementos de renovação política: o Partido Republicano de José Antonio Kast (representante do pinochetismo interno e do bolsonarismo externo) e o Partido de la Gente (que encarna a política populista neoliberal de Franco Parisi e mobiliza o desejo de ascensão e o ressentimento incel de um setor da classe trabalhadora chilena). Em segundo lugar, o aprofundamento da crise econômica e a conseguinte precarização da vida. A inflação segue em dois dígitos, não há indícios de uma recuperação dos salários, o emprego é altamente precário e as reformas chave (tributária e previdenciária) ficam cada vez mais aquém do que as promessas e pretensões iniciais da coalizão de governo. Nada indica que a recuperação anunciada por alguns vá ser em benefício dos setores populares.

A partir desses elementos (ainda muito gerais), se abrem três âmbitos de ação para construir uma nova esquerda no Chile:

 

1.     Para enfrentar as dimensões mais imediatas da crise, a esquerda deve oferecer soluções onde o Estado abandonou a população. As cooperativas de abastecimento, as redes de apoio comunitário diante da violência, as ollas comuns, as iniciativas barriais na saúde, segurança e educação, devem formar parte de um plano estratégico da esquerda radical para mostrar que a força popular é condição necessária para as transformações estruturais. Esse âmbito de resistência cotidiana oferece uma oportunidade para organizar a raiva, o ressentimento e a desesperança provocados pela crise, e não as deixar aos populistas da nova direita chilena.

 

2.     Para resistir ao ajuste que implica a atual crise econômica, a esquerda deve retomar um caminho de luta reivindicativa nos territórios, bairros, centros estudantis e locais de trabalho, que ponha em perspectiva as demandas por uma melhora nas condições de vida e de luta, fomentando uma saída ativa da letargia pessimista pós-plebiscito. Dito em outras palavras, retomar de maneira prioritária e articulada à escala nacional a tarefa de a) melhorar a renda da classe trabalhadora (o salário direto, mas também a provisão de direitos sociais e previdenciários), e b) melhorar as condições de organização que permitem levar a cabo essas e outras lutas (aprofundar a redução da jornada de trabalho para permitir o ócio e a militância, avançar para a negociação por categorias, assegurar o fluxo de recursos das instituições para as organizações sociais e comunitárias). Tudo isso implica pôr em segundo plano a disputa constitucional, ao menos por enquanto.

 

3.     Para projetar uma alternativa em cada âmbito da vida nacional, é necessária uma aposta contundente para enfrentar as eleições municipais de 2024 e as eleições nacionais de 2025. A disposição que mostraram os movimentos sociais para disputar a Convenção Constitucional é um traço distintivo desse ciclo político, e não pode ficar no passado. Deve projetar-se a uma disputa eleitoral que rompa com o enquadramento reformista (que o povo deve eleger seus representantes para que façam mudanças no Estado tal como ele existe) rumo a uma disputa institucional rupturista (que reconheça o papel da disputa política para fortalecer as organizações populares com visibilidade, redes, infraestrutura e capacidade de impor seus termos no debate público). Mas se se quer construir uma esquerda radical que não repita o giro ao centro do Frente Amplio, não há espaço para a expectativa de que os triunfos eleitorais precedam a construção do partido, estratégia e programa. A disputa política deve reconhecer nas eleições um momento de implantação, mas não se reduzir a ela.

 

É desnecessário dizer que esses âmbitos de ação se entrecruzam o tempo todo, como quando as iniciativas de saúde nos bairros cooperam com um município, ou quando as lutas sindicais são respaldadas por quadros políticos nas instituições. O papel da esquerda será precisamente construir uma força política nova nesse lugar em que os âmbitos da ação popular se cruzam e se projetam em direção à superação da crise.

 

 

*Pablo Abufom Silva é tradutor e mestre em filosofia pela Universidade do Chile. Editor de Posiciones, Revista de Debate Estratégico, membro fundador do Centro Social y Librería Proyección e parte do coletivo editorial da Jacobin América Latina