Uma condenação que não surpreende ninguém 

Daniel Campione*

Foto: Reprodução Diário da Prefeitura

 

 

O judiciário na Argentina é um estamento privilegiado, propenso ao nepotismo, isento de impostos e benefícios de pensões desmensuradas. Tal conformação é incompatível com uma democracia digna de tal denominação. Necessitamos de um Poder Judiciário não vitalício, eletivo e com mais participação popular. 

 

O Tribunal Oral Federal N° 2 condenou a vice-presidente argentina Cristina Fernández de Kirchner a pena de seis anos de reclusão e a inabilitação especial perpétua para exercer cargos públicos pelo crime de administração fraudulenta em prejuízo da administração pública. A oposição de direita e os grandes meios de comunicação salientaram o fato como um “passo importantíssimo” para defender as instituições.

 

O Poder Judiciário: por que e para que? 

Para compreender uma das fontes que alimentaram esse resultado é necessário prestar atenção ao papel que foi pensado para o judiciário, desde tempos distantes. Nos referimos em especial ao seu caráter “contra majoritário”. Ele foi concebido, desde o século XVIII como um órgão eletivo, apto para a correção de “excessos”, ou “desvios”, que poderiam cometer os poderes submetidos a votação popular. Desvios que deveriam ser neutralizados por um órgão decisor cuja dependência em sua maioria deriva de um sólido vínculo com as forças conservadoras da sociedade.

 

Eles votam, nós vetamos 

O mais grave da condenação é a sua finalidade proscritiva. O propósito é definir desde as autoridades judiciais quem pode ser candidato e quem não, através da “inabilitação” perpétua. Não por causa de um veredito desfavorável das urnas, mas por um poder majestático, de um núcleo de juízes com vínculos manifestos com os principais animadores da crítica “republicana” a sua pessoa e seu governo.

O contexto não ajuda. A presença de juízes, funcionários, agentes de inteligência e dos altos executivos do grupo Clarín em uma reunião às escondidas no rancho de um empresário altamente questionável lança uma nova sombra não somente sobre a imparcialidade judicial, mas também a respeito das leis que eles supostamente devem defender.

Ainda que sem relação direta com atrama do caso “Vialidad”, o espetáculo de “eminentes’ magistrados em relações promíscuas com empresários de meios de comunicação e funcionários políticos, deixando-se ser financiados para uma viagem – e para piorar, tentando dissimular o caráter, dizendo que teria sido um presente (um crime) – oferece uma imagem muito ruim.

Contudo, além do efeito de postergação que podem proporcionar as sucessivas apelações disponíveis, o que está dizendo o tribunal é que Cristina Fernández de Kirchner deve ser excluída da vida política. E mesmo que haja recursos pendentes, a aposta será em seu descrédito, como uma pessoa condenada que deve sua permanência em liberdade a morosidade do processo em andamento.

A “Justiça” parece aspirar uma judicialização cada vez maior da atividade política. Talvez até mesmo para a distopia de “governo dos juízes”. E conta para isso com a necessária cumplicidade das lideranças políticas. Ante a qualquer controvérsia com certa gravidade, se responde não com um debate mais ou menos público, mas sim com uma ação judicial ou reclamação aos tribunais. E isso diz respeito tanto a presente oposição quanto ao governo atual.

 

Sobre intenções e responsabilidades 

A decisão é dirigida contra a capacidade mobilzadora que tem o peronismo. E o temos de uma “radicalização” de possa trazer o retorno de características “populistas” ao governo, por mais que as condições econômicas e a vontade de sua direção não pareçam caminhas para esse sentido.

A Frente de Todos condenou unanimemente a decisão judicial. O que não apaga o passado não tão distante em que o atual Ministro da Economia manifestou em público sua aspiração de colocar na cadeia as principais figuras do kirchnerismo.

A corrupção existiu e existe. A natureza manipulada desse julgamento e a manifesta parcialidade do tribunal e dos promotores não exonera automaticamente Cristina Fernández nem os outros acusados da possibilidade de terem participado de atos ilegais. O que ocorre é o princípio da inocência estabelece que a culpa tem que ser provada, não pode ser presumida. Não cabe obrigar o acusado a comprovar sua inocência.

Outro debate é o da responsabilidade política de quem esteve durante oito anos à frente do aparato estatal, ainda que não tenha se envolvido diretamente em determinadas ações ou omissões. Disso a considerar como provado que ela foi autora de delito há uma distância. Deveria ser obvio, o plano jurídico é distinto do político.

O que não merece ser validado é a pretensão de que a ação persecutória e proibitiva é uma prova indireta do caráter “nacional e popular” da atual gestão do governo. A Justiça não atua contra as políticas atuais. Elas estão em linha com o Fundo Monetário Internacional e com parte das coordenadas do programa permanente do grande capital, com a “austeridade fiscal” em primeiro plano. Sua ação tem um caráter preventivo, caso o futuro peronismo resolvesse “voltar aos velhos caminhos” com políticas que preservem os trabalhadores e os pobres ao menos um pouco.

O que busca o poder do capital - cada vez com empenho maior – é fortalecer as diversas instancias que podem “corrigir” expressões da vontade popular que não sejam de todo ao seu favor. Ou introduzir desconfiança em personagens na política que não os inspiram inteira confiança. O estamento judicial é só um desses mecanismos e pode atuar bem como protagonistas de ações antidemocráticas, bem como respaldar intenções de outras procedências. A vantagem que oferecem pela sua legitimação através do saber jurídico e sua pretensa “independência” é corroída, porém não é destruída, ante as evidencias de iniquidade e falta de apego aos procedimentos.

O que emerge com clareza é o predomínio dos “poderes permanentes” em detrimento dos eletivos. E a mensagem é inequívoca: nenhuma instancia do poder submetida a votações e prazos de vigência deve levar a sério sua autonomia frente aos verdadeiros poderosos, sob a pena de ser acossado por esses e até mesmo deposto. E, se possível, “apagado” para sempre a cena política. A estrutura “democrática” está cada vez mais distante dos desejos e das intenções dos eleitores e os elementos de “governo do povo” estão em declínio permanente.

 

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Na Argentina, assistimos a consumação de um atentado contra a vontade popular: uma condenação a quem segue sendo a liderança mais popular do país. Com provas mais do que frágeis e uma explícita carga proscritiva. O apelo do promotor Diego Luciano, sobrecarregado de histriônica para disfarçar sua fragilidade, foi o anúncio do que está por vir. Junto com sua atuação, o fracassado atentado contra a vida de Cristina Fernández (que só uma análise parcial pode atribuir a um grupo de “doidos”) e a condenação por um tribunal com insólitas relações com o ex-presidente Mauricio Macri formam uma cena qe seria ridícula se não tivesse tanta carga sinistra.

A mobilização, a disputa nas ruas, a criatividade orientada por diversas formas de poder popular podem ser o principal contrapeso frente a quem aspira que a política seja decidida a portões fechados, sem qualquer presença indiscreta. Mas a renúncia talvez improvisada da vice-presidente para postular-se para qualquer cargo parece apontar no sentido contrário. Se for eficaz, deixaria seus apoiadores sem a possibilidade de sequer elegê-la. E, de sobra, concorda com o propósito daqueles que a julgaram e a impulsionaram para essa decisão.

Para aqueles que aspiram a sustentar sua independência, tanto da oposição de direita como do governo, o caminho passa por questionar as decisões da mal chamada “Justiça”, com atenção ao desenho elitista e classista de todas as instancias judiciais. As vítimas de sentenças injustas são muitas e estão disseminadas por todo o país. A grande maioria não pertence as elites, mas sim ao amplíssimo campo social afetado pela exploração e a pobreza.

 

 

*Daniel Campione é professor de Teoria do Estado na Universidade de Buenos Aires. Esse texto foi originalmente publicado na Jacobin Latin América Latina e traduzido pela equipe do Radar Internacional.