E se Sam Bankman-Fried for um gênio do mal enviado para nos ensinar que criptomoedas são uma fraude? 

 Dean Baker *

 

A aposta de “efetivo altruísmo” de Sam Bankman-Fried fez uma coisa boa para a
humanidade: mostrou que o sistema financeiro, e em particular as criptomoedas,
são um esgoto e um desperdício que deveria ser reprimido.
 

 

Nós devemos reconhecer que Sam Bankman-Fried é muito mais inteligente que todos nós. Afinal de contas, ele parece ser uma das maiores fraudes de todos os tempos. Aos trinta anos ele alcançou uma fortuna acima dos bilionários médios. Ele fez isso através da operaração um esquema de pirâmide de criptomoedas. Enquanto alegava estar usando sua riqueza para apoiar projetos filantrópicos que foram cuidadosamente selecionados para maximizar o cuidado humano, ele na verdade estava vivendo em um estilo de vida elevado com seus amigos. 

Agora que a pirâmide colapsou, os investidores que confiaram nele parecem estar sem sorte. E claro que não há mais dinheiro para as atividades filantrópicas, muitas das
quais estão lutando para sobreviver sem as contribuições que elas já estavam contando. 

Tudo isso parece ser muito repreensível, mas talvez esse seja exatamente o ponto. Sam Bankman-Fried era tão comprometido com sua filosofia de filantropia efetiva que ele foi preparado para fazer a si mesmo parecer o epitomo do ser humano desprezível, e passar longos anos na prisão, tudo isso para nos ensinar que o sistema financeiro é um esgoto, um desperdício, que deveria ser reprimido. E o lugar para começar sua particular batalha contra esse esgoto: os criptoativos. 

 

Filantropia ou Reformas: o que é melhor para salvar a Humanidade? 

A questão aqui é direta ao ponto. Suponhamos que o senhor Bankman-Fried fosse realmente capaz de acumular dezenas de bilhões de dólares através de seu brilhantismo, e doasse esse montante para as causas que ele cuidadosamente selecionou para ter o máximo impacto para o bem-estar da humanidade. Isso poderia, sem dúvidas, beneficiar um bom número de pessoas nos Estados Unidos e por todo o mundo. 

Mas pensemos por um minuto sobre o setor financeiro. Ele se expandiu enormemente,
se comparado com a expansão econômica no último meio século.  

O amplo setor financeiro, de seguros, e o setor imobiliário mais do que dobrou sua participação no PIB nos últimos cinquenta anos, aumentando de 5,5% em 1970, para 12% em 2021. 

O adicional de 6,5% do PIB que foi acrescido ao sistema financeiro em 2021 é equivalente a mais de $1,4 trilhões que foram absorvidos pelo setor. Isso chega a mais de $11.800 por ano para uma família média. 

Os setores de títulos de seguro mais restritos e dos ativos comoditizados, assim como os fundo de investimentos e trusts, mais do que quadruplicaram sua participação no PIB, crescendo de 0,55% do PIB em 1971, para 2,56% em 2021. Esse crescimento de dois
pontos percentuais do PIB significa mais de $500 bilhões por ano nos valores atuais, ou quase $4.400 por ano por família.  

Isso ainda é pouco para demonstrar toda a expansão massiva do setor financeiro. Os ativos financeiros são um bem intermediário, como caminhões de carga. Enquanto ambos os setores são essenciais para o funcionamento da economia moderna, eles não providenciam diretamente valor para as pessoas, assim como fazem os setores de habitação, alimentício, e de saúde. 

Nós precisamos desses setores, e queremos que eles desempenhem suas funções econômicas da forma mais eficiente que possa ser feita. No caso do sistema financeiro, ele serve para facilitar pagamentos de famílias e empresas, além da alocação de capital para seus melhores usos. 

Claramente, nós desenvolvemos mecanismos mais eficientes para pagar nossas contas e efetuar outras transações, mas os maiores desenvolvimentos não são nada novos. O deposito direto de nossos salários e a automatização dos pagamentos para nossas contas são grandes inovações que economizam muito tempo para ambos os lados da transação.

Contudo, essas inovações datam de mais de quatro décadas atrás. Isso valepara os cartões de crédito e débito A maioria absoluta das transações são feitas através desses cartões, mas isso não é especificamente uma tecnologia nova. Cartões de crédito já existem desde 1971, mesmo que não fossem na época tão onipresentes quanto são hoje. 

Nós podemos dar crédito ao setor financeiro por melhorar a conveniência em nosso sistema de pagamentos, mas o quanto isso vale? O tempo economizado no uso de cartões de crédito, ou tendo o depósito direto de seus salários vale $11.800 por ano para você? Isso parece um pouco exagerado. Eu suspeito que a maioria das pessoas prefeririam um extra de $11.800 nos seus salários, mesmo que recebidos em mãos ou por cheque, do que tê-lo depositado diretamente em sua conta no banco. 

E quanto a outra parte da função do sistema financeiro, que diz respeito a alocação de
captal para os seus melhores usos? Não existe maneira simples de analisar o quão efetivo nosso alargado sistema financeiro é para alocar capital, primeiramente por conta de não termos um contrafactual. Nós não conseguimos visualizar uma América com um setor financeiro menor na última metade de século. (Stephen Cecchetti e Enisse Kharroubi realizaram uma análise entre países que demonstrouque o setor financeiro foi um impulsionador do crescimento, mas depois de atingir certo tamanho em relação a economia ele foi um entrave para o crescimento).

Nós podemos fazer uma comparação entre o crescimento da produtividade nas últimas décadas e o crescimento da produtividade nas décadas anteriores, em que o setor financeiro ainda não consumia uma parcela tão grande da produção dos países. Nos anos iniciais estudados pelo Bureau of Labor Statistics, entre 1947 e 1972, a produtividade cresceu 2,8% ao ano. De 1972 até 2022, a produtividade cresceu somente 1,8%. 

O crescimento da produtividade diminuiu ainda mais quanto mais crescia o setor financeiro em relação à economia. Enquanto houve uma forte década de crescimento na produtividade entre 1995 e 2005, os anos de 2005 até 2019, a produtividade cresceu somente 1,4%.

A expansão do setor financeiro pode não ser responsável pela diminuição da intensidade do crescimento na produtividade, e é certamente possível que a desaceleração fosse maior sem um setor financeiro maior. 

Nós pagamos pelo desperdício do setor financeiro não somente porque ele recebe taxas sobre transações, e por tomar a frente no processo de troca de ações, mas também pelo encarecimento das habitações e outros itens. O sistema financeiro criou muitas grandes fortunas, não só a de Sam Bankman-Fried. Quando essas pessoas gastam dinheiro comprando mais casas, e casas cada vez maiores, elas fazem com que as casas sejam mais caras para o resto de nós. Eles também contratam pessoas para serem seus funcionários, e demandam trabalhadores para uma série de atividades, desde dirigir seus carros até massagear suas costas. É porque os ricos amarram tantos
trabalhadores para satisfazer seu consumo de luxo que nós temos tão poucas pessoas para trabalhar nas creches como professores. 

 

SamBankman-Fried expos a corrupção no sistema financeiro 

Então Bankman-Fried, por ser um gênio, reconhece o incrível desperdício e a corrupção no sistema financeiro. Ele sabia que o melhor jeito de ajudar a humanidade é reduzir o sistema financeiro. Os ganhos seriam maiores do que qualquer impacto que ele poderia realizar com o dinheiro acumulado por seus negócios. 

Isso porque, mesmo se ele entregasse toda sua fortuna de $15 bilhões adquiridos pelo esquema de pirâmide para as melhores causas, isso não seria nada se comparado com o bem que ele poderia fazer pondo seriamente ao chão o sistema financeiro. Afinal, $15 bilhões é só pouco mais de 1% do aumento de $1,4 trilhões do tamanho relativo do sistema financeiro na última metade de século. É apenas 3,0% do aumento do tamanho relativo apenas nos setores de negociação de títulos e commodities. 

Mesmo se ele trabalhasse pra acumular uma fortuna igual a de Elon Musk antes da compra do Twitter, de $200 bilhões, ele poderia mudar muito pouco esse cenário. Esse valor é menor de 15% do tamanho acrescido pelo setor financeiro e só 40% do aumento
dos setores de seguro e commodities. 

E esses são números anuais. O setor de finanças está puxando para fora essas somas de dinheiro da economia todo ano. Uma fortuna do tamanho da de Musk, acumulada por todo o período de uma vida, só seria igual a 15% do desperdício do setor financeiro em um ano. 

Obviamente, Bankman-Fried sabe disso. Ele entendeu, portanto, que os ganhou da humanidade na redução do desperdício do setor financeiro traria muito mais benefícios do que ele poderia esperar de sua capacidade de acumular riquezas. 

 

A brilhante estratégia de Bankman-Fried 

Reconhecendo o enorme desperdício e a corrupção no setor financeiro, Bankman-Fried decidiu que o melhor jeito de atacá-lo seria colocando a si mesmo no centro de um escândalo, atingindo o setor financeiro em seu ponto mais vulnerável: a loucura das criptomoedas. A maioria dos setores financeiros envolvem uma mistura de usos produtivos com especulação e desperdício. Isso se aplica aos mercados de ações e commodities, que permitem as empresas a levantar capital e para os produtores de bem primários fixar os preços, mesmo que a maioria das negociações seja de natureza especulativa. Mesmo as empresas de capital privado podem ocasionalmente se tornarem problemáticas, como alegam seus mantenedores. 

Contudo, as criptomoedas não fazem nada para a economia. Se todas as criptomoedas existentes desaparecessem amanhã só o que seria afetado seriam algumas transações ilícitas, que se tornariam mais arriscadas para as pessoas que as operam.  

Isso significa que a quebra das criptomoedas não apresenta nenhum risco real para as
economias, mas apenas para os especuladores de criptomoedas. Se nós colocássemos
um imposto pesado sobre as transações de criptomoedas, tratando como se fosse um jogo de azar como é, ele poderia aumentar a receita governamental e reduzir enormemente a quantidade de recurso desperdiçado nessas transações.  

E ainda mais importante, isso poderia ser um grande chute na porta para uma quebra mais geral do sistema financeiro. Um imposto no trading de criptomoedas deveria introduzir as pessoas em posições políticas a ideia de taxar as transações financeiras (eles já deveriam estar familiarizados com os impostos de transações financeiras, mas de fato não estão), e idealmente abrir uma porta para rachar o sistema financeiro de forma mais geral. 

Os potenciais benefícios disso seriam enormes. Se nós conseguíssemos diminuir o setor financeiro em 10%, isso significaria liberar mais de $300 bilhões por ano para propósitos produtivos. Issi significa mais de $2.500 por ano para cada família no país [EUA]. Como o pessoal da filantropia efetiva diz: nós podemos comprar um monte de mosquiteiros com $300 bilhões por ano. 

Então, Bankman-Fried sabia o que ele fazia era liderar um golpe de esquema de pirâmide e fazer a si mesmo parecer a pessoa mais desprezível do mundo. Ele pode ter que passar um grande período na prisão e ser visto com desprezo universal pelo resto de sua vida, mas se seus crimes levarem a uma repressão ao sistema financeiro, ele terá providenciado um grande serviço para toda a humanidade. 
 

*Originalmente publicado em Jacobin Magazine