Peru: crônica de uma crise política permanente

 

 

Johnatan Fuentes*

 

 

A vitória eleitoral de Pedro Castillo e do Perú Libre nas eleições presidenciais de 2021 anunciava o aprofundamento da crise política peruana dos últimos cinco anos, com a particularidade da selvageria das classes dominantes perante um dirigente sindical de origem camponesa, que cristalizou com crueza o racismo e o macartismo imperantes em nossa sociedade. 

 

Um populismo de baixa intensidade

Diferente das experiências nacional-populares recorrentes na América Latina, o projeto de Castillo sofreu com a ausência de uma estratégia definida, de bases populares sólidas e de uma maioria parlamentar ampla para implementar as mudanças propostas na campanha eleitoral. Ainda, a convivência com o partido Perú Libre era mais um entendimento prático que uma aposta pela construção do partido, que finalmente formalizou a separação há alguns meses.

Diante do assédio golpista da ultra-direita, Castillo optou por outorgar concessões constantes às classes dominantes, ao ponto de enterrar as medidas mínimas do programa de mudanças com o qual ganhou o segundo turno eleitoral. A questão ficou evidente com a mudança no gabinete ministerial em que a tecnocracia neoliberal recuperou o Ministério da Economia e alguns setores da direita se alocaram no Executivo, passados apenas seis meses de governo.

Castillo derrotou as duas primeiras moções de vacância estabelecendo acordos com as bancadas da direita ligadas às regiões e a certa burguesia provinciana, como Alianza Para El Progreso (APP) e uma fração da Acción Popular (AP) e Podemos. De certa forma a divisão da esquerda, as disputas entre Perú Libre e Nuevo Perú, contribuiu com esta dinâmica fortalecendo o entorno regionalista e familiar próximo a Castillo, que se constituiu como direção política informal do Executivo sustentando sua direitização e capitulação. 

 

Assédio golpista permanente

A ultra-direita peruana, liderada pelo fujimorismo, desde o dia zero não reconheceu a vitória eleitoral de Castillo, e sob diversas formas tentou impedir a investidura presidencial recorrendo a um pool de advogados reacionários e aos grandes meios de comunicação que se propuseram a minar a legitimidade do novo governo e suas bandeiras de esquerda.

As manifestações contra o governo que convocavam conseguiam reunir apenas a velha partidocracia do APRA e do PPC, e algumas frações da classe média e da burguesia limenha que não toleravam alguém proveniente do mundo popular como presidente da república. Em certa medida, o empate de forças nas ruas e no congresso entre a oposição burguesa e o oficialismo habilitou a política de sobrevivência que levou Castillo a sustentar o piloto automático neoliberal.

Diante do impasse, se abriu com mais contundência outra frente de disputa política via Poder Judiciário e a Procuradoria da Nação, que abriram seis processos de investigação em tempo recorde contra o então presidente Pedro Castillo, a fim de conseguir sua derrubada pela deslegitimação perante a opinião pública. A procuradora a cargo da investigação, que se supõe ter laços com o narcotráfico, se convertia agora na referência da luta contra a corrupção segundo a narrativa dos grandes meios de comunicação alinhados com o golpismo. Até o momento, contra o ex-presidente Castillo só puderam obter depoimentos de ex-altos funcionários e empresários lobistas, sem nenhuma prova que sustente as denúncias.

No Congresso se preparava um pedido de suspensão do então presidente Castillo, já que requeria uma votação menor que as moções de vacância, mas este caminho não consegue prosperar, de modo que se aprova a terceira solicitação de admissão da moção de vacância presidencial, que implicaria em uma segunda votação no sete de dezembro para sua aprovação final. 

 

Uma saída precipitada

Diante da crise política não resolvida, Castillo decidiu fechar o congresso golpista sem a correlação política necessária e sem o apoio popular contundente que lhe permitisse materializar a medida de exceção. Seu isolamento foi tanto que todos os ministros terminaram renunciando em poucas horas ou minutos, inclusive os setores provenientes da esquerda castillista como Roberto Sánchez do Juntos por el Perú e Betssy Chávez do Voces del Pueblo.

O pronunciamento das Forças Armadas contra o fechamento do congresso clarificou a relação de forças atual, assim como o caráter precipitado e absurdo da medida de exceção que se tentou implementar, para além das questões formais/constitucionais priorizadas na análise da esquerda liberal, que chamou o ex-presidente Castillo de golpista, inclusive comparando-o com Alberto Fujimori, e alguns ex-ministros como Pedro Francke e Mirtha Vásquez se uniram ao coro midiático que fustigava a frustrada tentativa de fechamento do congresso.

Derrotada a medida precipitada de Castillo, o congresso se apressou para aprovar a terceira moção de vacância presidencial, contando com os votos a favor de alguns congressistas do Perú Libre, Nuevo Perú e do Partido Magisterial y Popular. Consumado o golpe parlamentar, efetivos policiais detiveram o ex-presidente na prefeitura, acusado de rebelião, evidenciando mais uma vez a perversidade das classes dominantes do Peru contra o dirigente sindical de origem camponesa. 

 

A crise continua

A posse presidencial de Dina Boluarte, ex-vice presidenta, é produto do acordo tácito das forças políticas do congresso em uma manobra para normalizar o golpe parlamentar consumado. Apenas poucos meses atrás a ultra-direita tentou inabilitar a então vice-presidenta com motivações absurdas, mas nos últimos dias retrocedeu, com o objetivo de habilitar a transferência do poder sem irrupções populares.

Boluarte anunciou um governo de unidade nacional que, na realidade, significa continuísmo neoliberal, agora talvez com um vínculo ainda maior com a tecnocracia e a direita tradicional. Não cumpriu com sua promessa de renunciar se Castillo fosse derrubado, como havia sinalizado em uma de suas últimas intervenções políticas, e tampouco mencionou algo sobre o processo constituinte ou alguma reforma progressiva durante sua posse. Ainda assim, a ultra-direita não abaixará suas bandeiras golpistas: apenas se prepara para um contexto com melhores condições para sua política sediciosa.

Hoje fica mais claro que a independência política da esquerda e dos movimentos populares são vitais para preparar uma saída democrática e de ruptura anti-neoliberal para a crise política permanente. Nesse sentido, construir uma referência política para as maiorias populares é a tarefa principal do momento e das novas gerações da militância revolucionária. 

 

 

*Sociólogo da UNMSM e militante da Corriente Amaru