Uma terra na Lua para os ricos, pobreza energética para os pobres? O Green New Deal Europeu e a renovação do modo de vida imperial

 

Foto: Reprodução Greensavers

 

Claudia Horn 

Colunista do Radar Internacional

 

O Green Deal europeu procura reduzir as emissões de substâncias que afetam a camada de ozônio no continente – cerca de um terço da taxa anual global. Contudo, a crise energética e de custo de vida joga a favor do já forte setor energético e dos setores políticos de direita. Agora, a busca precipitada pela segurança energética desnuda a própria política neocolonial de recursos que está por trás do Green Deal europeu, ao mesmo tempo que os primeiros sequestram até mesmo os planos menos ambiciosos dos segundos. Nesse contexto, o esperado “inverno quente” de agitação social será decisivo para a esquerda e para o movimento ambientalista. 

 

Há décadas, omovimento ambientalista internacional vem fazendo propostas para Green New Deals, reivindicando transformações socioambientais que sejam inclusivas e justas, através de programas de investimentos públicos e programas de reformas assim como no American New Deal dos anos 1930.

Aproveitando a atenção pública sob o tema, em dezembrode 2019, a Comissão Europeia lançou seu Green Deal Europeu com muito espetáculo, procurando se tornar o primeiro continente a zerar as emissões liquidas. A líder da comissão, Ursula von der Leyen, chamou de “Europe’s Man onde the Moon Moment”, o que descreve precisamente sua lógica competitiva e colonial.

O Green NewDeal Europeu – e a Lei Climática Europeia e o plano “Apto para 55” que o coloca em prática – estabelece a meta obrigatória para alcançar a neutralidade climática até 2050, isto é, a redução de emissões em pelo menos 55% até 2030. De fato, ambientalistas e grupos de esquerda no Parlamento Europeu chamam as medidas de muito pouco ambiciosas para manter o Acordo de Paris de permanecer abaixo de 1,5 graus de aquecimento, especialmente porque o “líquido-zero” inclui comércio de emissões e conservação das florestas, ao invés de um verdadeiro zero. Eles pedem uma redução muito mais drástica, de ao menos 65% em 2030. Ainda assim, o plano é um início e um espaço para a mobilização dos movimentos sociais, embora seus principais motores e suas falhas – o otimismo tecnológico e o auto interesse ecológico – reproduzem as crises da integração europeia.

 

O Movimento Ambientalista, a direita e a Esquerda 

O movimento ambientalista, ampliado pelos protestos do Fridays for Future, popularizou o conhecimento científico sobre a mudança climática, defendendo mudanças urgentes e a promoção de energias renováveis. Contudo, ativistas ambientais têm sido barrados sistematicamente de negociações oficiais, como as Cúpulas Climáticas globais, enquanto o lobby corporativo tem expandido sua influência e presença em nível internacional e europeu. O lobby energético – e evidentemente a maior empresa petrolífera dos EUA, ExxonMobil – tem grande influência na Comissão Europeia, o que reflete o caráter de cima para baixo do crescimento verde do Green Deal. Em março de 2022, mais de 270 organizações da sociedade civil, de todos os 27 estados membros da União Europeia, lançaram um “Manifesto for a Green, Just, andDemocratic European Economy”, defendendo como fundamental uma mudança da estrutura de governança econômica da União Europeia.

Ainda assim, o movimento não foi capaz de concordar sobre sua estratégia, entre o reformismo e o protesto radical. De fato, décadas de austeridade neoliberal, desindustrialização, quebra de sindicatos e repressão aos movimentos radicais não resultaram em uma resposta forte da esquerda. Ao contrário, na maioria dos países europeus, alternativas direitistas e reacionárias – até mesmo neofascistas em alguns países – ganharam força. Eles mobilizam contra migrantes e contra a União Europeia como um todo, para abandonar a pauta climática. Por diversas vezes, a coalizão de extrema direita que ascendeu ao poder na Itália em 25 de setembro, propôs o primeiro programa nuclear do país. O aumento dos preços de energia, a inflação e eventualmente o racionamento de gás e eletricidade por todo o continente aumentarão o descontentamento social, colocando a esquerda em posição difícil no que diz respeito ao uso de combustíveis fósseis para evitar a pobreza energética imediata.

 

O MercadoComum e a múltipla austeridade pública 

Crescendo em Dresden, na antiga Alemanha Oriental, durante o processo de reunificação dos anos 1990, eu ouvi na escola a frase: “quando todos pensam em si mesmos, todos são pensados”. A Estratégia Industrial do Green New Deal - assim como os economistas do maistream - faz um elogio ao Mercado Comum (a livre circulação de bens, serviços, capitais e pessoas) que permite as empresas europeias serem internacionalmente competitivas e aos consumidores comprar mais barato. Ao mesmo tempo, ele aumentou a concorrência, o desenvolvimento desigual, o dumping fiscal e social entre os países membros e reduziu os direitos trabalhistas. Particularmente, a competição prejudicou os serviços públicos, incluindo água, transporte e a energia, que são centrais para uma transição socioecológica.

A prioridade da estratégia industrial do Green Deal é a competitividade e a liderança da indústria europeia através das “transições gêmeas” em direção à neutralidade energética e a digitalização. Entretanto, diferentemente do antigo New Deal, o Green Deal efetivamente limita a capacidade pública de ação climática do Estado à criação de um ambiente propício de negócios e parcerias para o investimento privado, aderindo em grande parte à austeridade pública. Enquanto alguns comentaristas diziam que a Covid-19 trouxe de volta o Estado, a Declaração de Versailles, de março de 2022, assinadas pelos líderes da EU em resposta a invasão russa na Ucrânia, mostra que o crescimento dos gastos públicos se dá quase exclusivamente no setor de defesa. Isso enquanto os setores militares europeus tem uma emissão anual de carbono equivalente a de 14 milhões de automóveis. O Just Transition Fund do Green Deal, que busca destinar 17,5 bilhões de euros para regiões e setores mais afetados pela descarbonização, e o Social Climate Fund, para compensar os efeitos distributivos prejudiciais do novo Esquema de Comércio de Emissões da EU, são insuficientes para cobrir os gastos públicos necessários.

Por exemplo, de acordo com a Comissão Europeia, 120 milhões de europeus, mais de 25% dos 450 milhões, vão ter que reter ou aumentar suas habilidades laborais. Ela estima a criação de mais de 1 milhão de empregos até 2030. Porém, ela esquece as mudanças disruptivas que isso pode significar na vida das pessoas - que tem o salário como única fonte de renda - incluindo mudanças para outras regiões. Isso inclui a indústria automobilística, onde fábricas na França e na Alemanha foram fechadas. Os sindicatos das indústrias automobilísticas, IG Metall e InstriALL pedem por uma transição justa, que garanta um bom trabalho, segurança social, acordos coletivos, treinamento e a inclusão dos sindicatos no planejamento dessa transformação. Na realidade, 70% das companhias reportaram que estão adiando investimentos pois não conseguem encontrar pessoal com as habilidades necessárias.

Ursula Van der Leyen frequentemente destaca a transição justa, em contraste com a estratégia de “cada um por si” e expõe a falta deserviços públicos, participação social e de credibilidade pública geral no Acordo Europeu. No caso dos transportes - setor responsável por 25% das emissões e que precisará diminuir 90% até 2050 para a EU atingir neutralidade climática – a Comissão Europeia propôs focar em carros pessoais, quando o correto seria caminhar para a mobilidade pública verde. Essa proposta economizaria uma grande quantidade de emissões e criaria centenas de empregos – apenas na Alemanha, 200 mil pessoas em transporte e manutenção e 200 mil em investimentos públicos em infraestrutura e transporte local, com números similares para a França.

Ao menos, o plano Fit for 50 eleva os limites das frotas para passageiros de carros e veículos utilitários leves e elimina gradualmente a produção de motores a combustão até 2035. Isso é um limite importante, por exemplo, contra o poder da indústria automotiva alemã, que tem como foco carros de classe média e carros de luxo, SUVs e carros esportivos que que bloqueia até mesmo um limite legal de tempo nas rodovias alemãs. Mas 2035 ainda é muito pouco e tarde demais. Uma transformação real requer investimentos públicos de larga escala em infraestrutura, melhorando e expandindo as redes ferroviárias, incluindo para além das fronteiras e abordando o sentimento já existente de abandono das regiões rurais e desindustrializadas.

 

Otimismo Tecnológico, Segurança Energética e Modo Imperialista de Vida 

75% das emissõesde gases de efeito estufa da EU vem do uso e produção de energia. Em Julho, grupos parlamentares dos Liberais, Conservadores e Social-democratas, aprovaram – sem discussão no comitê competente – o controverso plano “Fit for 55”, que ao menos aumentou a meta da União Europeia de no mínimo 32% de energias renováveis no mix energético, para 40% até 2030. A mudança para energias renováveis é urgentemente necessária até 2030, mas elas devem ser responsáveis por 50%. Um novo modelo energético deve ser baseado no planejamento estatal e na participação do setor público. Ele deve fortalecer a participação popular. Há uma variedade de exemplos locais de democracia energética. Mas a guerra global energética, causada pela invasão russa na Ucrânia, que pôs em marcha os estados membros da EU em direção ao gás natural e à parcerias com regimes autoritários, tornará tênue a linha entre o verde e o cinza.

A Comissão Europeia apresenta a escassez de energia devido aos cortes de fornecimento da Rússia como um acelerador para a descarbonização do continente. O grande risco “sistêmico” para a Europa é realmente o risco de atrasar a transição socioecológica enquanto impõe restrições energéticas a população. O preço do gás natural europeu é atualmente dez vezes mais caro do que era na última década. A França – que tem 67% de sua eletricidade através da energia nuclearretornará com seus reatores em outubro (32 de um total de 56 estão atualmente sobmanutenção), fortaleceu suas relações com a Argélia cujas reservas estratégicas de petróleo e gás tem um novo significado estratégico, e considera cortes de energia de duas horas.

A assim chamada taxonomia da EU é um sistema de classificação chave, que especifica que atividades econômicas devem ser consideradas sustentáveis ao avaliarem os investimentos. Contra a oposição dos especialistas ambientais e financeiros, do movimento de proteção climática e de alguns estados membros, a maioria dos membros do Parlamento Europeu apoiou os critérios propostos pela comissão europeia para a EU Taxonomy de investimentos sustentáveis, que dá ao gás natural e à energia nuclear uma categorização de energia verde. Forças políticas progressistas, sindicatos, organizações ambientalistas e a sociedade civil tem feito um forte esforço para impedir essa forma de greeenwashing que coloca em desvantagem pequenos projetos de energia solar em detrimento de grandes projetos das empresas de energia suja.

O lobby do gás retrata o gás como um combustível fóssil amigável ao clima, porém ele libera quantidades perigosas de carbono e gás metano. A Rússia costumava fornecer
cerca de 40% do gás natural de toda a Europa (e quase 30% do petróleo), principalmente através de gasodutos. Contudo, desde a invasão de Moscou a Ucrânia, ela cortou o fluxo para a Alemanha, e cortou completamente o fornecimento para vários países europeus como a Bulgária, a Dinamarca, Finlândia, a Holanda e a Polônia. Agora, a Comissão Europeia planeja acordos políticos com fornecedores de gás como Egito e Israel para aumentar o fornecimento de GNL, continuar a cooperação com grandes produtores do golfo como o Catar, e a Austrália, e explorar o potencial de
exportação dos países da África subsaariana como Nigéria, Senegal e Angola. As preocupações com as implicações socioambientais globais são resumidas a apelos para a mudança para cadeias de abastecimentos mais curtas e menos vulneráveis e para a “partilha de amigos, sempre que possível”.

O modelo energético europeu, baseado nos combustíveis fósseis, foi modelado através da propriedade centralizada, e largamente centralizada na geração, distribuição e armazenamento. As corporações por trás do lobby do gás natural planejam controlar esse sistema e estrategicamente direcionar a estratégia de hidrogênio da EU, uma estratégia de capital intensivo que favorece as grandes companhias. Na verdade, o hidrogênio não é uma fonte de energia, mas um meio de transporte e armazenagem de energia. Sua produção requer uma grande quantidade de energia para os processos de gaseificação de combustíveis fósseis (hidrogênio cinza ou azul) ou por eletrólise. O hidrogênio só é verde se produzido através de energias renováveis e não por gás natural ou carvão, como atualmente acontece com 90% dele. Uma mudança para o hidrogênio renovável, nos níveis atuais de produção, consumiria 80% da capacidade das plantas solares e eólicas da Europa. Os problemas de armazenamento fazem com que o gás fóssil siga sendo usado e que as companhias sigam se utilizando de investimentos públicos em infraestrutura. O plano REPowerEU- “reduzir a dependência dos combustíveis fósseis da Rússia e rapidamente caminhar para a transição verde” – está baseado na importação de hidrogênio verde do Marrocos e Egito. O plano revisado da EU inclui o aumento em quatro vezes na meta de 2030 para o hidrogênio renovável, com quase 60% da oferta projetada vinda de fora da EU. Ambientalistas tem acolhido os acordos de hidrogênio, como o acordo recente entre Alemanha e Canadá, embora esse esteja longe de ser uma solução milagrosa.

A captura earmazenamento de carbono (CCS) é uma tecnologia cara, não comprovada e de risco intensivo, que promete fazer com que os CO2 dos combustíveis fósseis serão capturados e armazenados no subsolo. Contudo, com a recente pressão pela segurança energética como uma legitimação para a continuação da energia suja, o conto de fadas se tornou um projeto. Em 29 de agosto, a companhia norueguesa CCS Northern Lights, fundada pelas empresas de petróleo Equinor, Total e Shell, concordou em armazenar emissões de fertilizantes da empresa holandesa Yara, pela injeção de CO2 (800 mil toneladas/ano) de plantas industriais em formações rochosas sob o Mar do Norte a partir de 2025. No dia seguinte, a Equinor e a Wintershall Dea anunciaram a construção de um gasoduto de 900 km da Alemanha (maior emissor da Europa) até a Noruega, para transportar e armazenar carbono sob o Mar do Norte antes de 2032 e desenvolver posteriormente a tecnologia da CCS além das fronteiras europeias.

A diversificação do fornecimento de energia na EU em resposta ao embargo à Rússia segue uma lógica comum. Para garantir o modo de vida imperialista europeu, o “acesso sustentável a matérias primas críticas para as transições gêmeas” verde e digital, é prioridade, como diz a Revisão Estratégica de Junho da Comissão Europeia. Também, energias “limpas” implicam uma necessidade crescente de minerais como lítio, níquel, cobalto, magnésio, grafite, cobre e alumínio para a transição verde. A União Europeia precisará de 18 vezes mais lítio e 5 vezes mais cobalto em 2030, para baterias de carros elétricos e armazenamento de energia (em 2050, 60 vezes mais lítio e 15 vezes mais cobalto). Cerca da metade das importações de matéria-prima metálica para a EU alimentam o centro industrial alemão.

 

Um Inverno Quente 

O “inverno quente” de inflação e escassez de energia que está por vir pode também proporcionar oportunidades para quebrar o poder das empresas de petróleo, incluindo mudanças no sistema de custo marginal da eletricidade. Sob o atual projeto do mercado, o custo de energia elétrica alimentada a gás determina o preço geral da eletricidade no atacado, até mesmo para energia solar e eólica. Enquanto a União Europeia procura quebrar isso, Von der Leyen diz “Nós estamos vendo agora com esses exorbitantes preços do gás que nós devemos desacoplar”. No geral, a esquerda pede um drástico limite para os lucros astronômicos dos gigantes da energia, particularmente impostos sobre lucros inesperados e ganhos recordes desde o início da crise. A Comissão Europeia agora discute essas opiniões. Na Alemanha, a esquerda demanda também a continuação de um bilhete de transporte de baixo custo para todo o país, que foi lançado para os três meses do verão. A Esquerda europeia tem a tarefa de mobilizar e propor propostas concretas para a justa participação dos ricos nos custos da crise e alívio para a maioria do povo, o controle público do setor energético, uma redução justa do consumo de energia, investimentos maciços na proteção do clima e energias renováveis.