Vida que resiste à morte: o povo do Irã se levanta

O assassinato de Jina (Mahsa) Amini, ocorrido após sua prisão pela “polícia moral” do regime em Teerã em 15 de setembro de 2022, por supostamente não cumprir os rigorosos códigos do hijab no Irã, provocou uma onda de protestos que continua a se espalhar por todo o país.

Jina foi inicialmente levada para o centro de detenção de Vozara, em Teerã, para “aulas de reeducação”. Em poucas horas, no entanto, ela foi transferida para o hospital após apresentar sintomas de uma concussão. Pouco depois, entrou em coma e morreu dois dias depois. Suspeita-se que sua morte foi causada por repetidos golpes em sua cabeça. As autoridades iranianas insistem que sua morte foi resultado de um “ataque cardíaco”, alegação tida pela família como absurda, dado que Jina era uma mulher saudável de 22 anos, sem condições médicas conhecidas anteriormente. Em 17 de setembro seu corpo foi transferido para Saqqez, onde vivia, na província do Curdistão iraniano, no noroeste do país, na tentativa de arrefecer a agitação popular em Teerã. Apesar de todas as medidas de segurança tomadas pelo regime, seu funeral se tornou um levante de massas que rapidamente se espalhou para cidades vizinhas – Sanandaj, Mahabad, Marivan, Divan Dare, Bukan, Paveh, entre outras – no dia seguinte.

O movimento de protestos rapidamente se espalhou para além da província do Curdistão, explicitando que a população por todo o Irã vê a morte de Jina e as opressivas leis morais do regime como emblemáticas da intensidade crescente da opressão, corrupção e miséria impostas por um estado “militarizado, capitalista e patriarcal”, que provocou uma série de protestos ao longo dos últimos cinco anos. Pessoas em todo o Irã, incluindo Teerã, Rasht, Sari, Ghazvin (no norte do país), Arak e Isfahan (centro), Mashahd (nordeste), Tabriz (noroeste), Khoram Abad (oeste), Kerman (sudeste), Shiraz, Bandar Abbas e Kish (sul), em todas foram organizados protestos contra o assassinato de Jina, e o número de cidades se somando às manifestações tem crescido diariamente.

Os anúncios de local e horário das manifestações foram postados em fóruns como Leftist Telegram, Instagram, e canais do Twitter como Sarkhat e Sedaye Mahi Siah, como forma de apoiar a organização popular e permitir o compartilhamento de vídeos e fotos dos protestos. Estudantes da maioria das universidades em Teerã, como a Shahid Beheshti, Allame San’ati Sharif, Tarbiat Modares, Amirkabir e Al Zahra, assim como universidades de grandes cidades, como Yazd, Isfahan, Karaj e Tabriz, se organizaram em protestos nos campi. Ainda, diversas celebridades expressaram seu descontentamento com a repressão em curso ao aparecerem sem véu em plataformas internacionais e virtuais. Os shuras (conselhos) de trabalhadores e professores denunciaram as medidas opressivas do regime por meio de declarações públicas. Curiosamente, um número significativo de famílias religiosas, mulheres veladas e até mesmo clérigos exigiram a revogação das leis que versam sobre o uso compulsório do hijab.

As palavras de ordem cunhadas pelos manifestantes mostram de maneira clara as conexões entre os protestos atuais e a série de levantes em 2017 e 2019, que foram desencadeados pela retirada dos subsídios estatais aos produtos derivados de petróleo e alimentos básicos, assim como com protestos anteriores contra o uso compulsório do hijab, tanto imediatamente após a revolução de 1979, quanto em 2017 no movimento que ficou conhecido como “As meninas da Rua Inquilab (Rua da Revolução)”.

As mulheres estão resistindo à instrumentalização de seus corpos a serviço do regime dominante e de sua ideologia. Nos primeiros anos da revolução, mulheres sem véu eram vistas como uma ameaça à unidade e à segurança nacionais, num momento em que o “anti-imperialismo” era o foco central do debate político. Diversos grupos de oposição, apesar de suas diferenças, então unificaram suas forças contra as potências imperialistas que exploravam os recursos naturais do Irã. Naquele período, a retirada do véu significava a imposição dos valores e da cultura ocidentais, que eram rejeitados por grande parte da população em defesa da nação. Foi por esse motivo que os protestos das mulheres contra o uso obrigatório do hijab, imediatamente após a revolução de 1979, não tiveram grande apoio, nem mesmo de boa parte da esquerda.

Os protestos de hoje, no entanto, não estão focados apenas na “questão das mulheres” ou na “repressão islâmica”. Eles também respondem a uma crise sócio-econômica crescente, cuja origem reside nos efeitos das sanções impostas pelos EUA e na orientação crescentemente neoliberal da política econômica, que criou o desemprego em massa e permitiu o desenvolvimento de uma corrupção governamental sistêmica. O giro neoliberal do Irã privou a população de seus meios de subsistência básica e garantiu uma riqueza imensurável para a minoritária “classe do regime”. Esses fatores, combinados à repressão massiva à liberdade de expressão e de pensamento e ao regime tirânico que reduziu o Islã à questão do hijab compulsório e à intervenção regional, levaram a um sentimento generalizado de indignação.

Essa indignação é capturada nos cantos e palavras de ordem do atual movimento de protesto. “Mulher, vida, liberdade” (زن، زندگی، آزادی), palavra de ordem nascida em Rojava, região autônoma curda no nordeste da Síria, se tornou o principal mote do movimento, cantado por manifestantes por todas as cidades do Irã. Hoje há um entendimento crescente no Irã de que as mulheres se levantam contra um “capitalismo patriarcal” que marginaliza a participação das mulheres no mercado de trabalho ao aplicar regras regulações rígidas, que as excluem da esfera pública e as segrega com a coação à maternidade e ao espaço doméstico.

Estudantes universitários também cantam “pobreza, corrupção, injustiça/vergonha em toda essa tirania” (فقر و فساد و بیداد/ مرگ بر این استبداد); “Libertação é nosso direito, nosso poder é nossa ação coletiva” (رهایی حق ماست، قدرت ما جمع ماست), e “exploração, desemprego, hijab forçado contra as mulheres” (بیگاری، بیکاری، پوشش زن اجباری).

Outras palavras de ordem nas ruas do Irã, como “abaixo o ditador” (مرگ بر دیکتاتور) e “abaixo o tirano, seja o xá ou o líder supremo” (مرگ بر ستمگر، چه شاه باشه چه رهبر), “Khamenei é um assassino, sua soberania é ilegítima” (خامنه‌ای قاتله، ولایتش باطله) e “fora Khamenei” (مرگ بر خامنه‌ای), revelam a ira popular com o atual regime despótico e a rejeição ao regime monárquico, cujos descendentes estão sempre à espera de oportunidades para utilizar os movimentos populares para retomar o poder.

A derrubada da dinastia Pahlavi em 1979 não impediu a família de viver como realeza com a enorme riqueza roubada do povo iraniano. É importante recordar que a dinastia Pahlavi, que governou o Irã de 1925 a 1979, era um “regime secular” estreitamente alinhado com o Ocidente. As altas receitas de petróleo permitiram ao regime “modernizar” o Irã e apresentar uma postura “progressiva” para as potências ocidentais. Essa rápida “modernização” e “ocidentalização” foi feita às custas da população, cuja aparência “atrasada” tinha que ser “normalizada”. O xá Reza Pahlavi lançou uma “campanha de desvelamento – proibindo as vestimentas masculinas tradicionais em favor das roupas ocidentais – tão coercitiva que desencadeou sangrentos conflitos em Mashhad, a segunda maior cidade do Irã. A campanha do desvelamento foi ampliada em 1936 com medidas obrigando professoras e esposas de ministros, oficiais do alto escalão do exército e funcionários do governo a utilizar roupas e chapéus europeus em vez do chador tradicional”. Essa “emancipação” foi mais benéfica à economia europeia que à população iraniana, uma vez que a moda europeia foi importa a força e um amplo mercado foi aberto em benefício de fabricantes alemães e franceses, enquanto os produtores locais definharam.

Ao mesmo tempo, a modernização forçada e a campanha de ocidentalização levaram à demissão de funcionários do governo cujas esposas os acompanhavam com véu. Ainda, mulheres com véu foram banidas de determinados serviços públicos e espaços, como cinemas e banhos públicos. Lenços eram retirados e rasgados em pedaços pela polícia; “funcionários por vezes invadiam casas privadas ou procuravam e prendiam mulheres utilizando chador na privacidade de suas casas”. Às mulheres que usavam véu também eram negadas diversas oportunidades educacionais.

Assim como sob o regime do xá Reza, o atual regime pune a violação dos códigos de vestimenta com prisão e punições corporais. Isso demonstra o fato de que, seja pela exigência de que as mulheres sejam expostas ou resguardadas, o controle de seus corpos permanece como parte integral de todas as ordens políticas, seja secular ou islâmica. É por isso que a palavra de ordem “vida longa ao socialismo e vida longa ao comunismo” (زنده باد سوسیالیسم، زنده باد کمونیسم) é cantada no Curdistão, em rejeição tanto ao regime despótico corrente quanto ao anterior.

Há também palavras de ordem contra as forças Basiji, organização paramilitar que atua como primeiro braço repressivo do regime desde os primeiros dias da Revolução de 1979. As Basiji reprimem estudantes universitários com ataques físicos ou com palavras de ordem em apoio ao regime. Também estão nas ruas, atacando manifestantes com cassetetes ou choques elétricos. Os manifestantes cantam em resposta: “desonrados Basiji, vocês são nosso ISIS” (بسیجی بی‌غیرت، داعش ما شمایی). O setor do clero que lutou para monopolizar o poder após a Revolução de 1979 sob a bandeira do Islã também é denunciado: “clero, vá se foder” (آخوند برو گمشو).

Manifestantes também modificaram criativamente os nomes eufemísticos das instituições repressivas do estado, para revelar a violência e a repressão que esses nomes omitem. Por exemplo, a “Patrulha de Orientação”, também conhecida como “polícia moral”, foi estabelecida em 2005 sob o nome oficial de “programa para incremento da segurança social”. Agora, vem sendo chamada de “Patrulha do Massacre” em palavras de ordem como “Abaixo a Patrulha do Massacre” (مرگ بر ماشین گشت کشتار) ou “morte após morte, dane-se a Patrulha de Orientação” (کشتار پشت کشتار، لعنت به گشت ارشاد). Em diferentes cidades, manifestantes colocaram fogo em diversas viaturas policiais e da patrulha.

Como fica evidente, o acúmulo de reivindicações de uma diversidade de níveis sócio-políticos e de diferentes localizações geográficas e sociais tornaram a morte de Jina em uma ocasião para resistência coletiva. A frase inscrita no túmulo de Jina, “Querida Jina, você não falecerá, seu nome será um símbolo”, se espalhou amplamente pelo espaço virtual e em grafites vistos por todo o país, mostrando que sua morte se transformou em uma luta pela vida, como seu nome curdo sinaliza – Jina significa vida. Sua morte nos recorda das ameaças políticas, econômicas e ideológicas às nossas vidas – algumas imediatas e outras emergindo lentamente, colocadas pela repressão em nome do Islã e pela implementação de programas econômicos neoliberais, iniciada uma década após a Revolução de 1979. Também nos recorda que o desejo do povo pela vida o leva a resistir à repressão, não importa quão feroz ela seja.

Nos primeiros anos da revolução, a maior parte das grandes empresas foi nacionalizada, os preços de mercado controlados, e a maior parte dos bens básicos e os combustíveis foram mantidos baixos via subsídios governamentais. Depois da morte do Aiatolá Khomeini, em junho de 1989, relações capitalistas de produção foram refortalecidas por meio do programa de “reestruturação econômica”, desenvolvido com a assistência do FMI e do Banco Mundial. Como consequência da liberalização da economia, os controles de preços foram derrubados, subsídios estatais reduzidos e as empresas nacionalizadas foram privatizadas. A redução nos subsídios estatais aumentou o preço de bens e serviços providos pelo governo e o valor da moeda nacional caiu dramaticamente. Em 1996, os preços de consumo haviam subido, oficialmente, cerca de 359 % em comparação com 1990. A liberalização econômica da República Islâmica do Irã perseguiu uma “estratégia de ziguezague”, recuando quando o descontentamento popular desencadeia levantes públicos e acelerando conforme os protestos arrefecem.

Esse acontecimento trágico é amplamente representado no Ocidente e na mídia internacional como uma consequência do “hijab forçado” implementado por um “estado islâmico”. O problema não é o que essas afirmações dizem, mas o que elas omitem. Esse discurso dominante obscurece o fato de que a subordinação das mulheres é conseguida por diferentes meios, e não é restrita às “sociedades muçulmanas” nem ao “hijab forçado”. De fato, a questão não é meramente a obrigação de “cobrir” os corpos das mulheres, mas sim a “dominação ou controle sobre os corpos das mulheres”, que pode se dar de diferentes formas – do ocultamento forçado à exposição forçada, assim como a gravidez forçada e o nascimento forçado. As narrativas dominantes estão engajadas ativamente no fortalecimento de binarismos orientalistas entre o “Ocidente” e o “Oriente”, como se o ato bárbaro de obrigar as mulheres a usar o hijab provasse o caráter civilizado do Ocidente, ou como se o Ocidente secular fosse automaticamente inocente na opressão implacável das mulheres, supostamente típica do mundo muçulmano. De fato, uma vez que reconhecemos as diversas formas em que se dá a subordinação das mulheres, podemos visualizar não apenas as formas de opressão das mulheres particulares aos estados seculares, mas também que a doutrina islâmica sozinha não explica a opressão das mulheres. Devemos rejeitar o frequentemente repetido mito da superioridade cultural e política do Ocidente em relação a um oprimido e opressor chamado “mundo muçulmano”.

Para pegar um exemplo recente: a França, um dos mais “iluministas” dos países europeus, aprovou uma lei “anti-separatismo” em 30 de março de 2020, que proíbe meninas com menos de 18 anos de usar o hijab em público, proíbe mães que usam o hijab de acompanhar suas crianças em atividades ou viagens escolares e proíbe o uso do “burkini”, roupa de banho completa, obrigando as mulheres a expor seus corpos na praia ou em piscinas públicas.

Assim como o regime do Xá lutou para apresentar uma imagem “civilizada” e “secular” do país por meio do policiamento dos corpos das mulheres, a França confunde “igualdade” com “identidade absoluta”, que seria obtida pela negação de qualquer diferença para produzir um todo harmonioso e unificado. Essa proibição repressiva, embora não esteja explicitamente na lei, é dirigida às mulheres muçulmanas na França.

A insegurança e a alienação impostas sobre as mulheres pelo “não-uso forçado do véu” é igual à do “uso forçado do véu”. Este, no entanto, sempre serve para tornar aquele invisível, uma ênfase que reduz o “policiamento dos corpos” ao seu ocultamento forçado, como se a exposição forçada não servisse a fins políticos pela criação de uma hierarquia entre mulheres “iluminadas” e “não-iluminadas”.

É fundamental hoje que a esquerda internacional expresse sua solidariedade às manifestantes no Irã que lutam pelo direito de continuar vivendo, contra todos os mecanismos de opressão e exploração, sob regimes teocráticos ou seculares. A luta popular em curso exige não uma intervenção estrangeira, mas um movimento internacional contra a opressão em todas as suas formas. Seja o hijab compulsório no Irã, seja a proibição do hijab ou outras vestimentas associadas às mulheres muçulmanas, nenhuma tentativa de controle dos corpos das mulheres deve ser tolerada. Como é evidente, os problemas que o povo do Irã está enfrentando não são restritos ao Islã ou às mulheres. O mundo todo tem diante de si uma ordem neoliberal caracterizada por políticas cada vez mais autoritárias, racistas e misóginas, que oferecem nada exceto miséria e espoliação para os povos do mundo.


*Shirin Kamangar é uma militante de esquerda em Teerã e assina sob um pseudônimo.