Créditos de guerra para o militarismo alemão

 Diante do pano de fundo da guerra na Ucrânia, o governo alemão opera a modernização do militarismo alemão. Planos de longo prazo estão em plena aceleração – às custas da classe trabalhadora na Alemanha, mas também internacionalmente.

Ava Matheis

 

Orçamento extraordinário para as Forças Armadas alemãs 

Desde que Olaf Scholz, chanceler da república pelo Partido Social-democrata (SPD), anunciou o chamado “orçamento extraordinário do Bundeswehr (Forças Armadas)”, tem imperado na indústria armamentista alemã um clima de corrida pelo ouro. As empresas de armas atingiram lucros recordes no primeiro semestre de 2022 e se preparam para novos sucessos. Todos os fabricantes de armas têm aberto postos de trabalho para dar conta das encomendas futuras. 

Em 3 de Junho o Bundestag, o parlamento alemão, aprovou por ampla maioria que assumirá uma dívida especial para o armamento do Bundeswehr. 100 bilhões de euros serão financiados a crédito e não serão contabilizados no teto da dívida. O orçamento de defesa deverá nos próximos anos atingir a meta de 2% do total, estabelecido pela OTAN. Já em 2022, o governo federal aprovou o mais alto orçamento de defesa desde a fundação do Bundeswehr: 50 bilhões de euros. Com isso, a Alemanha fica em sétimo lugar no comparativo internacional. No futuro próximo, esse orçamento deverá chegar a 70 bilhões de euros. 

 

A Alemanha e o militarismo 

A Alemanha foi, desde o fim da Segunda Guerra, firmemente integrada ao campo capitalista liderado pelos EUA, e é membro da OTAN desde 1955. Desde 1955, durante toda a Guerra Fria o Bundeswehr foi construído como um exército de serviço obrigatório e altamente moderno. Contra isso, sempre houve resistência entre a população. Havia uma divisão de trabalho com os EUA e outros aliados: a tarefa do Bundeswehr era assegurar a fronteira oriental da OTAN contra a União Soviética. Guerras de agressão eram proibidas pela Constituição. 

Com o colapso do Bloco Oriental ficou claro: o mundo não estava se tornando mais pacífico. Com a globalização e a intensificação da concorrência internacional, o apelo à força militar tornou-se cada vez mais forte. O objetivo das classes dominantes: a Alemanha deve ser capaz de defender seus interesses econômicos e comerciais – inclusive por meios militares. Para isso, é necessário um exército ativo globalmente. Há anos assistimos a uma crescente militarização da política externa alemã. 

 

A mentira do sucateamento do Bundeswehr 

No meio tempo, o governo alemão continuou com a narrativa de que o Bundeswehr estaria completamente sucateado. A realidade é o oposto: o Bundeswehr foi construído como um exército ágil em intervenções duradouras por todo o mundo. A missão: assegurar os interesses alemães no exterior e a ocupação militar de outros países, como o Afeganistão. Desde 2014, o orçamento militar vem crescendo de forma particularmente acentuada. Se em 2014 eram 32,4 bilhões de euros, em 2022 já chegava a 50 bilhões. O orçamento militar já havia sido aumentado, antes mesmo do orçamento extraordinário, em 20 bilhões de euros em 8 anos. O objetivo da classe dominante alemã é a “defesa dos estados e da federação” por meio de intervenções externas constantes. Atualmente, o Bundeswehr está ativo em 12 intervenções estrangeiras e em diversas missões da OTAN. Pode-se supor que esse número seguirá crescendo. 

 

Guerra como oportunidade? 

Ao mesmo tempo, entre a população, o armamento do Bundeswehr vinha sendo uma iniciativa impopular. Ainda em 2021, o armamento de drones do Bundeswehr foi evitado, devido à pressão dos movimentos anti-guerra. Com a desastrosa retirada do Bundeswehr e seus aliados da OTAN no Afeganistão, pareceu por um momento que a política de guerra da OTAN havia caído em descrédito para o público em geral. 

Com a guerra de agressão russa, o vento parece ter virado para o governo federal alemão. Uma pesquisa realizada em março pelo instituto YouGov mostrou que quase 63% da população apoiava o orçamento extraordinário para o Bundeswehr, enquanto apenas 25% o rejeitava. 

Sob grande aplauso no Bundestag, o chanceler Scholz anunciou uma “mudança de época”. O armamento do Bundeswehr, no entanto, ao contrário do que afirma o governo federal, não é uma reação firme à agressão russa à Ucrânia. Segundo reportagens da revista Der Spiegel, os planos para o orçamento extraordinário já estavam nas gavetas do Ministério da Defesa desde outubro do ano passado. 

A maior parte do dinheiro está direcionada para mega projetos armamentistas. Por exemplo, o financiamento do Future Combat Air System. O projeto conecta sistemas de guerra terrestre, marítima, aérea, espacial e cibernética em um único sistema de guerra interligado. O custo total deve chegar a 500 bilhões de euros. Para isso serão necessários novos Eurofighter, drones de combate autônomos e helicópteros de combate. Lucrarão com esse projeto os fabricantes Airbus Defence and Space (Alemanha), Dassault Aviation (França) e Indra Systemas (Espanha). Também estão sendo adquiridos caças nucleares F-35 e drones de combate tipo Heron TP. 

A lista de compras do Bundeswehr deixa claro que não se trata de defesa ou equipamentos para soldados, mas sim de um fortalecimento do caráter ofensivo do exército alemão como força operacional. O governo federal utiliza a guerra na Ucrânia como pretexto para o desencadeamento do militarismo alemão. 

 

A sociedade em transe de guerra 

O presidente do SPD, Lars Klingbeil, resumiu as ambições por trás do programa armamentista: “A Alemanha deve reivindicar seu lugar de potência dirigente. Depois de quase 80 anos de contenção, agora a Alemanha tem um novo papel nas coordenadas internacionais”. 

Também internamente podemos observar uma influência crescente do militarismo. O Ministro da Educação, Stark-Watzinger (do Partido Liberal-democrático – FDP), determinou que os chamados “jovens oficiais” do Bundeswehr fossem alocados em escolas, para que informem às crianças sobre a guerra na Ucrânia. O número de oficiais jovens alocados em escolas aumentou drasticamente no primeiro semestre de 2022. 

O ex-embaixador ucraniano em Berlim, um conhecido admirador do fascista ucraniano Stepan Bandera, tornou-se convidado permanente na imprensa alemã. Em todas as oportunidades, atacou todos aqueles que se posicionaram contrários ao envio de armas. 

No período que antecedeu as mobilizações contra a guerra, na Páscoa de 2022, estas sofreram um ataque ideológico generalizado: o pacifismo seria agora “um sonho distante”, segundo o vice-chanceler Robert Habeck (do Partido Verde – Grünen). Vom Lambsdorff, do FDP, acusou os participantes das manifestações de “quinta coluna da Rússia”. 

 

Resistência de esquerda contra o armamentismo 

Enquanto bilhões são gastos para o armamento, a crise social continua a se agravar na Alemanha. O aumento nos preços de alimentos e de energia tem atingido duramente a população alemã. 13,8 milhões de pessoas constam como pobres, 600.000 a mais que antes da pandemia. Mais de 2 milhões de pessoas dependem da distribuição gratuita de alimentos por organizações voluntárias. A coalizão entre o SPD, Verdes e FDP foi formada como um governo progressista. Mas enquanto entoa palavras de ordem neoliberais nas políticas sociais e de saúde, proporciona grandes lucros às empresas de armamentos e de energia. 

A esquerda social está em uma situação defensiva, devido à dominância da lógica militar. O chamado contra o armamentismo, feito por sindicatos, igrejas, associações de esquerda e pelo Die Linke ofereceu um pequeno espaço de esperança. Há protestos sendo preparados para o outono, contra a guerra e a inflação. 

O armamento do Bundeswehr e o fortalecimento do imperialismo alemão representam um perigo. Não apenas para a classe trabalhadora alemã, mas também internacionalmente. A nova corrida armamentista, a crescente política de enfrentamento da OTAN contra a China e o perigo de uma guerra nuclear são uma ameaça para todos nós.