A dissolução da Assembleia Nacional Equatoriana e o avanço da esquerda no cenário político do Equador

Por Ana Lúcia Lacerda

Foto: Reprodução Brasil de Fato

Em um cenário político de crise, o Equador vive uma conjuntura que possibilita o retorno da esquerda ao poder. O mecanismo legal apelidado de “morte cruzada” evocado pelo atual presidente Guilherme Lasso permite que a assembleia nacional seja dissolvida e que o mandatário convoque eleições gerais em até seis meses. O conselho eleitoral equatoriano já prevê eleições para agosto de 2023. A oposição de esquerda se fortaleceu durante este processo, mas é vista uma clara distinção entre o legado político do correísmo e a consolidação de lideranças indígenas que se opõem a Rafael Correa e pleiteiam candidatura própria.

Contextualizando a trajetória política equatoriana, as eleições ocorrem em meio a uma crise social e econômica. Lenin Moreno, presidente que substitui Rafael Correa, se distanciou do programa político que o elegeu em 2017, se aproximando de agendas neoliberais. Sua má gestão durante a pandemia fez do Equador, em 2020, um dos países latino-americanos com maior índice de mortos pela COVID-19. Com alta rejeição, Lenin Moreno sai de seu partido e desiste de se candidatar à reeleição.

Nesse contexto, a disputa presidencial ficou entre: Andrés Arauz, filiado ao partido Movimiento Revolución Ciudadana; Guilherme Lasso, do partido Movimiento Creando Oportunidades (CREO); Yaku Pérez, filiado ao partido indígena Pachakutik; e Xavier Hervas, do Izquierda Democrática. Andrés Arauz era o favorito para vencer a eleição equatoriana. No primeiro turno, Arauz obteve 3.033.753 votos, 32,72%, Lasso, por sua vez, teve 1.830.045, 19,74%, enquanto Yaku Pérez recebeu 1.797.445 votos, 19,38%, permanecendo em terceiro lugar, e Xavier Hervas logrou de 1.448.687 votos, 15,71%, ficando na quarta posição. Em um primeiro momento, Andrés Arauz era o favorito para vencer o segundo turno, entretanto quem se elege é Guilherme Lasso com 52,5% dos votos.

Este cenário de derrota da esquerda pode ser explicado pelo anti-correismo que existe na política equatoriana. Rafael Correa, ex-presidente e fundador do partido Revolución Ciudadana, governou o Equador por 10 anos (2007-2017), chegando ao poder junto dos movimentos sociais depois de um período de grande turbulência política. Correa avançou em políticas sociais e econômicas, conseguindo diminuir pela metade a taxa de pobreza do país e elevando o desenvolvimento da economia real. Seu mandato realizou a Assembléia Constituinte, responsável por reformular a Carta Magna de fundação do Estado e incluir agendas originárias. Outro feito importante foi o Plano Nacional do Bem Viver, que visava a construção de um Estado Plurinacional. Todavia, no decorrer dos mandatos Correa perde o apoio dos movimentos, uma vez que passa a centralizar as tomadas de decisão, deixando muitos atores sociais de fora. Como resultado abre uma lacuna junto aos movimentos ambientais e indígenas - devido às políticas extrativistas - militariza os territórios e passa a criminalizar protestos populares. Essa virada governista fez com que muitos que antes eram base do governo se tornassem oposição e, por isso, mesmo seu governo tendo saldos positivos, existe parte da população equatoriana que rejeita a política ligada à Correa.

O anti-correismo também foi alimentado pela condenação do ex-presidente, em 2020, por suborno qualificado, levando à pena de 8 anos de prisão e 25 anos de inelegibilidade. Rafael Correa diz ser inocente, se colocando como perseguido pelo governo equatoriano. Correa e Lenin Moreno faziam parte do mesmo partido, o Aliança PAIS, mas, devido a discordâncias a Moreno e sua condução política partidária e de governo, Rafael Correa se desvincula do antigo partido e funda o Revolución Ciudadana. Moreno, no fim de seu mandato, chega a acusar Correa de tentativa de golpe, visto que em muitos momentos as ruas foram tomadas por manifestações contra o então presidente. 

Durante as eleições a direita utilizou a estratégia do discurso de anti-corrupção para atacar Arauz, pois este está vinculado diretamente a Correa. Arauz acusou Lasso de realizar uma “campanha suja”, cujo principal ato era propagar mentiras e desinformações. Uma série de atores políticos, de dentro e de fora do Equador, tentaram vincular Arauz à desonestidade. Dentro, o Ministério Público e a Controladoria acusaram o Conselho Nacional Eleitoral de fraude eleitoral, pedindo o confisco dos dados digitais e a anulação da contagem dos votos do primeiro turno. Fora, o Procurador-Geral colombiano atacou o candidato postulando o recebimento de empréstimo para campanha presidencial do Exército de Libertação Nacional, movimento guerrilheiro colombiano.

Outro fator que levou ao fortalecimento de Guilherme Lasso foi a falta de unidade da esquerda no país. Tanto Xavier Hervas quanto Yaku Pérez fizeram críticas ao correísmo, o primeiro não se posicionando a favor de nenhum candidato e o segundo incentivando o voto nulo. Embora ambos fossem de esquerda, o repúdio ao correísmo fez os votos migrarem não apenas para os nulos e brancos, mas também para a direita, podendo ser identificado uma maioria de votos à direita vindo dos votantes em Hervas. A falta de unidade também partiu da Revolución Ciudadana. As estruturas organizacionais foram escassas, com ausência de uma mobilização enraizada em movimentos sociais, nos territórios e nas lutas operárias, feministas e/ou indígenas.

A eleição de 2021 foi acirrada, mesmo Lasso conseguido ascender ao poder executivo não havia apoio no legislativo suficiente para governar com tranquilidade. Devido à política de austeridade e às privatizações promovidas, o primeiro ano de mandato do CREO foi marcado por grandes protestos que pararam o país. O maior deles foi impulsionado pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE) em resposta à crise social e econômica e à priorização do governo às agendas do mercado. A greve nacional mobilizada pela CONAIE em 2022 parou o país por 18 dias e foi fortemente reprimida pelo governo.

Além da forte oposição vista nas ruas, a pressão sobre Lasso também aumentou no legislativo. Em 2022 o presidente sofreu seu primeiro processo de impeachment, em decorrência dos protestos e repressão. Este último, ao qual leva Lasso decretar “morte cruzada”, acusa o presidente de peculato na gestão da estatal Flota Petrolera Ecuatoriana (FLOPEC), já que manteve um contrato para transporte de petróleo bruto com o Amazonas Tanker, grupo que provocou prejuízo superior a seis milhões de dólares aos cofres estatais.

A atual conjuntura mostra cenários políticos possíveis a serem desenhados. É visível o fortalecimento da esquerda equatoriana, muitos apostando na volta do correísmo. Contudo, é visto o crescimento de lideranças indígenas e do partido indígena Pachakuti. Yaku Pérez em seu perfil nas redes sociais já se colocou em mobilização para as próximas eleições, apontando a necessidade de uma união para a construção de uma terceira via sustentada pela superação da dívida ecológica, social e ética. Pérez se afastou do Pachakutik, devido a críticas de alianças, durante alguns momentos, do partido com o governo Lasso, e fundou o movimento “Somos Água”.

Por sua vez, o Pachakutik declarou inconstitucional o decreto presidencial, apontando para o aprofundamento da crise política no país. O partido convocou uma frente nacional para barrar as políticas que Lasso irá empreender sem o contrapeso da Assembleia Nacional, não mencionando ainda um viés de como irão se dispor nas disputas eleitorais.

Andrés Arauz, em posição semelhante a Yaku Pérez, enxerga a situação como uma oportunidade do povo equatoriano voltar às urnas, permitindo acabar com a crise política de forma democrática - assim como previsto na constituição -. Arauz chama a esquerda para a unidade, não se colocando como candidato imediato, mas posicionando o Revolución Ciudadana como uma liderança desse processo.

Por fim, dentre os candidatos à eleição de 2021, Xavier Hevas declarou que a morte cruzada foi uma medida irresponsável de um presidente que deseja governar o país sem a assembleia. Disse em entrevista que não participará da próxima eleição, anunciando que também não apoiará nenhum dos presidenciáveis. Hervas deixou seu partido, Izquierda Democrática, em 2022, por desacordos ideológicos. O Izquierda Democrática, de maneira semelhante ao ex-filiado, coloca como inconstitucional a decisão de Lasso.

Por seu turno, Guilherme Lasso dissolveu o congresso buscando governar. Mesmo o Conselho Nacional Eleitoral do Equador já estabelecendo eleição para agosto, esses meses podem significar um respiro político para o atual presidente e para a direita equatoriana. Lasso se coloca fora das disputas presidenciais, mas nada impede o fortalecimento da direita e o surgimento de um nome durante esse período. A reforma tributária foi o primeiro decreto que Lasso instituiu, os próximos vão na linha de aprofundar as políticas neoliberais, mediante a privatização de setores estratégicos da economia equatoriana.

A certeza que se pode ter é que o movimento indígena será crucial para definir os próximos episódios da conjuntura política equatoriana. A força indígena, com a CONAIE sendo sua maior representante, foi vista em diversos períodos da história do Equador e mais uma vez se mostra como um contrapeso às figuras políticas tradicionais já consolidadas. A CONAIE se colocou contra a “morte cruzada”, expondo que Lasso, juntamente com as elites, pretende impor medidas econômicas lesivas ao povo equatoriano e, por isso, a confederação estará nas ruas para barrar os retrocessos que virão.Portanto, temos um cenário em que a esquerda ainda está desunida, não podendo ser observado uma aproximação efetiva entre as diferentes lideranças e partidos políticos. O diálogo entre o correismo e os indígenas será essencial para formação de um bloco fortalecido, visto que os votos de Hervas são voláteis, muitos se direcionando para a direita. A maior dificuldade neste diálogo vai ser a desconfiança que o movimento indígena tem do correismo, visto os últimos anos de governo do Rafael Correa. Tanto o Revolución Ciudadana, quanto o partido Pachakutik e Yaku Péres, com o movimento “Somos Agua”, disputarão a liderança deste processo. A união dos setores de esquerda poderá surgir com os protestos e as ações que precisarão ser tomadas contra as medidas neoliberais de Lasso. É importante sublinhar que muitos definem o momento latino americano como uma possível “onda rosa”, mas muito mais fragilizada. Por isso, se a esquerda busca barrar o avanço neoliberal, é preciso repensar suas estratégias e táticas políticas, em um constante aprendizado com os episódios políticos dos países vizinhos.

 

Ana Lúcia Lacerda é mestre em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro e doutoranda pelo mesmo programa. É pesquisadora do Laboratório de Regionalismo e Política Externa (LERPE-UERJ), tendo como foco estudos direcionados à América Latina. É militante da Insurgência/ PSOL.