O Socialismo Avança na Juventude Estadunidense: Conferência dos Young Democratic Socialists of America mostra a força e a vitalidade do partido que mais cresce nos EUA

Por Alexandre Guelerman

Militante do PSOL e do Afronte!

 

No final de semana 1-3 de Março de 2024, tive a honra de participar como observador internacional do PSOL na Conferência Nacional dos Young Democratic Socialists of America (YDSA), a juventude do DSA, em Atlanta (Georgia). Tal conferência reuniu mais de 200 jovens quadros e foi um espaço extremamente produtivo de formação coletiva, discussão das campanhas conduzidas na base, e discussão das perspectivas para os próximos anos. Participar de conferências de organizações internacionais é sempre uma experiência de ampliação de horizontes, permitindo conhecer organizações que podem ser muito diferentes das nossas mas quase sempre tem muito a nos ensinar. A experiência com o YDSA foi inspiradora, e nesse artigo comento minhas principais impressões assistindo os debates e conversando com dirigentes, de modo a oferecer aos leitores brasileiros um retrato dessa organização tão importante no movimento socialista internacional.

Começarei esse artigo com uma breve contextualização das dimensões, atuação, e composição interna do DSA. Na sequência, discuto as particularidades do DSA e as principais discussões promovidas nesse congresso. Por fim, discuto os principais desafios que o DSA (e o YDSA em particular) deve enfrentar no próximo período: o posicionamento em um contexto nacional desafiador, com riscos colocados à unidade partidária; e a manutenção de finanças internas saudáveis.

 

 

DSA: Um Raio X

O DSA possui atualmente cerca de 80 mil membros, mais de dois terços dos quais pagam cotas e participam de organismos partidários com alguma regularidade (“members in good standing”). A força da organização se expressa na presença de mais de 200 parlamentares eleitos pelo país, a grande maioria em níveis administrativos municipal ou estadual. No entanto, o DSA também possui parlamentares eleitos a nível federal: são filiados ao partido seis membros do chamado “Squad”, grupo de oito jovens parlamentares radicais na Câmara dos Deputados, cujos nomes mais célebres são Rashida Tlaib (Michigan), Alexandria Ocasio-Cortez (Nova Iorque) e Cori Bush (Missouri). Ao contrário dos parlamentares locais, que são muitas vezes independentes, os parlamentares federais são eleitos pela legenda do Partido Democrata. Embora isso envolva tensões e desafios que comentaremos mais adiante, deve ser observado que o enquadramento legal dos dois grandes partidos políticos nos Estados Unidos oferece autonomia quase total a seus parlamentares, que via de regra não podem ser sancionados pela direção partidária nacional e devem necessariamente ser acatados pelo partido se eleitos nas primárias de seus distritos. Tal situação oferece grande nível de flexibilidade tática para o uso da legenda e dos recursos do Partido Democrata, mas todos no DSA – com diferentes matizes – concordam que o objetivo da organização é a construção de um partido socialista de massas e independente.

Embora o DSA tenha sido fundado na década de 1980, com raízes ainda mais antigas (o Socialist Labor Party dos Estados Unidos, que chegou, com Eugene Debs, a obter 6% dos votos na eleição presidencial de 1912), as dimensões e configuração atual do DSA devem ser entendidas como fruto de um processo muito recente. Seu principal motor foram as duas campanhas de Bernie Sanders nas eleições primárias do Partido Democrata em 2016 e 2020. O veterano senador de Vermont trouxe para a arena política americana uma palavra historicamente interditada do debate político, e embora o “socialismo” de Sanders dificilmente representasse algo mais radical do que o modelo social-democrata nórdico, Sanders renovou em milhões de americanos – especialmente jovens – ambições de debater novos projetos para seu país e para se organizar de forma duradoura.

O DSA foi muito hábil em se posicionar nesse processo, oferecendo para milhares a perspectiva de um engajamento contínuo e consistente por um novo projeto de futuro, apesar das derrotas desse projeto em ambas as tentativas de Bernie Sanders. O que ouvi de diversos ativistas a respeito dessas campanhas foi que a derrota de Sanders nas primárias de 2020 inicialmente foi um grande balde de água fria, refutando a ideia de que o socialismo é uma corrente de opinião que irreversível e automaticamente se estenderia pela sociedade americana. Ao mesmo tempo, essa derrota promoveu um importante aprendizado: os socialistas nunca vão triunfar a nível nacional se não conseguirem primeiro aglutinar uma força preponderante no movimento de massas. Esse aprendizado motivou milhares de ativistas a se dedicar a atividades organizativas de base, em movimentos urbanos como movimentos de inquilinos por moradia digna e acessível, nos movimentos negro (que teve os massivos protestos Black Lives Matter em 2020), feminista e LGBTQI+, e especialmente o movimento sindical. Milhares de ativistas se atiraram em esforços bem sucedidos e de grande repercussão de organização de trabalhadores desorganizados, especialmente em serviços essenciais e na juventude, se beneficiando de um sentimento popular de insatisfação que se seguiu à crise pandêmica, e ao mesmo tempo do fato de que a administração de Biden à frente do National Labor Relations Board tomou uma série de decisões favoráveis à organização sindical. Tais fatos explicam o fato – em alguma medida surpreendente – de que apesar de seus grandes triunfos eleitorais, o DSA não se viu consumido pelo aparato parlamentar, e em vez disso reforçou sua atuação de base.

O crescimento do DSA não apenas alterou radicalmente seu tamanho e seus setores de atuação, mas também sua composição interna. Em especial, ganharam proeminência no DSA militantes com uma orientação revolucionária e militante, em contraste com os setores que previamente dirigiam o partido, mais próximos ao que pode ser caracterizado como um reformismo radical e uma ênfase eleitoral. O DSA se divide informalmente em “caucuses”, semelhantes a “correntes” nos partidos brasileiros, e nos últimos congressos nacionais da organização o Comitê Político Nacional (National Political Committee, ou NPC) do DSA assistiu a um deslocamento “à esquerda”, com caucuses reformistas radicais que tradicionalmente dirigiam solidamente a organização (como Socialist Majority e Groundwork) cedendo parte de seu poder para caucuses mais recentes e que se apresentam como marxistas e revolucionários como Bread & Roses, Red Star, e Marxist Unity Group. Embora Groundwork ainda seja o maior caucus na organização, Groundwork e Socialist Majority não possuem mais maioria absoluta, e nenhum caucus ou “bloco” atualmente possui uma hegemonia consistente na organização, cuja direção se realinha a depender das pautas em questão. Essa correlação de forças contribui para uma organização bastante plural e dinâmica.

Ao mesmo tempo, uma das características mais notáveis do DSA é o fato de que apesar da competição entre caucuses na esfera nacional (que pode, por vezes, tornar-se até bastante aquecida), o DSA possui uma vida orgânica bastante unificada. Em vez de atuar como pequenos partidos em separado, os caucuses praticamente só atuam como organizações em separado durante atividades nacionais, e os chapters do DSA (seus núcleos de base, organizados em torno de um local de atuação comum) tipicamente envolvem membros de diferentes caucuses e, sobretudo, diversos membros independentes. Isso é bastante claro no caso do YDSA: pude perceber que os líderes de distintos caucuses possuem uma boa relação e conduzem diversas atividades em comum, e a maioria dos jovens dirigentes de base não se identificam rigorosamente com um ou outro caucus. No caso da Conferência em que participei, houve um momento em que cada caucus organizou sua atividade de apresentação, e na plenária final membros de distintos caucuses apresentaram suas distintas posições; mas essas rivalidades não impedem o YDSA de ser uma viva e dinâmica organização unificada.

 

O YDSA

A juventude é um dos setores mais dinâmicos e que mais rapidamente cresce no DSA. Também é o setor em que menos espaço têm os caucuses reformistas e eleitoralistas; seus principais caucuses são o Bread & Roses (uma convergência de trotskistas e outras correntes socialistas democráticas), o Constellation (uma organização que só existe na juventude, mas que possui proximidade com o Red Star, que possui raízes no maoísmo mas se define como leninista), e o Marxist Unity Group (uma organização que propõe uma renovação estratégica do leninismo ao combiná-lo com a estratégia alemã original de Engels e Kautsky para países democráticos, influenciados pelos escritos do historiador Lars Lih).

O YDSA é composto por uma coluna de quadros extremamente jovem, com suas principais lideranças nacionais tendo começado a militar nos últimos anos da década de 2010. Isso contribui para uma organização extremamente criativa e flexível, sem grandes formas de dogmatismo ou reprodução ritualística das mesmas fórmulas do passado. A juventude se organiza em “chapters” em cada campus, cada um envolvendo de um punhado a várias dezenas de estudantes. Embora o YDSA seja sobretudo baseado em estudantes de graduação, também possui alguns chapters secundaristas e de estudantes de pós-graduação. E, o que é mais interessante, embora o YDSA se estruture a partir da organização da juventude estudantil, suas formas de atuação transcendem o que comumente entende-se por movimento estudantil. Isso se dá porque, nos EUA, além de terem de arcar com custosas taxas de matrícula, os estudantes não dispõem de extensas políticas de permanência estudantil. Por causa disso, os filhos da classe trabalhadora que acessam as universidades têm frequentemente de trabalhar para se sustentar. As universidades oferecem diversas vagas de tempo parcial para estudantes (seja nos dormitórios como resident assistants, nas salas de aulas como teaching assistants, nas lanchonetes ou em funções administrativas). Muitos estudantes também encontram emprego em tempo parcial fora dos campus, por exemplo como caixas em em supermercados ou cafeterias.

Por isso, o YDSA não poupa esforços em organizar os estudantes em sindicatos. A palavra “organizing” deve ter sido a que eu mais escutei na conferência, e diversas oficinas focaram especificamente em como conduzir esse processo. Ao contrário do Brasil, em que cada categoria tem por lei, em cada jurisdição, um único sindicato, nos EUA para que os trabalhadores de uma empresa ou local de trabalho (“bargaining unit”) possuam um sindicato, precisam passar por um longo processo de coletas de assinaturas e realização de eleições, nas quais os trabalhadores definirão se querem ter um sindicato e qual sindicato os representará. Por isso, o YDSA se lançou em uma vasta campanha de “organização dos desorganizados” nos locais de trabalho em que seus militantes estão (muito frequentemente, também “infiltrando” militantes em locais de trabalho especificamente com a intenção de sindicaliza-los, prática conhecida como “salting”). Mesmo em espaços com jovens universitários – mais progressistas do que o resto da sociedade – o processo de organização sindical é muito desafiador, pois empregadores farão de tudo para impedir os organizadores de ter sucesso. Por isso, o YDSA se apropriou de um conjunto bastante profissionalizado de diretrizes para organização de trabalhadores, realizando continuamente formações sobre: como desenvolver um forte comitê de organizadores, como realizar um mapeamento dos locais de trabalho (quantidade de trabalhadores, quais são os trabalhadores mais predispostos a apoiar a campanha, quais são os trabalhadores mais influentes no grupo, etc.), como treinar os organizadores com relação às melhores estratégias de convencimento em conversas um-a-um, como mapear os recursos de poder (e os pontos fracos) do empregador nos locais de trabalho, e como planejar a linha do tempo dessas campanhas de organização (que se iniciam de modo clandestino, e devem saber a hora certa de se publicizar). Uma das principais referências usadas pelos trabalhadores nessas campanhas de organização é o livro “No Shortcuts: Organizing for Power in the New Gilded Age”, de Jane McAlevey.

Nos últimos anos, um “surto” de organização sindical atraiu atenção da mídia americana, conforme trabalhadores da Amazon, Starbucks, Google, Sega, dentre outros começaram a se organizar em sindicatos, o que seria impensável a poucos anos atrás (em que se pensava em sindicatos somente como organizações antigas e burocráticas no funcionalismo público e alguns setores industriais). Na cidade onde vivo (Madison), as duas principais redes de cafeterias (Starbucks e Colectivo) têm unidades sindicalizadas! O YDSA teve papel fundamental em muitas dessas campanhas de organização sindical, especialmente no Starbucks – empresa que há poucos dias atrás teve que ceder diante da mobilização dos trabalhadores, acabando com estratégias de discriminação contra sindicalizados e aceitando ir para a mesa de negociação. Da mesma forma, o YDSA também apoia campanhas de renovação de sindicatos tradicionais consumidos pelo burocratismo e inércia, por exemplo participando da campanha que elegeu o incendiário Shawn Fein para a presidência do United Auto Workers. Finalmente, em muitas das atividades que participei vi jovens discutindo como organizar teaching assistants, resident assistants, estagiários e outras funções dentro das universidades – processo que já está em curso em muitas universidades pelo país (inclusive, em 2022 e 2023 aconteceram algumas das mais importantes greves de pós-graduandos e teaching assistants da história dos Estados Unidos). Embora a estrutura sindical brasileira faça com que seja difícil reproduzir mecanicamente todas essas táticas no Brasil, há muito que se aprender com o YDSA nesse sentido.

Além de organizing, os ativistas do YDSA também se referem constantemente às campanhas nacionais que conduzem em suas universidades. Atualmente, destacam-se duas delas, semelhante às lutas travadas no Brasil: a luta pelo fim do genocídio em Gaza, e a luta pelos direitos das mulheres e da população trans sobre seus corpos. Um fato interessante é que para organizar essas campanhas o YDSA frequentemente se vale taticamente de alianças com organizações progressistas locais nas universidades, muitas das quais tradicionalmente ficavam sob influência dos Democratas. Grupos de jovens negros, grupos de jovens árabes, grupos de jovens latinos, grupos de jovens judeus pela democracia, grupos de extensão universitária, grupos orientados à pauta climática... não faltam associações desse tipo nas universidades americanas, e ao envolvê-las nessas campanhas o YDSA ameaça pela esquerda a hegemonia do liberal-progressismo nas universidades.

 

Desafios à Vista

Dois desafios se colocam no curto prazo para o YDSA. O primeiro deles é um tema que não foi amplamente debatido de forma direta nessa conferência, mas sobre o qual pude conversar com alguns de seus dirigentes: não está fácil se posicionar com relação à eleição presidencial. De um lado, todos sabem as ameaças que Trump representa não apenas para a qualidade de vida da classe trabalhadora, mas também para as perspectivas de organização sindical (ele deve mudar as diretrizes do National Labor Relations Board e engavetar projetos como o Protecting the Right to Organize Act) e para a própria democracia americana (bastante frágil pela ausência de uma Justiça Eleitoral nacional, pela influência política sobre o desenho dos distritos eleitorais, pela presença de uma Suprema Corte acovardada e cooptada, e pela força de bandos fascistas pelo país). Por outro lado, é difícil apoiar Biden, que se esforça por ser ainda mais pró-Israel e imperialista na arena internacional do que Trump, doando bilhões de dólares para o genocídio atualmente em curso em Gaza, assim alienando completamente a juventude e o progressismo.

De acordo com o que me relataram membros do DSA, embora a organização dê prioridade à luta contra Trump, apoiar Biden está atualmente fora de cogitação. Por outro lado, essa não é a política da maioria dos parlamentares de alto escalão do DSA, como Alexandria Ocasio-Cortez, que certamente apoiarão Biden. Essa cisão tática revela um problema clássico das organizações socialistas no século XXI, que frequentemente elegem parlamentares antes de terem acumulado poder suficiente para efetivamente controlá-los. Muito maiores do que suas organizações, esses parlamentares frequentemente cedem a pressões oportunistas, tornando-se pouco responsivos a suas bases originais. O DSA se esforça por acomodar essas contradições sem esgarça-las ao limite: não parece haver perspectivas no curto prazo de ruptura entre a organização e seus principais parlamentares, mesmo que estes venham acumulando diferenças importantes.

Um segundo problema, que foi bastante central nas discussões da conferência, diz respeito às finanças partidárias. Exatamente pela autonomia que os parlamentares possuem, o DSA depende exclusivamente do financiamento de seus membros – o que, embora imponha dificuldades, impõe também a formação de uma disciplina militante e independência financeira saudável. No entanto, no período entre 2016 e 2020, quando o DSA teve seu maior salto organizativo, o partido aumentou rapidamente seus gastos contando que aquele aumento de filiados seria constante, o que não aconteceu – desde 2022, o DSA assistiu a uma relativa estagnação de seus filiados. Por conta disso, os dirigentes nacionais do DSA em 2024 estão sendo obrigados a cortar recursos de diversas alas do partido, inclusive da juventude, para prevenir um perigo iminente de insolvência. Tal decisão acendeu debates no interior do partido e da juventude: será que os cortes deveriam focar mais nos salários dos membros eleitos ou nos salários dos funcionários administrativos? Será que cortes extensos são a melhor decisão nesse momento, ou poderão comprometer a capacidade de atrair mais membros, e assim mais recursos? Será que a juventude deve ser poupada, considerando a importância que tem tido na captação de novos membros? Qualquer que seja a resposta, todos concordam que o caminho definitivo para superar a crise orçamentária é atrair mais e mais membros para a causa do socialismo. Na falta de uma grande figura nacional que coloque de novo o socialismo na “ordem do dia”, é improvável que em 2024 um novo salto de filiados vá se reproduzir de modo automático, mas o DSA prova que possui a solidez organizativa e estratégica para enfrentar os desafios do presente.